domingo, junho 17, 2007

O Cão que jogava xadrez XV

Vejo agora, minha Gentil Senhorinha, em que trabalhos se meteu o Deus-dos-Cães ao querer explicar o inexplicável.
Lembra-se, como se lembram as Belas Damas e os Garbosos Cavaleiros que me escutam, da questão metafísica que o seu Primo Carlinhos lhe colocou e que, em resumo se pode formular assim:
«Se tu és um Deus, daqueles que pode tudo, porque é que a vida não é uma Graça e a temos de pagar com o sofrimento?»
Claro, não foram estas as palavras exactas do Carlinhos que nunca tinha ouvido falar de Auschewitz, nem dos bombardeamentos de Guernica ou de Dresden.
Nem sabia (os Professores de hoje em dia não ensinam nada de jeito) das bombas de fósforo ou de fragmentação, nem dos rockets de nariz perfurante que penetram em cavernas onde velhos, mulheres e crianças se julgaram abrigados.
Nem sequer ouvira falar, ou talvez sim, mas distraidamente, ao sabor dos inócuos programas da televisão, daquelas coisas que só se percebem nas entrelinhas: das crianças-soldado, por exemplo, que são drogadas com haxixe para caminharem para a morte enquanto disparam as kalaschsnikov.
Compreende agora, Senhorinha, porque me internaram aqui, neste cemitério para vivos que eles se encarregam de transformar num infantário para mortos?
É por eu ser capaz de ver, mesmo onde não o querem mostrar, o escândalo da dor. A dor do bebé-foca, morto à paulada, como a dor do cão estrangulado com um arame, a dor de uma menina a ser violada por um cidadão deste mundo crápula.
O seu Primo, com os escassos onze anos, não tinha ainda ouvido falar de nada destas coisas. Nem ouvira dizer que as raposas são muitas vezes esfoladas vivas – coisa que ouvi eu e que era a pior das torturas chinesas, ao que consta – só porque a pele fica mais brilhante e rende mais cinco euros e trinta e cinco a peça. Mas tinha visto a Emplumada viva e via-lhe agora o corpito espetado num gancho.
Percebo, ao longe, os protestos das minhas Gentis Leitoras, incomodadas com estas pouco dignificantes considerações:
- Pronto, já percebemos, homem de Deus - dizem as Nobres Damas – O que nós queremos é o resto da história.
Eu, porém, sem querer ofender a delicadeza dos vossos sentimentos e, sobretudo, o vosso bom gosto, peço licença para intercalar só mais isto e volto já ao Carlinhos:
Como pode o particular subsumir o universal, é uma questão para os filósofos e gente dessa, que gosta de saber o que diz.
Mas para o Zé Nesgas, lembrai-vos, a prepotência do grandalhão da Alfredo Arroja tinha sido a de todos os grandes do mundo. Só se lhes respondia, decidiu ele nesse instante, de dedo espetado, muito malcriadamente, convenho, mesmo que depois se leve na tromba.
E para o Carlinhos, a Emplumada foi a crueldade indiferente dos homens, quiçá, também dos deuses.
- Irra! - impacientam-se as Damas e Cavaleiros e cheios de razão.
- Que respondeu afinal o raio do Deus-dos-Cães? - perguntam.
Alonguei-me. Defeito meu que a Minha Senhorinha já conhece e pelo qual, por mais de uma vez, lhe pedi desculpas.
Que disse ele?
Ora, que havia de dizer?
Desviou a conversa, foi o que foi.
Já estou a ouvir os protestos que não deixarão de ter proferido as minhas gentis leitoras:
- Mas ele explicou ou não? – perguntam-me.
E eu respondo que não me compete a mim, pobre internado num Hospício em Rilhafoles, alterar uma vírgula aos eventos, se é que estes também usam a pontuação dos gramáticos.
- Man, - foi, portanto, exactamente o que disse o auto-denominado Deus-dos-Cães – vinhas cá para arranjar um cão que jogasse xadrez ou não?
O seu Primo, mesmo exaltado, teve de concordar.
- Isso. E que não se importasse de ser aspirado para não largar pelos na alcatifa.
- Então, pronto, já aí a tens. Põe-te na alheta e não queiras emendar o que já está feito.
- Porquê? – perguntou o Carlinhos.
- Mas eu não sei jogar xadrez. – interrompeu, timidamente, a Magrizela. - E já sou burra demasiado velha para aprender línguas.
- Isso dá-se um jeito. Como é que há-de ser?
- Mas, - insistiu o Carlinhos, olhando lá para cima para o gancho – e ela?
- Ela o quê, pá? Não sabes que a vida é como um comboio, para que uns vão entrando, outros têm de sair? E não chateies, porra. Estou aqui a querer ajudar-te e tu não deslargas!
- Mas eu só quero perceber! – gritou o Carlinhos outra vez exaltado. – Porque é que não me explicas isto tudo?
- Porque também não sei, porra! Julgas que é fácil entender?
Calou-se amuado.
Mas depois espetou um dedo direito ao seu Primo:
- Este Canil, por exemplo, desde 1878, foi sempre gerido pela Liga dos Indefectíveis dos Animais, tázaver, uns fixes que recolhiam os vadios, aí como a Magrizela, tiravam-lhes as carraças, davam-lhes de comer e tentavam arranjar-lhes uma casa. E pronto. Era isso.
Fez outra pausa meditativa.
Os Diabretes que, como a minha Senhorinha se lembra, tinham andado à pancada, vieram sentar-se ali ao lado, a lamber as nódoas negras.
- E eu já desde o advento do cristianismo, século III ou IV, tinha largado tudo: templos incendiados, crentes perseguidos... eu que era o Anubis, o Deus-Chacal, já andava a passear pela Índia, pela África, pelo espaço para todos que ainda havia, homens, cães, feras…
- Chamas-te Anubis, é? – perguntou o seu Primo Carlinhos. – Já vi uma pintura com o teu retrato. Não estás muito parecido, pois não?
- Bico! Perguntaste, não foi? Agora ouves. Onde é que eu ia? Ah! A África. Depois foi o Livingstone, I presume, e o Capelo e Ivens e o Serpa Pinto que não presumiam nada, e as carabinas com balas dum-dum, todas essas porcarias e lá se foram os elefantes, os leões, o resto dos ursos. E fiquei eu com o problema nos braços.
“Como é que eu ia salvar os cães e as raposas, lobos, hienas, chacais e os coiotes, hem? E os mabecos? Sabes o que são os mabecos? E os dingos? Não sabes, ninguém sabe. Matam-nos, pum-pum, e esquecem-se de que são vocês que dão cabo da caça com os químicos e pesticidas. Uns comem os figos e aos outros rebenta-lhes a boca, também nunca ouviste dizer, pois não? O que é que tu sabes, puto? Não sabes nada, estás para aí a armar-te!
“As raposas foi fácil, à custa de algum sofrimento, claro, como Ápis salvou os toiros para morrerem nas praças…
“Os lobos, os lobos é que são o problema, porque estás a ver, os cães havia sempre alguém que tomava conta de um ou de outro, um de guarda outro de caça, os mais sacrificados eram os de regaço, tázaver! E aqui a Liga dos Indefectíveis fazia o que podia, em Inglaterra, em França havia clubes, uns do Boxer, outros do Setter ou do Bull Terrier… A coisa ia andando, era uma no cravo, outra na ferradura, mas ia andando.
“Até que houve uns gajos que começaram a perguntar para onde é que iam os impostos deles, e que não queriam pagar do seu dinheiro hospícios para os velhos que não tinham um seguro saúde e de coisa e tal… e que gostavam era de peixinhos doirados, porque é que o estado subsidiava este Canil Municipal que só dava despesa?
“E vá de se atirarem aos Indefectíveis. Que não mantinham a higiene, que os cães não estavam em espaços mínimos recomendados pela Comissão Europeia…
“Inventaram tudo, tázatopar, ó mongas?
“Agora passou a ser assim: espaço mínimo exigido, porreiro. Se há mais um cão que seja por hectare, que é que tu pensas que se faz?
“Pois, é isso. Tira-se-lhe o pio. Nhofas, arame ao pescoço e quando já não respira, às vezes antes até, crac, pendurado ali no gancho.
“Sim, porque ninguém é obrigado a pagar pelos cães quando gosta é de gatos, nem pelos gatos quando gosta é de canários. Rentabilidade, tázaver, rentabilidade, auto-sustentabilidade, racionalização de custos, essas coisas todas. Tás a perceber o que eu te estou a dizer?
O seu Primo, Senhorinha, abanou a cabeça desconsolado.
Queria uma resposta pão-pão, queijo-queijo, tipo «Deus está no Céu, na Terra e em toda a parte», «Fé, Esperança e Caridade», e «a treze de Maio, na Cova da Iria».
E o que lhe davam, era uma salada mais esquisita do que as da Mãe quando resolvia que estavam a engordar e precisavam de fazer dieta. E o tal Deus-dos-Cães, Anubis ou o que tinha sido, ainda fazia troça.
- Mas tu alguma vez viste alguma coisa, tu? Que é que tu queres da vida, sim, tu, ó mongas?”
- Ele ainda é um puppy! – rosnou a Magrizela, porque o seu Primo, Senhorinha, atónito, se tinha deixado descair para o chão. - Que é que tu tens que estar a chateá-lo?
O Anubis, Chacal ou o que fosse, encolheu os ombros:
- Sei lá. Que é que tu queres, tu também? É a vida.
- Não, não é. - respondeu a Magrizela, sem saber que, meio século antes, já um tal Boris Vian tinha respondido a mesma coisa. Mas o Boris Vian, como a minha Senhorinha tão bem sabe, adorava todos os animais, desde os ratinhos aos buldogues, mesmo se tinha uma clara preferência pelas meninas bonitas.
E, Senhorinha, gentis Leitoras, Cavaleiros, algum ou outro vilão como as enfermeiras aqui do hospício que se tenha subtilmente imiscuído: estou esgotado. Têm sido demasiadas as emoções, os terrores.
Juro que nunca mais venho aqui de noite, descalço, sujeito a pisar baratas, lesmas ou bichos de conta, só para vos escrever neste computador lento e caprichoso. Nunca mais, mesmo que a história do Carlinhos fique incompleta.
Se eu conseguir manter o juramento.

domingo, junho 10, 2007

O Cão que jogava xadrez XIV

Sabe, Senhorinha, minha Gentil, que estou em pensar que quem quer que tenha escolhido os letreiros das portas do Canil Municipal, acabou por mostrar um perverso sentido de humor?
Aquela por onde passou o cortejo liderado pela Magrizela, tinha uma lustrosa placa de plástico preto com letras amarelas e uma única palavra:

AVERNUS
Claro que ninguém era versado na língua latina. O seu primo Carlinhos, que suava as estopinhas nos varais lá de trás da padiola (onde ia deitado, talvez em coma, o Deus-dos-Cães) andava no 6º ano e ainda não chegara a essas complexidades. A Magrizela e os restantes canídeos que se lhes juntaram, esses além do caniguês materno, falavam a língua dos lares onde tinham nascido, quando se davam a esse trabalho.
E os Diabretes que tinham trazido a padiola e penavam agora nos varais da frente, se alguém se tivesse lembrado de lhes perguntar, teriam respondido com o gesto de apontar: o Averno? Bom, era aquilo ali dentro.
- Sim, mas o que é que quer dizer? – teria perguntado o Carlinhos se o suor que lhe escorria para os olhos não lhe turvasse até a curiosidade.
A resposta teria sido, no entanto, muito semelhante à que foi: um dos Diabretes que ia à frente, sem largar o varal que lhe competia, deu um pontapé na porta metálica que se escancarou.
Do outro lado era a visão do horror.
Cães e gatos pendiam de ganchos como se estivessem no talho, separados por tamanhos.
Uma enorme caldeira borbulhava ruidosamente mais além. Umas máquinas de plástico e metal ocupavam-se de incompreensíveis tarefas diante de ecrãs de computador. Lá em cima, as fileiras dos ganchos rangiam e avançavam aos sacões.
E foi horrorizados que o seu Primo Carlinhos, a Magrizela e os restantes cães, viram surgir, de olhos fechados e língua pendente, o corpito frágil da Emplumada.
- Chegámos tarde! – murmurou a Magrizela. – Demasiado tarde!
Um cão grande que os seguira deitou-se no chão a gemer baixinho.
- Mas isto… - gaguejou o seu Primo – isto é o quê?
- Então, - disse o Diabrete mais velho. – É que está escrito na porta: é o Schlachthoffünf. Não, o fünf é outra coisa. Pronto, aqui é a cozinha.
- Cozinha? Qual cozinha? Já estás é fora de prazo – troçou o mais novo. – Uma cozinha com guilhotinas e electrochoques? Aqui é, mas é o matadouro.
- És mesmo um margolim. Não vês que é a mesma coisa? – tornou o mais velho.
- Ai é? Margolim és tu, ó picochoso! – e zás.
Num momento estavam ao pontapé um ao outro.
O Carlinhos estava tão apardalado que nem notava as sacudidelas da padiola.
Quem notou foi o Deus-dos-Cães que, saindo do coma, levantou a cabeça, com as orelhas perigosamente para trás.
- Vocês aí, toca a acabar com a baderna! Já não se pode dormir em paz, não?
Foi demais, Gentil Senhorinha, para o seu Primo.
- Quer dizer… quer dizer que aqui matam os cães? E tu deixas?
- Tu aí, ó bardajola! Porta-te bem ou ainda te transformo em rato.
- Mas tu deixas?
- Claro que deixo. Que é querias que eu fizesse? Sabes quantos cães nascem por dia? Achas que há comida para todos? E casas? Achas?
O Carlinhos atirou com os varais ao chão e o Deus-dos-Cães à mistura.
- Mas tu não dizes que és o Deus dos Cães, tu? – numa fúria, cresceu para o outro que ainda nem se levantara e agarrou-o pela gola do blusão.
- Deslarga-me, ó mongas. Tázóvir?
- Só te largo quando me explicares isto tudo! Como é que tu deixas?
- Vê-se mesmo que não percebes nada de economia, pá. Vá lá, ou me deslargas e eu explico ou transformo-te em rato e vais parar ali ao caldeiro.
- Quero lá saber do caldeiro! Que é isso da economia?
E abanava mais e mais os colarinhos do Deus-dos-Cães, sem ligar à Magrizela aflita que tentava separá-los a bem.
- Deslarga-o lá que ele explica! Tu é que és muito puppy e ainda não sabes quanto custa estar vivo.
- Estar vivo o quê? A vida é um dom de Deus! – gritou o Carlinhos impaciente, como lhe tinham ensinado na Catequese.
O Deus-dos-Cães desatou a rir-se:
- Um dom? Pá, vê se aprendes alguma coisa, ouviste?
E sacudido pelas estrondosas gargalhadas, com as lágrimas a correrem-lhe pela cara e a ensoparem-se na barba, a estranha divindade perdia as forças, deixava-se cair para o chão, a tal ponto que o seu Primo teve de o largar.
Foi a Magrizela quem, tão suavemente quanto pode, o esclareceu:
- Pois, sabes? Dantes julgava-se era assim. Agora já se percebeu...
- Já se percebeu o quê?
- Que a vida não nos é dada. É alugada, percebes? Tens de pagar a renda, pontualmente. Ou os teus pais por ti. Se não tiveres dinheiro, estás bom ali para o caldeiro, percebes?
- Tu não davas, nem cinquenta latas de almôndegas com molho para cão. – troçou o Deus-dos-Cães, já levantado e a sacudir o pó das mangas do blusão. – Mesmo muito disfarçado, não passavas por cabrito. Se fosses um gato ainda prestavas para alguma coisa. Sempre te podiam vender por lebre!
- Mas porquê? – insistia o Carlinhos. – Tu não és um Deus, daqueles que pode tudo?
O Deus-dos-Cães corou e ficou embatucado.
Como o Huck Finn, fingiu que tinha um osso atravessado na garganta.
Há quanto tempo não tinha de responder a uma pergunta daquelas?
E o que é que podia dizer?
Infelizmente tenho de parar por agora. Mas prometo, Senhorinha, Nobres Damas e Generosos Cavaleiros, que tudo o que for dito pelo Deus-dos-Cães, será aqui fielmente relatado se, por algum acaso dos comprimidos e cápsulas que me obrigam a tomar aqui no hospício, eu me não esquecer.