quarta-feira, novembro 21, 2018

Carta Aberta (talvez melhor: Desabrida) ao Manuel Alegre



Dâmaso
- Eu cá, é de atracão!
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Grande Manuel:
Deixa-me dizer-te como aprecio a tua intervenção pública e ousada nesta questão do politicamente correcto. Também eu, frequentemente opto pela incorreção - não no caso do massacre dos toiros para gáudio sádico de uns quantos espectadores, não em andar aos tiros a coelhitos que só iam na vida deles sem incomodar ninguém, mas, para dar um pequeno exemplo - quando toda a gente incensava o tua «A Praça da Canção», eu, incorrecto como sou, achei-o superficial, mero aproveitamento do tempo que passa (como o vento?). 
Não penses que duvido da nobreza dos teus sentimentos de resistente anti.fascista. Mas sempre suspeitei de que, à mistura, vinha alguma dose de vontade de ser reconhecido, tipo ser «o maior da cantareira». Estarei em erro? Coisas da minha dose de incorrecção. Tu o dirás.
Adiante. Quero que compreendas que eu também compreendo os teus gostos aristocráticos, Manuel: Afinal, ir à caça com a espingarda debaixo do braço e uns grupo de amigos apreciadores do ar livre é elegante., Ir assistir a uma tenta de gado na herdade de um ganadeiro amigo, ser parte da Festa Brava, são coisas que afidalgam que se farta.
Só há uma coisa que eu não percebo: terás medo de que os aficionados deixem de ir às toiradas a 13% do IVA e passem a frequentar o Balet, só por causa dos 6%?

terça-feira, setembro 25, 2018

A FÁBRICA DAS ALMAS
(Dedicado à Beatriz Lamas de Oliveira)

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Antigamente, muito muito antigamente, para aí quando Deus ainda andava pelo Mundo, as almas eram assim como os cereais, que só foram domesticados, num sítio longínquo, chamado Neolítico.
Antes, portanto, só não cresciam nas bermas dos caminhos porque não havia caminhos nenhuns, só umas veredazinhas de pé posto. As almas, por isso, iam crescendo ao Deus dará. Passava uma futura mãe doninha, ou raposa, ou o que fosse, e as almas entravam pela barriga onde os cachorrinhos já se iam acotovelando para nascer. Às vezes, muito raras felizmente, não havia almas que chegassem e um bebé nascia morto ou quase, quase. Era tão triste que, não raro, acontecia o milagre: uma alma vinha a correr mais de longe, chegava esbaforida, mas ainda a tempo. O bebé demorava mais um bocado a recuperar, mas aí estava ele, passado umas horas ou, vá lá, uns diazitos, a empurrar os outros, a brincar, às cambalhotas e a mamar pela vida.
Com as devidas diferenças, era assim com todos os outros bichos, desde as lagartixas às abelhas, aos pardais e às sardinhas.
Com os homens foi o mesmo durante muitas e muitas voltas do Sol à roda deste pontinho do universo. Mas, claro, os tempos passam, os homens foram-se juntando em aldeias, e como aprenderam a semear o trigo, também aprenderam a fazer umas almas por outras, assim artesanalmente, o xamã juntava uns ingredientes, fazia umas rezas e encantamentos e pronto, Ia havendo almas para todos.
Não quer dizer, claro, que uma rapariguita que fosse dar uma volta com o namorado ali ao bosque mais próximo não apanhasse uma alma, digamos, selvagem, para o filho que havia de nascer.
Infelizmente apareceu um povo que exigia o monopólio do fabrico de almas: só as almas «Jeová» eram consideradas genuínas. E, ainda por cima, só se encontravam disponíveis nuns sítios chamados Sinagogas onde os estranhos ao povo eleito não podiam entrar. Os outros povos, coitados, mal ou bem, expulsos ou massacrados, lá iam tendo os seus xamãs.
Dizem os entendidos que a polémica que custou a vida a homens bons,como Jesus ou João Baptista, estalou como uma guerra feroz. Dum lado estavam os que achavam que as «Almas Jeová» deviam ser também concedidas aos gregos, aos romanos e egípcios, e pronto, a toda a gente, Do lado oposto, entrincheirados na Sinagoga, os que continuavam a defender que as almas são só para o povo escolhido e basta. Esta guerra tem tido episódios tristes, tantos que não vale a pena citar nenhum.
O certo é que esta primeira batalha pela globalização foi sendo ganha pelo grupo conhecido como «Cristão», sobretudo a partir do momento em que o poder político e militar do Império Romano lhe emprestou o braço forte: o imperador Teodósio I tornou-o «religião oficial do estado». As «Almas Jeová» expandiram-se e passaram a estar disponíveis até mesmo para os escravos, desta vez nas Igrejas também.
É claro, outras fábricas de almas, como as Mesquitas foram surgindo, e continuaram a expansão por esse mundo fora, dando origem a cenas muito, muito tristes, guerras e, nos nossos dias já, bombardeamentos num quase, todos contra todos, só dinheiro é que parece importar nesta questão de Almas.
E a produção artesanal, perguntarão. Pois, na verdade, nunca parou. Perseguida pelas Inquisições, umas vezes sob a acusação de «judaísmo», outras de «feitiçaria», e sempre de «heresia» foi resistindo como poude, Tem até recrudescido um pouco nestes últimos tempos graças à tendência para um certo sincretismo religioso que privilegia, estamos em crer; o misticismo em detrimento dos rigores formalistas.
E pronto. Espero não vos ter maçado muito.

sexta-feira, julho 06, 2018

EUTANÁSIA, ou nem por isso?



EUTANÁSIO, TUTANÁSIAS, ELE...

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Perdoar-me-ão o cepticismo, (ou não, que hei-de eu fazer?)... O facto é que, nos últimos dias, tenho lido, por aqui e por ali, tudo o que me aparece sobre o problema da eutanásia e a conclusão a que chego é que é demasiada areia para a minha camioneta. Se eu estivesse no lugar do Marcelo Rebelo de Sousa, desconfio que vetava a lei, qualquer que ela fosse, que a remetia de novo ao parlamento para que a pensassem duas vezes.
Notem que eu sou a favor do suicídio medicamente assistido sempre que alguém, em extremo sofrimento, não tenha sequer a autonomia para subir ao décimo andar, galgar a janela e zás! Pode, por exemplo, estar acamado, ou ser paralítico, ou ter perdido braços e pernas na explosão de uma mina anti-carro, sabe Deus... A única coisa que eu exigiria, se fosse eu o legislador, era que fosse sempre, em qualquer caso, o suicida a suicidar-se, a premir o gatilho do revólver que tenha à sua disposição; que não venha médico nenhum, enfermeira ou parente próximo disparar por ele, dar-lhe a colher de 605 forte no boca, empurrá-lo pela janela. Tudo bem que lhe arranjem uma pistola, que introduzam uma bala na câmara: mas premir o gatilho tem de ser ele, o suicida. Ninguém por ele, a seu mando, a súplica sua.
Pois, dir-se-á, e se ele estiver paralítico, por exemplo? 
Bom, a tecnologia já tem resolvido problemas mais complexos. Lembrem-se, para não irmos mais longe, do Stephen Hawking, que continuou sempre a trabalhar e a escrever os seus livros apesar da completa atrofia muscular.
Resta, claro, o problema da eutanásia, que eu não entendo lá muito bem e que me causa bastos engulhos. 
Comecemos pelo caso mais simples, para mim, pelo menos: imaginem que eu tenho um canito, já velhinho, com uma doença que lhe causa o maior dos sofrimentos. Que recomenda o senso comum que eu faça? Que o leve ao veterinário, o qual, se não lhe dá uma «boa morte», pelo menos acaba com o sofrimento que a ciência detecta, ao mesmo tempo que se lhe acabam os sinais vitais. Como a nossa cultura «cristã-empresarial» se recusa a admitir que os animais (mas só os outros, os não humanos, e mesmo assim...) tenham alma, os escrúpulos acabam aqui. 
Diferente é o caso de uma criança. Se o meu filho bebé tiver uma doença incurável, fatal e terrivelmente dolorosa, que posso eu fazer? Tal como o canito do exemplo anterior, o bebé não tem capacidade para pedir que lhe abreviem o sofrimento, mas eu que o amo profundamente, não tenho o recurso de o levar ao veterinário... e só quem nunca esteve com uma criança que, mesmo encharcada em analgésicos, se contorce de dor e grita o seu desespero, me poderia condenar se eu assumisse a morte do meu filho e a pedisse encarecidamente... E, no entanto, é o que a sociedade, com os seus esbirros me faz. E, tanto quanto apurei, é a solução que, da eutanásia, nos quatro projectos que amanhã serão discutidos no Parlamento, unanimemente se exclui.
E pronto. Eu sei que há muito mais, mas por hoje é tudo. Sejam felizes e, se puderem, releiam o conto «O Alma-Grande» do Miguel Torga. Talvez venha a propósito, que sei eu?

quarta-feira, abril 18, 2018

CATARINA E OS REFLEXOS

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            - Pai? Hoje perguntei à Luísa… Tu sabes, Pai! A minha professora chama-se Luísa.
            . Desculpa, querida, estava a pensar noutra coisa. O que é que tu perguntaste à tua professora?
- Perguntei porque é que as palavras são iguais.
            - Iguais? Iguais como?
            - Tu disseste que o reflexo é tipo haver uma luz muito forte e a gente fechar os olhos sem pensar. Mas reflectir, tu dizes sempre que é pensar duas vezes numa coisa que a gente não deve fazer. E depois eu pensei que o que a gente vê no espelho também não é verdade, é só o espelho a reflectir e é mentira, não é Pai?
            - Sim, de certo modo… Mas, e depois? Pensaste o quê?
- Depois pensei no meu quarto, sabes? De manhã fica assim muito clarinho. E a Conceição diz que é a luz do Sol a reflectir-se nas paredes. E eu lembrei-me daquilo que tu disseste também, no outro dia, de ser claro é ser mais verdade, porque eu vi tudo clara e distintamente. Mas as paredes não são menos verdade quando está escuro, pois não, Pai?
            - Não, claro que não. É como tu dizes, a confusão vem de usarmos palavras iguais para coisas diferentes.
            - Pai!
            - Que foi agora?
            - Tu disseste «claro que não». Como é que uma coisa «não» pode ser clara? Não devia ser escura?

sexta-feira, março 23, 2018

CATARINA E OS SAPATOS BRANCOS


          


         -
          “Os paradoxos são coisas engraçadas porque vai tudo muito certinho, tudo muito lógico e quando chegamos ao fim estamos a contradizer o que dissemos no princípio.
“Por exemplo, o Hempel escreveu uma coisa sobre os melros serem todos pretos.”
- Os melros não são todos pretos, Pai. Têm aquele biquinho que é amarelo.
- Desculpa. Às vezes a nossa maneira de falar torna as coisas confusas, é como a história dos reflexos.
“Tirando o bico que é amarelo, como tu disseste, todos eles devem ser pretos, foi o que a gente viu sempre. Mas bem, o mundo é muito grande e tem muitos cantinhos, silvas, canaviais, sítios desses onde os melros podem esconder o ninho. Pode ser que haja, num outro lugar qualquer onde a gente nunca foi, um melro ou mesmo uma data deles que não sejam pretos. Se fores à procura e encontrares pelo menos um desses, então ficas a saber que não é verdade que todos os melros sejam pretos. Percebeste?
- Não sei, Pai. É mentira?
- Mais ou menos. Se a Anabela te vier dizer que todos os cães são cães de caça como o do Pai dela, tu mostras-lhe a nossa Janeca e pronto. Provaste que não era verdade. Com os melros é a mesma coisa. Se arranjares um que seja encarnado às riscas, fica provado que é mentira que os todos os melros sejam pretos.
- E depois?
          - Depois, a lógica é uma coisa engraçada. Em lógica tanto faz dizer que todos os melros são pretos, como dizer que tudo o que não for preto, não é melro. Ou se quiseres, «todos os não-pretos são não-melros», é assim que se diz em lógica, quando não queremos baralhar tudo. Ou então, também podes dizer que nenhum elemento que pertença ao conjunto dos não- pretos pode pertencer ao conjunto dos melros. Vai dar ao mesmo.
            “Então repara: nenhum pomba branca é preta, pois não? Por isso, em vez de procurares melros que não sejam pretos, também podes procurar pombas brancas que sejam melros. Parece um disparate, mas a cada pomba branca que tu encontrares e que não seja um melro, estás a ter a confirmação de que, afinal, todos os melros são pretos.
            “Às vezes tenho receio de que os estudiosos e os cientistas andem todos à procura de pombinhas brancas …”
            - São parvos, Pai?
            - Não, claro, claro que não. Mas quando se anda à procura, nem sempre se tem a noção exacta do que queremos encontrar. Além disso, acho que o Hempel estava a falava era de corvos pretos e sapatos brancos. Não tenho certeza de que se aplique igualmente aos melros e às pombas.
            - Porquê, Pai? Ele não gostava dos melros?
            - Devia gostar. Mas ele era alemão; viver na Alemanha no tempo do Hitler era muito difícil. Teve de fugir para a América. Talvez a ideia dos corvos o perseguisse. Sabes, os corvos têm muito má fama porque comem carne dos animais mortos. Talvez os nazis lhe parecessem bandos de corvos negros, a perseguir os judeus.
            - Pai, o que é ser judeu?
            - Não sei bem. Tem a ver com a religião deles, creio, embora eu não tenha a certeza de que todos vão à sinagoga.
           

           


terça-feira, outubro 17, 2017

Paulo Varela Gomes, Hotel.

Em Todas as Direcções se contempla o Vazio

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Acabei de ler Hotel, de Paulo Varela Gomes (Tinta da China, 2014) e iniciei o seu Passos Perdidos (da mesma editora, 2016).
Nos intervalos, entre páginas fui desenhando uns bonecos (um mau costume que me ajuda a pensar) enquanto maldizia a quase invencível relutância que sinto perante a ficção de pessoas amigas, ou que, em dada altura conheci de perto. 
Erros meus, má fortuna que  me impediram de me encontrar mais cedo com a obra do Paulo Varela Gomes. Quando o conheci, muito antes de «ser cristão», era ele um jovem guerreiro que atravessava a vida a passos largos e convictos. Que mais dizer, passados tantos anos, se não que estou a gostar de o voltar a conhecer na sua maturidade?
Sobretudo por coisas destas que ele escreveu algures:
"Às vezes são crianças pedintes, outras vezes cães abandonados ou vadios. [...] As raparigas trazem quase sempre uma criança mais pequena ao colo e têm já a indiferença magoada de quem foi condenado a uma pena perpétua. Os cães passam, aquele desesperado para aqui e para ali à procura do dono que fugiu talvez há muito tempo, e outro, vagaroso, cheio de dores, em busca de um sítio onde morrer em silêncio, olham através de nós para uma vida que nunca tiveram." (Ouro e Cinza, crónicas, Tinta da China, 2016, p. 23).
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Rui da Costa Lopes  

             

sexta-feira, agosto 18, 2017

terça-feira, agosto 08, 2017

SALA DE ESPERA

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La cour des miracles.

quarta-feira, junho 14, 2017

Santinhos (I)

Santo António de Pádua,
 o Doutor Evangélico, Primeiro Leitor de Teologia da ordem dos Franciscanos
e grande pregador contra a heresia de Albi. 
E o mesmo, mas de Lisboa, mais dado a quebrar as bilhas às raparigas
e a concertá-las depois casando as noivinhas. 
É claro, é o Santo a quem se deve rezar quando se quer recuperar uma coisa que se perdeu 
- reza-se para que o noivo seja honrado - ou que, sendo outro, não dê por nada.
A vida é feita destas pequenas artimanhas a que nem os Santos escapam.

 São Francisco Marto,
 trabalhador infantil como se usava 
naqueles tempos de extrema pobreza. 
Deram-lhe um cajado, uma navalhita, símbolos da masculinidade, 
disseram-lhe que já era um homem e vá, toca a fazer pela vida, que viver não é de graça. 
Os tempos aborrecidos, enquanto as ovelhas cuidavam das suas vidas sempre iguais, 
entretinham-se como se podia: a fazer brinquedos talhando figurinhas a canivete, em pedaços de pau, porque era o que faziam os gaiatos antes de lá chegar a escola e a mestra com a sua palmatória. E mesmo depois, porque faltar à escola para ajudar os pais, era o que se fazia, que remédio? 
Não sabemos nada dos seus talentos musicais,
mas, em calhando, fazia nu-nús de cana,
mesmo pequenas flautas de sons doces - e desafinados. 

Santa Jacinta
Era uma menina de sete anos aquando das aparições. 
Só depois foi à escola.
Até então ia com o rebanho até ao pasto, mais uma cabritinha à guarda do irmão Francisco e da prima Lúcia, que menina já de sete anos não fica em casa sem fazer nada.
Se calhar, entretinha os dias longos a jogar às cinco pedrinhas que era jogo de meninas, 
com a Prima Lúcia, ou talvez sozinha.
Tem-se o que se pode. Sonha-se com o resto.

quinta-feira, maio 25, 2017

O LIVRO DE AKA


O destino das ruas é ser caminhadas, claro,
e aquelas por onde Aka andava não eram excepção
mesmo se corrê-las todas fosse impossível
porque umas levam às outras e as outras a outras,
como as palavras num dicionário labiríntico
 onde nunca fosse preciso voltar atrás.
Por isso, e porque a temperatura descera
e a neve pisada se tornava negra e escorregadia
deixou   o Chemin Vert, que afinal era uma rua como as outras,
entrou um pouco ao acaso pelo Boulevard Beaumarchais, 
à procura da Rue de Tournelles
e reconheceu que já não sabia para que lado andar.
Havia, claro, o gps e o infatigável Mahamoud a sinalizar as coordenadas
 de cada um dos passos andados
 - pensou Aka pela centésima vez, 
já sem o prazer de antigamente por ser personagem numa história de série B
- ninjas vestidos de negro, armados até aos dentes
e logo um helicóptero a descer, mesmo na rua mais estreita, 
para a resgatar do perigo, 
gato assanhado, Rottweiler mal disposto,
bêbado incomodativo, enamorado persistente
- se, por troça dos djin, 
tal lhe fosse autorizado ao menos uma vez, 
foi o que ela pensou -
e descobriu que Mahamoud não estava à vista.
Por momentos sentiu-se liberta
apeteceu-lhe saltar ao pé-coxinho, jogar seksek 
(il gioco del mondo, la marelle)
nos desenhos que as pedras do passeio faziam
onde a neve derretera.
- Vem, disse uma pequenina voz junto do joelho dela, suave mas insistente
a puxar-lhe a ponta do nikab
uma criança a olhá-la lá baixo com um rosto de velho.
- És o meu djin?
- Que te importa? Anda.
- Onde?
O pequeno ser começou andar num passo miúdo,
do tamanho das pernas miúdas,
como se estivesse certo de ser seguido.
Aka olhou de novo em volta,
o lugar de Mahamoud estava quase vazio,
preenchido apenas pelo vulto diminuto da criança velha que se afastava.
- Porque não? Pode ser que neste mundo haja mais mundos
e de uns se passe para os outros como na Wikipedia
e neste aqui tudo seja ao contrário dos que eu uso
- pensou ela enquanto tomava uma decisão -
bem precisava de alguns contrários 
por exemplo, dava-me jeito passar a ser homem
uma vez por outra.
Mas, e se nenhum dos meus mil nomes
servisse para uma eu masculina?
Acrescentava
Harun-al-Rachid?
Hercule Poirot?
Riu-se e deixou a questão para mais tarde
(se mais tarde chegasse a chegar ao lugar dos agora)
e saltitou ao pé-coxinho
na esteira do seu diminuto guia.
Um portão de ferro tosco abriu-lhes a porta de homem,
Aka entrou com uma ponta de medo,
na sua frente a larga passagem dava acesso a um pátio:
- Voilà, disse a criança velha, tu es à la goguette des nains.
Um braseiro era a única iluminação à volta da qual,
num passo balançado,
se moviam sombras.
O som fanhoso de um bigofone soava mais longe
misturando-se com os protestos de uma galinha que alguém agarrara.
- Bom vinda à corte dos milagres. - disse um dos vultos. - Ceias connosco?
- Hoje é dia de festa - riu-se outro - precisamos de uma boa fogueira.
 Foram-se chegando, um gordo que parecia um barril de palmo e meio
com um braçado de livros
que foi mostrando antes de os atirar para o braseiro,
- Espinosa, leu Aka.
- Montaigne - ajuntou o gordo - e o Divino Marquês...
um segundo com
um com a ave já degolada
atirava para o lume punhados de penas
que erguiam no ar gelado nuvens de fumo pestilento.
- Estamos quase no fim dos livros.
A seguir temos de passar para os quadros,
explicou a criança com rosto de velho.
Tinha ido buscar um velho tambor de lata
e batucava o que parecia uma marcha fúnebre.
- Petit a petit, toute la France y passera, cantarolou ele,
enquanto o bigofone soltava gemidos a compasso.
- Já sei, exclamou Aka.
Tu és o Óscar.
- Je dis pas non, cantarolou o anãozinho.
E os outros entoaram em coro:
- Il dit pas non, il dit pas non...
Começava a cheirar a galinha assada
Aka sentiu água a crescer-lhe na boca.

quinta-feira, maio 04, 2017

terça-feira, maio 02, 2017

O DIABO NÃO ESTÁ SEMPRE ATRÁS DA PORTA


- Mas, às vezes, estou mesmo!

terça-feira, agosto 25, 2015

Noções básicas de História da Civilização

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- Do alto daquele escadote, prá-i uns cem mil anos nos contemplam, Quim!

domingo, agosto 09, 2015

A Razão de Barro, o Progresso de Ferro e o Syriza



Desconfio que já pouca gente conhece a fábula da Panela de Barro e da Panela de Ferro.
Foi contada pela primeira vez, julgo eu, por La Fontaine no século XVII, e traduzida para português, pelo Padre Nascimento que nessas coisas de letras assinava Filinto Elísio.
A história é simples, a panela de barro não queria ir passear porque receava qualquer percalço:
"- Iria com prazer", explica ela na versão de Filinto Elísio, "mas sou tão delicada, que se acaso num seixo ou tronco esbarro, lá fico esmigalhada."
Mas a panela de ferro garante:
"- Se é só por isso, podes ir comigo; é medo exagerado o teu - contudo, se houver qualquer perigo,  serei o teu escudo."
A panela de barro lá se deixou convencer e partiram as duas, lado a lado, num agradável passeio pelos campos. 
Como era, talvez, de esperar, "numa vereda estreita, eis que se tocam - e a de barro é feita, coitada, em mil pedaços!"
E lá vem a moral da história, porque uma fábula é isso mesmo: um conto de proveito e exemplo:
"Para sócio não busques o mais forte", escreve Filinto Elísio, "que te arriscas de certo à mesma sorte!"
-
Claro que já toda a gente se lembrou desta fábula a propósito da Alemanha e da Grécia e da sociedade em que entraram estes pequeninos países - o nosso incluído - julgando-se protegidos por aquelas nações muito avançadas, muito desenvolvidas, muito felizes.
Não eram esse desenvolvimento e essa felicidade uma forte e pesada panela de ferro que nos serviria para sempre de escudo? E não éramos nós, na nossa pequenez e na nossa fragilidade umas mínimas caçarolas de barro a precisar do generoso apoio dos grandes? Éramos.
Mas a generosidade é assim mesmo, quando acontece é muito bonita. Mas quem se fia na Virgem e não corre é burro.
Agora, pronto. Para aqui andamos a tentar juntar os "mil bocados" de que éramos feitos. Alguns perderam-se para sempre. Outros desfizeram-se em pó, como se o nosso barro antigo se estivesse a esboroar.
Não sabemos sequer se ainda acharemos cimento bastante no banco central europeu - ou, na pior das hipóteses, nas nossas alminhas tristes - para colar os cacos.
Mas esta é apenas uma das lições que a fábula nos pode ensinar. Afinal qualquer um pode encarnar a personagem «panela de barro» e achará com certeza inúmeras «panelas de ferro» que pode fazer suas.
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Voltemos à generosidade.
Afinal, o que aconteceu a essas nações, à Inglaterra, à Alemanha e, antes de todas, à França, pátrias do iluminismo, ansiosas por trazer ao Mundo a luz das suas civilizações? Não foram elas quem descobriu conceitos tão belos como o governo esclarecido, para o bem do povo, mesmo se exercido por um déspota? E os direitos naturais que viriam a resultar na Declaração dos Direitos, na fórmula simples e generosa que foi a divisa da França: a Liberdade, Igualdade e Fraternidade? O que aconteceu foi simples: apostaram numa coisa a que se chamou, provavelmente por falta de melhor termo, o progresso.
Compreende-se: toda a gente, e não é preciso nomear o Descartes nem os Enciclopedistas, toda a gente portanto, reconhecia que a Razão, essa capacidade que têm os humanos de estabelecer relações lógicas e assim chegar à causa das coisas, poderia igualmente tirar todas as consequências: passado, presente e futuro estavam escritos no Grande Livro da Natureza, com caracteres matemáticos, disse o Galileu.
Para resolver toda e qualquer questão, fossem problemas da fé e das religiões, fossem os da máquina a vapor, ou ainda os do bom governo dos povos, o simples encadeamento lógico das afirmações de que as matemáticas são um bom exemplo, seria bastante, mais cedo ou mais tarde, para chegar à verdade - e, consequentemente, ao Bem - porque o Bom, o Belo e o Verdadeiro andam de mãos dadas.
Foi o que se pensou durante muito tempo. Alguns como nós, mais ingénuos, diria eu, que também tivemos de tomar o nosso copinho de cicuta quando os senhores deste baixo mundo acordavam mal dispostos.
Havia, porém um problema que já Descartes apontara quando proferiu o seu penso, logo existo, "a única verdade talvez certa", no comentário ferino do Zé Fernandes em A Cidade e as Serras. 
É que a razão, com os seus princípios lógicos, com as suas regras todas elas bem estabelecidas, lida com juízos que são feitos de conceitos e encadea-los-á com toda a segurança. Mas só conduzirá à verdade se esses conceitos trouxerem já consigo também a verdade. Não é assim?
É um pouco como se tivéssemos aqui um par de cabazes, além outro par e concluíssemos que, sendo que três e dois são cinco, tínhamos no total cinco cabazes.
É verdade que três e dois são cinco. O que já não o é assim tanto é que uma das parcelas fosse «três cabazes». Mas, se tentares dizer que não, que só tens quatro cabazes, demonstram-te simpáticos, com muitas regras da álgebra, que dois mais três é mesmo cinco.
É essa a grande fragilidade da Razão.
Os informáticos conhecem-na bem e, quando nos ensinam a programar - ou, tão só a usar - os computadores, não se esquecem de nos avisar: «o que entra é o que sai». E, malcriadissimamente, acrescentam: «Se entra merda, sai merda».
É o mesmo com a Panela de barro.
Coze magnificamente, mas não tem a capacidade de escolher os ingredientes que lhe atiram lá para dentro.
Resultado: a sopa, a maior parte das vezes, acaba por sair uma porcaria. Pudera: o que lhe atiram lá para dentro é que o produz desenvolvimento, dinheiro, coisas úteis, prazeres, distracção... progresso, em suma.
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Não vale pena, portanto, quando vemos um noticiário na televisão a pena dizer que este mundo enlouqueceu, que atravessamos um período de irracionalidade ou que a Razão está morta.
Também no século XIX se proclamou «Deus morreu!» ou que «a religião é o ópio do povo». E se olharmos em volta, aí está a religião, mais viva do que nunca e com acessos de crueldade como sempre teve. E Deus, de tal maneira nos transcende, que continuamos a não poder afirmar com alguma dose de certeza que alguma vez existiu, quanto mais que morreu.
Com a Razão outro tanto se passa: para qualquer lado que se olhe, lá está ela: o produto que lhe encomendam chama-se, uma vezes ciência, outras tecnologia.

Parece que essas coisas são parte integrante, fundamental mesmo, do tal «progresso», mesmo quando se trata de tecnologias de morte, tão racionais como as bombas teleguiadas, os drones, as cadeiras eléctricas ou os fornos de Auschwitz.
À Razão propriamente dita, proíbem-lhe que se ocupe do bom governo dos povos, quer dizer: proíbem-na de questionar os seus próprios fundamentos.
Querem um exemplo?
Todos nós achamos que é racional que os automóveis modernos tenham cintos de segurança e tenham airbags. Muitas vidas se têm salvo quando ocorre um acidente a altas velocidades, não é verdade?
Mas não seria mais racional ainda que não se construíssem automóveis que atingem duzentos e muitos quilómetros hora, que exigem dispendiosas autoestradas onde não se pode passar dos cento e vinte?
Pois é: esqueçam essa treta de que a Razão morreu.
Está viva e bem viva: infelizmente está acorrentada à panela de ferro do progresso.
Como a esmagadora maioria de nós, não passa de uma escrava, mais uma entre tantos outros. Ou vá lá, para não nos esticarmos muito: foi domesticada e está ali amarrada à sua casota. Só tem direito de morder quem o dono considerar «intrusos».
O Syriza, por exemplo.

terça-feira, junho 23, 2015

OS DIAS DE CATARINA, hoje excepcionalmente, à noite

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Tenho uma relação péssima com a televisão.
Os comentadores irritam-me, grandemente porque nunca dizem nada de novo. Repetem, repetem, repetem. 
Os políticos, salvo aquelas excepções mesmo excepcionais, interrompem-se uns aos outros, tentam gritar ainda mais alto do que o opositor e repetem, repetem, repetem o discurso do caudilho mais caro aos seus ressequidos corações.
E eu, quando os oiço a debitar, a debitar, a debitar, zás! Mudo de canal.
Mas, helas! A maior parte das vezes os canais o que nos dão, quando não são casas dos segredos ou concursos idiotas, são crimes, violações, facadas, pancadaria de criar bicho.
Há dias, por um daqueles acasos que acontecem, calhou-me assistir ao rapto de uma menina de uns onze, doze anos, amarrada e pendurada pelos pulsos para a qual um energúmeno armado de facalhaz avançava cheio de más intenções: torturá-la até à morte, por exemplo. Graças a Deus e ao produtor da série, a bófia gentil apareceu aos tiros e salvou a menina.
Não sei se alguma das nossas filhas ou netas que acidentalmente tenha visto o episódio, conseguiu dormir nessa noite.
Resta procurar os programas infanto-juvenis. Mas, oops! 
Estão cheios de ninjas, uns que nos dizem serem os bons e que dão socos e pontapés na cara dos outros que, esses, são os maus: derrubam prédios de apartamentos com as as suas máquinas infernais, pisam os automóveis da civilização e vêm cheios de vontade de destruir o universo inteiro. 
E aqui há uns dias, num desses canais, por acaso o que costuma ser mais inofensivo, passou uma história em que, imagine-se, um juvenil toureiro, de estoque em punho, matava o seu toiro! Não assistíamos propriamente à execução do animal. Mas assistíamos ao risinho pimpão do toureirinho, orgulhoso do seu feito.
Pronto!
Resta a música clássica da Mezzo, pelo menos até à hora em que ela se transforma em jazz. Depois, olha, acabou-se. 
Que se há-de fazer? 

CATARINA: vestida para sair à rua.


segunda-feira, junho 01, 2015

Os dias de Catarina

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É capaz de haver demasiados «Esquinas» aí, por esse pobre país aí afora. Dizemos nós, claro ... mas, em calhando, até temos razão.

sábado, maio 16, 2015

BLASFÉMIA?


Recepção aos peregrinos.

terça-feira, maio 12, 2015

Alegados Judeus e alegados Arianos, uns gregos, outros alemães

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Durante a II Guerra Mundial, 46.000 cidadãos gregos, mulheres e homens, uns já velhos e outros ainda crianças, alegadamente judeus (mas podiam ser qualquer outra coisa, ciganos, comunistas, intelectuais, sabe Deus o quê), foram enviados para os campos de extermínio de Auschwitz - Birknau, na Polónia ocupada.
Só há uma coisa pior do que a maldade de que os humanos são capazes: a sua estupidez.
Não sei em qual das categorias devemos classificar a política financeira dos alemães de hoje.

Reler Eça



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«Elle, velho, que lhe fallava, trabalhára cincoenta annos a gleba, tivera o corpo vincado pelos azorragues, vira a sua choupana queimada pelo Senhor : em torno d'elle, longos tempos, seus filhos tinham gritado de fome, tremendo de frio, - e, escorraçado, esmagado, pisado, expremido pela força como um trapo vil, tomara uma faca e partira a fazer justiça no mundo.»
Eça de Queiroz, Ultimas Paginas, S. Christovam. Porto, Lello & Irmão, Lisboa, Aillaud & Lellos. 5ª edição, s. d., p. 149.

domingo, março 22, 2015

Queirozianos

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"Uma nação só vive porque pensa. Cogitat ergo est."
Portugal existe?

quinta-feira, janeiro 15, 2015

O Portugal, Caramba! gosta do CHARLIE HEBDO


E detesta fanatismos!

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Ando há muitos dias com este post atravessado. Desde o dia 7, mais exactamente, dia em que um par de energúmenos entrou a matar pela redação do Charlie Hebdo e deu cabo de doze pessoas que estavam a fazer o seu trabalho e não tinham elas-próprias morto ninguém. Não é, dir-se-ia, bonito chamar energúmenos a dois indivíduos que se julgavam mandatados por Deus para fazer o que fizeram, mas para mim é o mesmo: mataram. Não tentaram redimir. Não tentaram convencer os jornalistas das razões que ali os traziam, não lhes mostraram o mal que estava a ser feito nem lhes apontaram um caminho mais justo. 
Vejamos!
Eu sei que o Portugal, caramba! não é o blog mais lido no mundo inteiro, nem sequer aqui da freguesia. Para quê, então perder tempo com platónicas declarações disto ou daquilo, se ninguém aqui vier?
Mas não é isso que me importa. O que me importa é que eu próprio o diga o que acho que tenho a dizer. Pode não vir cá mais ninguém, mas venho eu, não já com o entusiasmo com que dantes soía porque muita coisa de fazer perder a paciência a um Santo aconteceu nos oito anos que o Portugal, caramba! já leva.
Por exemplo, apareceu com um impúdico estrondo o facebook.
Não se limitou a impor um novo conceito de amizade que nos vai obrigar, um dia destes, a inventar uma palavra nova para os amigos mesmo, aqueles cuja falta sentimos quando se vão embora e que nos alegram mesmo quando voltam. E não foi só isso: o facebook também se tem vindo a apropriar dos nossos minutos livres, e, pior, do direito de criar banalidades, às vezes a partir de coisas que mereciam o nosso real empenhamento.
Mas mais! O próprio mundo tem vindo a mudar.
Nestes poucos anos, o 43º presidente dos Estados Unidos, um tal George W. Bush, foi-se embora, depois de ter inventado um Eixo do Mal lá onde lhe convinha e cortado nos impostos dos ricos.
A seguir veio o Obama, o primeiro presidente norte-americano com uma costela africana (deve ter trazido com ele das Áfricas um tal Passos Coelho - não há outra explicação - e mandou-o para cá, não sei se por causa da base das Lages ou por outra vingança qualquer).
Os States, com a sua habitual teimosia e a mania de fazer tudo à bruta, perderam mais uma guerra, que o proficiente Bush tinha arranjado no Afeganistão e a seguir, depois de enforcarem o Saddam, perderam também a do Iraque.
Vieram-se embora, por causa da «crise do subprime» e porque uma data de bancos se tinha afundado. Como não se pode cavar na vinha e no bacelo e a economia americana não dava para resgatar a banca e, ao mesmo tempo, compor a trapalhada que se tinha arranjado lá pelo Médio Oriente, os marines foram sendo substituídos pelos drones e o combate ao Eixo do Mal teve de continuar com assassínios selectivos.
Para espanto, pelo menos dos que ainda se lembram de que o responsável pelos campos de extermínio nazis, o Obergruppenfurer Eichmann, teve direito a um julgamento com advogado de defesa e foi condenado por um verdadeiro tribunal, Osama Bin Laden nem sequer foi trazido para uma prisão e julgado, mesmo se sumariamente. Bin Laden, foi simplesmente abatido. E percebemos que era o que se fazia quando era demasiado incómodo trazer um suposto terrorista assim para uma qualquer Guantánamo, ao menos para se averiguar se era ele mesmo quem se julgava que era. E que, se fosse preciso torturar um preso havia mais de mil recursos que a carta das Nações Unidas se tinha esquecido de discriminar: afogá-lo repetidamente, por exemplo, como no antigo suplício da «estrapada». Ou então abandoná-lo à polícia secreta de algum país amigo que não se submeta a escrutínios democráticos...
E os meninos que estavam refugiados numa escola das Nações Unidas com os seus pais e avós e foram atingidos por um míssil que visava um suposto dirigente do Hamas, também não foram acusados de nada, nem foram presos, nem lhes leram os direitos porque decerto não os tinham: foram feitos logo em estilhas, não passaram de casualities, que é como quem diz, com um encolher de ombros, que foram danos colaterais.
Obama tinha prometido fechar a prisão de Guantánamo. Não fechou, como não fecharam as off-shores onde os traficantes de armas ou de cocaína guardam os seus fundos de maneio e de onde enviam as massas com que se compram vistos gold e mansões em Vila Moura... ah, e onde os gestores que afundaram as Exon e as Lehman  Brothers, para não falar de exemplos aqui mais à mão, guardam umas pequenas poupanças por outras...
Mas adiante.
Além de falar demais, tenho outro defeito. Julgo que se chama irreverência.
Não atribuo muita importância aos grande nomes, aqueles que se tem de escrever com letra maiúscula: Pátria, por exemplo. Presidente da República! A Igreja Católica, a Anglicana, o Islão, etc. Eu só respeito gente. Ao meu vizinho, nascido aqui na terra e, portanto, meu compatriota, a esse sim, eu respeito-o.
Ao Dr. Jorge Sampaio também e às gentes, certamente católicas, que vão ali à festa da Capelinha para angariarmos uns euros para umas obras mais urgentes. Há também um casal, Testemunhas de Jeová, julgo eu, que me vêm bater ali ao portão de vez em quando e com quem converso sempre um bocadinho sobre coisas várias, o saber e a fé, um pouco de Santo Agostinho, o que vier à baila. São pessoas cordiais, mostraram sempre respeito por mim, pelos meus cães, pelas árvores, em suma, pela Criação. E eu, que posso fazer senão trata-los com igual respeito?
Se fossem budistas, islamitas ou judeus, o critério seria sempre o mesmo.
Não, não é de borla o meu respeito: paga-se com respeito. Não foi uma aprendizagem fácil, tem-me demorado a vida toda, mas sei exactamente como começou.
Não sei se alguma vez conheceram um bombista, mas um bombista a sério, daqueles que levavam uma bomba debaixo do surrão, lhe acendiam a mecha e a atiravam para o meio da multidão. Eu conheci um.
Como normalmente era feita de pólvora própria para fazer fogo de artifício, ou da que se vendia para carregar os cartuchos de caça, a bomba ardia mais do que rebentava, estragava umas saias às senhoras e assustava os cavalos. O odiado bombista era preso, ia dar com os ossos no Aljube até ser deportado para Timor. Quando se acabaram os bombistas, uns deportados para aqui outros para ali, o Estado Novo pôde continuar na santa paz do Senhor.  
O meu bombista era desses.
Quando voltou do exílio, anos depois, o país estava dominado pela Legião e pela Pide, com o apoio firme de uns quantos generais e da enorme maioria de sargentos que lutavam por conseguir uma casita no Bairro Social da Ajuda.
Sem direito a voto, já sem correligionários, o meu bombista voltou para a terra, casou-se, criou os filhos e os netos, mas nunca se resignou.
Era carpinteiro, passámos muitas tardes, o meu irmão e eu, a vê-lo trabalhar na oficina e ouvir histórias antigas.
Um dia, não sei já como começou a conversa, mas também pouco importa, com ele todas as conversas iam parar à política que ele nos explicava com abundantes metáforas, poemas inteiros do Antero de Quental, ditos populares de pouco rigor, disse-nos que tinha sido anarquista.
E falou nos primeiros tempos da República, no Buíça e no Costa,  no Carlos, no Luís Filipe (ele nunca usava o honorífico «Dom») nos atentados e nas bombas: era essa a sua grande mágoa, o seu grande arrependimento a conclusão a que chegara:
«Porque isso, não há direito! Não eram bichos ruins, tinha era que se dizer que estavam a fazer mal, não era matar ninguém, nem a Maria Antonieta que era uma cabra!»
E é isso o que, passados estes anos todos de «aprende-desaprende» e «volta a aprender», acho que deve ser dito:
O Cabu, o Charb, o Wolinski, o Tignous e as outras vítimas do massacre na sede do Charlie Hebdo, como de todos os outros massacres, não eram bichos ruins. Eram gente, como eram gente os meninos na escola da ONU na faixa de Gaza, como eram os judeus exterminados em Trblinka, como sou eu e como somos todos, míseras criaturinhas de Deus.
Ponto final.
 

quarta-feira, dezembro 31, 2014

As Figuras do Ano: os reis eméritos de Espanha e de Portugal

He-he-he...

Ando há que tempos à espera de que essa mania de escolher a figura do ano, a cada ano passa, passe ela-própria de moda como costumam passar, mais ano, menos ano todas as figuras do ano. Complicado? Nem por isso.
Desta vez a sorte quase universal coube ao Cristiano Ronaldo. Não houve cão nem gato que não inchasse um nadinha o papo para reconhecer que o futebolista do Real Madrid era a personalidade incontornável, e tal e coisa.
Não é o meu caso, que nem sequer me dou ao trabalho de detestar o futebol. Quero que ele vá dar uma volta e que volte o mais tarde possível porque ainda me lembro do Euro 2004 e das vuvuzelas.
Não, mesmo sem gostarmos dessa mania, aqui no Portugal, Caramba! decidimos que não podíamos ficar atrás de ninguém e escolhemos, não uma, mas duas «figuras do ano». E, como somos exagerados, não hesitariamos em dizer mesmo «figurões do ano» se não temêssemos que os nossos leitores o achassem assim tipo, pejorativo. 
São eles Juan Carlos de Bourbon e Ricardo Espírito-Santo Silva Salgado. 
D. Juan Carlos, lembram-se, dizia-se que era o Rei  de Espanha, mas, em calhando era só ali de Castela e não muito mais: sabe-se lá o que pensavam dele os Catalães ou os Bascos, por exemplo. Mas adiante - D. Juan Carlos, portanto, farto da sua real pasmaceira, um dia, pimba! Deu cabo do canastro a um velho e enorme elefante que, provavelmente, gozava os seus idosos dias e uma merecida reforma algures numa reserva daquelas que, atroz eufemismo, se dizem "de vida selvagem".
Perguntarão: eufemismo porquê?
Ora, porque, por muito reservada que seja a reserva, há sempre um dia em que uma vida selvagem  lá consegue entrar com uma carabina Mannlicher nas unhas e zás! Elefante para o caraças.
Pobre rei. Se já não era muito amado, já não digo pela raínha Sofia, mas ao menos pelo povo leitor da Holla, o assassínio do velho elefante foi o golpe final.
Juan Carlos dignamente (ou não) abdicou.
Isto, como toda agente sabe, foi em Espanha.
Em Portugal também havia um rei.
D. Ricardo I, soberano disto tudo e, quem sabe se pretendente ao trono de Angola, tanto quanto é do conhecimento público, não matou o seu elefante. Aliás, tinha uma enorme manada deles, quase todos brancos. Quando já não conseguia mantê-los disciplinadamente a fazer habilidades no circo, consta que os terá largado na loja de porcelanas a que chamamos «a banca». (1)
E abdicou também.
Em Espanha havia um herdeiro, Filipe de seu nome que passou pelas Cortes e ficou bem no exame. Havia outra herdeira, mas, infelizmente, do sexo feminino. Em Espanha pode-se ser discriminada por muita coisa, por exemplo, por ser partidário da autodeterminação do seu cantãozinho natal. Ou então, por ser mulher. A pobre princesa teve menos sorte do que a cunhada D. Letícia que era plebeia e chegou onde chegou.
Mas o que é que isto interessa? Nada.
Mas, dado que Sua Majestade El-rei D. Ricardo I também abdicou, e estes lugares não costumam ficar vagos por muito tempo, seria, talvez, engraçado que o príncipe herdeiro, chame-se ele José Maria ou qualquer outra coisa, passasse ali pela Assembleia da República a receber a vénia dos deputadecos que por lá estivessem.
Ao menos ficávamos a saber a quem irão, a partir de agora, prestar vassalagem os nossos representantes.
Era fixe, não era?
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(1)  Ainda andam por lá a varrer os cacos. Mas do que já se vai percebendo, a «loja das porcelanas» afinal o que tinha por lá mais era umas canecas tipo manhosas, importadas de Singapura ou de quaisquer outros sítios desses. 

domingo, dezembro 28, 2014

FELIZ ANO NOVO, Ó GENTE BOA! (E má também, que remédio...)

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O Portugal, Caramba! deseja-vos um Ano Novo tão bom como o que o Sr. Passos Coelho pintou no seu discurso de Natal.

segunda-feira, dezembro 22, 2014

Os Maias e as suas personagens


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Estou em crer que Os Maias é uma história muito simples, feita de simetrias reveladoras.
Querem ver?
Por exemplo:
Gastão de Gouvarinho, ministro de coisas incertas, que achava que Luanda só precisava de um pequeno aperfeiçoamento, um teatro lírico onde a gente bem vestida e civilizada fosse repousar os cansaços de colonizadores, era casado com Teresa Thompson que o trai com Carlos da Maia porque o Carlos da Maia é um «dandy», uma forma superior de ser português que só se adquire depois de passear por Paris, Berlim, Londres.
Esse mesmo Carlos, por sua vez também a trai com a Maria Eduarda, a qual é também uma «dandy» "três chic", como diz o Craft, e, também ela com o inconfundível toque parisiense.
A Maria Eduarda, porém, apesar de companheira do brasileiro Castro Gomes, era já cortejada pelo invejoso e vingativo Dâmaso Salcede, personagem cuja patetice vai sendo sobejamente sublinhada por toda a gente. E tudo acaba em mal, por causado de «Mr. de Guimarães», o afrancesado revolucionário que revela o chegado parentesco dos dois amantes - afinal os «dandys» eram irmãos.
E enfim, quem é que triunfa nesta enredada comédia de enganos?
Não é a pobre Thompson que julgou ver em Carlos o homem diferente, médico num país de bacharéis em Direito e de amanuenses, com um perfume de civilização e de cultura e, pobre dela, acaba desenganada.
Também não é a abusada Maria Eduarda, criada ao Deus dará entre gente reles e  que julgou ver a redenção ali mesmo, numa casinha nos Olivais onde o amante a ia visitar.
Nem Carlos, cuja carreira de médico e de investigador se perdeu entre namoros e jantaradas.
Quem ganha, quem ganha sempre neste país ingovernável, são os Gouvarinhos que fazem carreira em políticas de «sabe Deus», chegam a ministros e jantam com a banca.
E, como que para garantir a simetria, ganha o Dâmaso, claro. Não se pense que, por ter sido humilhado e escarnecido, não teve a sua vingança de pretendente desprezado: em Eça, nada é tão simples como aparenta. 
O poeta Alencar é a imagem viva do pai de Maria Eduarda e de Carlos.
E o revolucionário Mr. de Guimarães, é, pela antítese, a imagem em negativo do inútil e pomposo Dâmaso. E, para que nós, leitores, não nos enganemos Eça não se esquece de sublinhar que o afrancesado portador das más novas, afinal, é um tio do Dâmaso.
Uma história muito simples, como se vê.