quinta-feira, maio 25, 2017

O LIVRO DE AKA


O destino das ruas é ser caminhadas, claro,
e aquelas por onde Aka andava não eram excepção
mesmo se corrê-las todas fosse impossível
porque umas levam às outras e as outras a outras,
como as palavras num dicionário labiríntico
 onde nunca fosse preciso voltar atrás.
Por isso, e porque a temperatura descera
e a neve pisada se tornava negra e escorregadia
deixou   o Chemin Vert, que afinal era uma rua como as outras,
entrou um pouco ao acaso pelo Boulevard Beaumarchais, 
à procura da Rue de Tournelles
e reconheceu que já não sabia para que lado andar.
Havia, claro, o gps e o infatigável Mahamoud a sinalizar as coordenadas
 de cada um dos passos andados
 - pensou Aka pela centésima vez, 
já sem o prazer de antigamente por ser personagem numa história de série B
- ninjas vestidos de negro, armados até aos dentes
e logo um helicóptero a descer, mesmo na rua mais estreita, 
para a resgatar do perigo, 
gato assanhado, Rottweiler mal disposto,
bêbado incomodativo, enamorado persistente
- se, por troça dos djin, 
tal lhe fosse autorizado ao menos uma vez, 
foi o que ela pensou -
e descobriu que Mahamoud não estava à vista.
Por momentos sentiu-se liberta
apeteceu-lhe saltar ao pé-coxinho, jogar seksek 
(il gioco del mondo, la marelle)
nos desenhos que as pedras do passeio faziam
onde a neve derretera.
- Vem, disse uma pequenina voz junto do joelho dela, suave mas insistente
a puxar-lhe a ponta do nikab
uma criança a olhá-la lá baixo com um rosto de velho.
- És o meu djin?
- Que te importa? Anda.
- Onde?
O pequeno ser começou andar num passo miúdo,
do tamanho das pernas miúdas,
como se estivesse certo de ser seguido.
Aka olhou de novo em volta,
o lugar de Mahamoud estava quase vazio,
preenchido apenas pelo vulto diminuto da criança velha que se afastava.
- Porque não? Pode ser que neste mundo haja mais mundos
e de uns se passe para os outros como na Wikipedia
e neste aqui tudo seja ao contrário dos que eu uso
- pensou ela enquanto tomava uma decisão -
bem precisava de alguns contrários 
por exemplo, dava-me jeito passar a ser homem
uma vez por outra.
Mas, e se nenhum dos meus mil nomes
servisse para uma eu masculina?
Acrescentava
Harun-al-Rachid?
Hercule Poirot?
Riu-se e deixou a questão para mais tarde
(se mais tarde chegasse a chegar ao lugar dos agora)
e saltitou ao pé-coxinho
na esteira do seu diminuto guia.
Um portão de ferro tosco abriu-lhes a porta de homem,
Aka entrou com uma ponta de medo,
na sua frente a larga passagem dava acesso a um pátio:
- Voilà, disse a criança velha, tu es à la goguette des nains.
Um braseiro era a única iluminação à volta da qual,
num passo balançado,
se moviam sombras.
O som fanhoso de um bigofone soava mais longe
misturando-se com os protestos de uma galinha que alguém agarrara.
- Bom vinda à corte dos milagres. - disse um dos vultos. - Ceias connosco?
- Hoje é dia de festa - riu-se outro - precisamos de uma boa fogueira.
 Foram-se chegando, um gordo que parecia um barril de palmo e meio
com um braçado de livros
que foi mostrando antes de os atirar para o braseiro,
- Espinosa, leu Aka.
- Montaigne - ajuntou o gordo - e o Divino Marquês...
um segundo com
um com a ave já degolada
atirava para o lume punhados de penas
que erguiam no ar gelado nuvens de fumo pestilento.
- Estamos quase no fim dos livros.
A seguir temos de passar para os quadros,
explicou a criança com rosto de velho.
Tinha ido buscar um velho tambor de lata
e batucava o que parecia uma marcha fúnebre.
- Petit a petit, toute la France y passera, cantarolou ele,
enquanto o bigofone soltava gemidos a compasso.
- Já sei, exclamou Aka.
Tu és o Óscar.
- Je dis pas non, cantarolou o anãozinho.
E os outros entoaram em coro:
- Il dit pas non, il dit pas non...
Começava a cheirar a galinha assada
Aka sentiu água a crescer-lhe na boca.

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