sábado, novembro 25, 2006

Vimioso for ever

... El-Rei separou-se dos que o acompanhavam, e quando estava a alguma distância passaram por ele três homens. Travou-se uma briga entre esses três homens e Afonso VI, e este, embaraçadp pelas esporas, caiu de costas logo aos primeiros golpes, e foi ferido gravemente. Trouxeram-no em braços para o paço, onde esteve bastantes dias enfermo.
O que nesta noite, de que falamos aqui aconteceu ao rei, sucedia quase todas as noites a alguém que, pouco acompanhado ou pouco habituado a servir-se das armas, se atrevia a andar pelas ruas da cidade. Os homens, sobretudo os militares e os fidalgos da corte, julgavam quase um dever de honra fraternizar quando se encontravam de noite nas ruas, dando-se mutuamente algumas cutiladas...
Andrade Corvo, Um ano na corte, Porto, Lello & Irmão, s.d.

Tacci par lui-même

terça-feira, novembro 21, 2006

Como é diferente o amor em Portugal


Um duelo provocado pela bela Fornarina
*
Quando vinha trabalhar a Lisboa, a Bela Fornarina, cancionetista mundialmente conhecida, disputada e requestada por reis, engatava sempre com o meu grande amigo Abreu Loureiro, simpático rapaz, belo ginasta e galã de outros tempos. Havia, porém, um «ataché», o Dr. Cezar Pensador, uma criança a roçar pelos setenta e careca também, que tinha uma paixão assolapada pela beldade que lhe correspondia com galanteios esperançosos que mais o convenciam da sinceridade do seu amor. Apesar de andar ao «pingalim» do Abreu Loureiro, quando estava com o «cio» chegava a insultá-lo e a provocá-lo, pelo que se combinou um duelo de florete derimido no Velodromo de Palhavã de que o Abreu era empresário e a que assistiram os amigos e a própria Fornarina. Foi o Dr. Cezar admirável de coragem, batendo-se com denodo pela sua dama sendo «touché doucement» pelo antagonista umas dúzias de vezes o que convidava a assistência a desmanchar-se em risos. Findo o assalto, a Fornarina, de permeio, obrigou-os a reconciliarem-se no campo. Houve grande gaudio ao ser o moço apaixonado beijado na careca por ela própria. Acabou tudo no Suisso que, encerrando as portas, estava por conta do Abreu Loureiro.
Festa que nunca mais se esquece e que teve uma singular apoteose: uma cascata de champagne caindo em catadupas dos épicos seios da Bela Fornarina (cada vez estou mais mamífero) em pé em cima da mesa, onde estava sentado o Dr. Cezar e em cuja careca ia morrer o caudal já sem espuma por ter sido filtrado no serpentear do seu curso. Não te arrependas, querido amigo, de levares o papinho cheio.
Arnaldo Futscher Reys e Souza, Ergue a campa Vimioso, 1955

quinta-feira, novembro 16, 2006

...duas respostas.


Soubeste, claro, que estive em Ceuta, no ano passado. Um capricho? Não sei. O cheiro a sal, claro, e os mastros rangendo, o bater das velas... Sim, tudo isso. E também porque queria espaço, o largo.
Tu que viajaste, recordas-te dos teus primeiros dias no mar?
O que ainda sinto de cada vez que me vem à memória é espantosa beleza de toda a costa, as praias de areia... rosa? De que cor são as praias, tu que te dizes poeta? Da cor do pão branco, um pouco tostado pelo forno, concordas?
E os cheiros, aquele cheiro da madeira molhada, salgado e azedo a um tempo.
Dizem que embarquei secretamente. Não vale nem um encolher de ombros. Como se eu conseguisse dar dois passos sem um jesuíta na minha esteira. Hei-de falar-te dos jesuítas um dia, quando calhar.
Não: fui lá para ver com os meus próprios olhos. Um governador, seja da mais pequena das praças fortes, até ao Vice-Rei das Índias nunca consegue saber coisa nenhuma... Não, espera. Quando se pergunta qualquer coisa, há sempre duas respostas. Se não há, é porque perguntaste às pessoas erradas. Vê só um exemplo: porque é que as gentes do meu reino passam fome?
Pronto, bem sei, eu se passar é porque quero. Mas tu passas quer queiras quer não. Basta não chover este ano, o sol queimar ou o frio fazer cair a geada ou não sei o quê - o Rei não tem de perceber estas coisas mesquinhas, não é? - e pronto. Passas fome.
Há dias, em Sintra, na livraria do palácio entretive-me a estudar uns documentos do tempo do meu bisavô Manuel. Sabes que houve uma grande fome em Portugal, justamente quando ele se passeava com girafas e leopardos por Lisboa, numa carruagem folheada a oiro?
Quando da Mina e da Flandres vinham rios de oiro, o Tejo formigava de naus que traziam especiarias das Índias, o açúcar crescia na Madeira, nas cidades não havia pão.
E os mercadores reclamavam de El-Rei que os autorizasse a importar trigo e centeio, baratos, claro, para os vender caros cá dentro. E os concelhos reclamavam que o pouco que por cá crescia apodrecia nos celeiros porque ninguém lá o ia comprar...
Quem tinha razão, Luís Vaz? E para onde iam os rios de dinheiro que, diz-se nessas cartas, corriam para os nossos cofres?
Percebes porque tive de ir ao reino do Muley-Moluk ver com os meus próprios olhos porque abandonámos tantas praças e porque é que não podemos sustentar as que ainda temos?

quarta-feira, novembro 15, 2006

...aborto e horror da brava Natureza

A Senhora de Brabante Dizem as lendas que Satã vestido
de uma armadura feita de um brilhante,
ousou falar do seu amor florido
à Senhora Duquesa de Brabante.
Dizem que o ouviram ao luar nas águas,
mais louro do que o sol, marmóreo e lindo,
tirar de uma viola estranhas máguas,
pelas noites que os cravos vão abrindo...
Dizem mais que na seda das varetas
do seu leque ducal de mil matizes...
Satã cantara suas tranças pretas,
- e os seus olhos mais fundos que as raízes!
Mas a Duquesa é triste. - Oculta mágua
vela seu rosto de um solene véu.
- Ao luar, sobre os tanques chora a água...
- Cantando, os rouxinóis lembram o céu...
O que é certo é que a pálida Senhora,
a transcendente Dama de Brabante,
tem um filho horroroso... e de quem cora
o pai, no escuro, passeando errante.
É um filho horroroso e jamais visto! -
Raquítico, enfezado, excepcional,
todo disforme, excêntrico, malquisto.
- pêlos de fera, e uivos de animal!
Parece irmão dos cerdos ou dos ursos,
aborto e horror da brava Natureza...
..............
Gomes Leal, Claridades do Sul

segunda-feira, novembro 13, 2006

segunda-feira, novembro 06, 2006

Memórias do cárcere: o alienista

...
Na minha infância, o nosso pai pensou em internar-me.
Aos 20 anos, qualquer médico escreveu num relatório que eu era um "psicopata constitucional". Foi o dr. Sobrinho, psiquiatra que dirigia a 20ª enfermaria do hospital Miguel Bombarda, em Lourenço Marques. O enfermeiro-chefe quando me surpreendia a ler, cá fora, nas escadas, ao crepúsculo, dizia-me: "Então você, durante o dia não lê, e agora que há pouca luz..." Sorria.
Como vês, o diagnóstico estava a confirmar-se. Eu ali, no uniforme do hospício, uma vestimenta que lembrava a dos prisioneiros dos campos de concentração nazis, estava a ler Hegel.
...
Sebastião Alba, Albas, /139/ quasi, 2003, pag. 73

domingo, novembro 05, 2006

De novo o Alba

Sebastião Alba era o pseudónimo de um vagabundo, alcoólico, sem bilhete de identidade e sem paciência para o ir tirar.
Do pai, professor que ensinava grego e latim aos mais pequeninos dos alunos, herdou o rigor. De quem a ascese da pobreza, esse querer ser um homeless e, apesar disso, sentir saudades do carinho das filhas, das gentes próximas, dos amigos que tinha e que perdia?
"Sem religião específica", diz Maria de Santa Cruz, "mas bebendo de todas a decantada superstição: 'São Francisco de Assis' ou a morena Santa Sara, dita 'egípcia' (gipsy) ..."
Sem - religião - específica:
(sem religião, especifica:)
"Lê hoje se puderes, o primeiro parágrafo de 'O mito de Sísifo', de Camus", escreve Sebastião Alba. "Meu pai teve, aos 35 anos, um amigo íntimo que era Major do Exército. Todas as noites se encontravam no mesmo café. Ele era alto e vigoroso; à mesa nunca deixava que ninguém pagasse as contas; trazia sempre no bolso, conta meu pai, rebuçados para as crianças.
Não casou, mas amava as mulheres. Nenhuma em particular. Um dia, com uma Walter 7.65, meteu uma bala na cabeça. Deixou um bilhete: 'estava farto de abotoar e desabotoar os botões do dolman'. Meu pai leu-o, estupefacto. Quase 50 anos depois, o meu velhote ainda diz que morrerá sem entender aquilo."
Albas, 233, quasi, 2003, pag. 135.

sábado, novembro 04, 2006

Sebastião Alba

Olvido Lleno de Memoria

Ao reconhecer que a sorte nos contemplou com alguma perfeição, devemos apagar-nos um pouco, para não humilharmos os outros.
"O que estás a dizer é muito grave, Alba?"
"É. Estabelece o limite entre nós e as pessoas vulgares."
"Temos que escorrer o nosso orgulho, mesmo que legítimo?"
"Escorrer, dizes bem. É uma espécie de lodo em que nos afundamos, dentro de nós."
"Leste isso em S. Francisco de Assis, Alba?"
Sebastião Alba, Albas, quasi, 2003, /181/ pag. 183