sábado, outubro 13, 2007

Concha y Toro, 1981

Malvada garrafa! A culpa não foi tua, eu sei. Mas, com seiscentos mel diabos! Porque é que não duraste mais uns meses? Mais uns anitos? Havias de estar soberba, o teu néctar naquele castanho escuro-avermelhado, translúcido e aromático, delicado e poderoso, aveludado e com um corpo grácil e feminino que quase se pode tocar, com a ponta erótica da língua!

Teríamos erguido os nossos copos aos tribunais chilenos que, enfim, acusam de ladroagem e desvio de dólares, locupletação e aproveitamento, ao velho ditador que os caldeirões do Inferno o tenham em óleo rançoso a ferver.
Teríamos voltado a encher os copos e a brindar, desta vez aos tribunais argentinos que ousaram, sim, ousaram condenar a prisão perpétua - quer dizer, até que o diabo o carregue - o Padre Cristiano, torturador, assassino e, como o tribunal decidiu, sequestrador.
"Dios sabe que era para bien del país!", disse ele em tribunal.
Para bem do país? Mas como? O país não é também aquele gente que se torturou e se fez desaparecer?
A Igreja argentina já pediu "perdão com arrependimento".
Teríamos bebido à Igreja argentina pelo seu arrependimento. Mas ficaríamos à espera de uma lei canónica, dimanada do Vaticano, que dissesse claramente:
"Nenhum cristão, sob pena de excomunhão, banimento e desprezo mais completo, fará jamais mal algum ao seu irmão, seja qual for o pretexto, político, religioso, militar, étnico ou ético."
A esse canon, sim, teríamos despejado galhardamente toda a garrafa e mais que fosse. E já muito bêbados, se calhasse, entoaríamos muito sérios o
"Queremos Deus,
ao Pai Supremo!
Queremos Deus
ao Redentor...
Zombam da fé
os insensatos,
Erguem-se em vão
contr'ó Senhor...
Da nossa fé ó Virgem,
o brado abençoai.
Queremos Deus que é nossa fé,
Queremos deus
que é nosso Pai..."
Respeitaríamos a nossa divindade e os Seus representantes na Terra enquanto, balançando-nos ao som do Queremos Deus, exibíamos a nossa bebida, tu, Concha y Toro, 1981.
"taritata-ta-titata...
Taritati-ta-ta-tatáaa!"
Mas tu, pobre e honesta garrafa, Concha y Toro, 1981, preferiste morrer. Um bom vinho, tem, antes de mais, o horror à hipocrisia.
Que dizer, senão em respeitoso recolhimento, paz à tua alma? Que no Paraíso, onde os vinhos honestos serão acolhidos com as honras devidas aos benfeitores da humanidade, tu te multipliques em muitos e muitos barris para gáudio dos bem aventurados.
Amen.

1 comentário:

tacci disse...

Olá Silêncio. Seja bem vinda. Já andei pelos vossos blogs e de certeza que lá vou voltar.
Um abraço.