sexta-feira, julho 30, 2010

Adieu l'Antoine, je t'aimais bien, tu sais...

Não cheguei verdadeiramente a conhecê-lo. Trocámos um ou dois apertos de mão, meia dúzia de palavras, se tanto.
Ele era muito novinho, já de outra geração. Eu não dava por isso, mas estava a caminho de ser apenas mais um cota, como tantos outros.
Raymond Chandler escreveu num dos seus romances que partir é morrer um pouco, mas que ficar é morrer muito mais.
Agora que o António Feio partiu, por curioso que pareça, sinto como se tivesse perdido um irmão mais novo. Como se tivesse morrido, também eu, muito mais.
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domingo, julho 25, 2010

Subsídios para o livro de Aka XXIV

Quando ouviu gritar "Jaqui", Aka não se voltou logo, apesar da onda de frescura,
como alguém que, de noite, numa rua mal iluminada, sentisse de súbito o cheiro do pão quente.
Com mais de mil nomes,
ninguém se devia espantar se Aka não se reconhecesse em todos.
Mas espantavam-se.
Espantavam-se que detestasse os mais vulgares,
aqueles em que as pessoas vulgares na sua vida teimavam,
como se ela fosse pertença de meras palavras,
a private joke de cada vulgaridade.
Algumas vezes, Aka reconhecia-se imediatamente.
Jaqui era o nome que lhe dava a doutora Wali,
a mãe velha que montara o pequenino hospital de mulheres onde a Aia a levara muitas vezes em criança.
"Não, Jaqui", dissera a médica: "Não és tu quem tem as alergias.
O mundo é que é alérgico a ti e não quer deixar-se tratar.
Vem ver-me só quando te apetecer uma coca-cola, combinado?"
Jaqui foi muitas vezes beber uma coca-cola com a doutora Wali
até que ela desapareceu,
levada por um projecto mais urgente,
uma dor do mundo mais aguda,
uma fractura,
uma ferida mais infectada.
Aka ficou a olhar as duas mulheres que se abraçavam,
a Jaqui era uma mulher alta, de meia idade,
a amiga era preta e muito bonita,
muito diferentes de Aka ou da doutora Wali,
mas, por um momento, sem se darem conta disso, espalharam uma pequenina onda de bem-estar por toda a rua.
O mundo, que é alérgico à felicidade, trouxe logo uma ambulância,
apertou-a no trânsito, deixou-a muito tempo a gritar a sua urgência.
Aka entrou na loja dos animais para comprar um peixinho encarnado.

segunda-feira, julho 19, 2010

Cêpêéle... o quê?


- Não, não!
Tenho muito pena,
mas receio que a minha pátria não seja a língua portuguesa...

segunda-feira, julho 12, 2010

Pata de Coelho

Uma das tradições na minha família, daquelas de que só se fala com um sorriso, é a da pata de coelho: quem anda à procura de casa, quem quer fechar um negócio que tenha a ver com um futuro lar, vai à procura da patinha do coelho, mete-a no bolso, ou na pasta e só a arruma de novo quando o negócio estiver concluído.
Lá em casa havia uma.
Mumificada, sequinha, mas ainda com todo o pelo cinzento, costumava estar embrulhada num papel pardo, ao canto de uma caixa de madeira, no guarda-fato da Avó.
Essa caixa, para aí de uns cinquenta centímetros e uma mão travessa de fundo, era uma autêntica arca do tesouro: lá estava uma raspadeira de cabo de marfim e muita ferrugem, o lacre e o sinete do meu Avô falecido em 1913, várias latas e latinhas, umas com moedas do tempo da Monarquia, outras com santinhos, um molho de cartas atado com uma fita azul,um canivete oferta de um Vinho do Porto, uma mãozinha de cabo comprido para coçar as costas, os primeiros dentinhos de leite de cada um dos netos dentro de outra caixa, postais ilustrados, uns já escritos, com selos exóticos, outros com vistas do Canal de Suez - que, por serem de uma colecção, ninguém usava.
Não me lembro de quem herdou essa caixinha das surpresas. Na volta, fui eu, mas não sei onde pára. Nem a caixa, e pior, nem a dita patinha de coelho.
E se ela está a fazer falta!
Alguém da nossa família, não se alumia os nomes aos santos, anda metido em tranzes desses e, portanto, muito carecido de um amuleto apropriado.
Por esse motivo e não por outros, aqui lhe mando, desenhada a patinha, que em pessoa não ia pelos fios mesmo que conseguisse achá-la.
É claro, não pensem que eu ia fazer o mesmo pecado que fez o Frei Genebro. Lembram-se?
«E imediatamente, com os olhos a reluzir de caridade e de amor,» escreve o Eça, «agarrou o afiado podão que pousava sobre o muro da horta [...] E aí, andando sorrateiramente de tronco para tronco, surpreendeu um bacorinho desgarrado que foçava bolota, desabou sobre ele, e, enquanto lhe sufocava o focinho e os gritos, decepou com dois golpes certeiros do podão, a perna por onde o agarrara.»
(Eça de Queiroz, Contos, «Frei Genebro», Lello & Irmão, Vol. 1, p. 770)
Por isso, a dita pata aqui vai, junta com o coelhinho, inteiro e vivinho da Silva.
E quatro patinhas não valem mais do que uma só?

quarta-feira, julho 07, 2010

Vai-te a eles, pá!

Citroën ASK400, lembram-se?
(Desenho do Franquin, com a devida vénia)
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Não tenho o prazer de conhecer o fotógrafo Paulo Nazolino.
Mas sei que se recusou a apresentar documentos comprovativos de que era bom cidadão, pagador dos seus impostos e isso. E pronto: não recebeu o prémio.
«Comprovativos?» terá ele pensado.
«Bom cidadão?»
Até podia não ser.
Que é que isso tem a ver com o facto de ser um artista? O prémio não era para o cidadão, pois não?
Era como se, por exemplo, o Mickael Schumacher não pudesse subir ao pódio, no fim de uma corrida pelo simples facto de ter uma multa de trânsito por pagar em Tombuctu.
Portanto, olha, que se lixe o prémio da AICA e mais do Ministério da Cultura.
Eram para ser 10.000 euros, mas, sabem como é: não há excepções.
Toda a gente paga para receber.
E 10% de imposto sempre são mil euritos, fazem muito jeito aos cofres do Estado. O dinheiro dos pobrezinhos é pouco, mas quem o perde é louco, não é? Perguntem à banca, a ver se não é.
E é bem verdade que 9.000 euros, nos tempos que correm, são só 9.000 euros.
Dá para comprar o quê?
Uma boa máquina fotográfica?
Daquelas verdadeiramente boas?
Se calhar não chegava.
Talvez desse para comprar um 2CV.
Sem vidros eléctricos, nem abertura automática da capota, nem ar condicionado.
Queres vento na cara? Abre a janela. Se lá fora ainda estiver mais quente do que cá dentro, encosta ali a uma sombra e faz uma sesta.
A Citroën, que a alma lhes apodreça de vergonha, já não faz o 2CV, nem a ASK400.
Para quê, então, aceitar a humilhação que lhe queriam impor?
O Paulo Nozolino não se curvou, não foi obediente, não foi poupadinho.
Que se lixem todos, mais os prémios, mais os subsídios, mais as bolsas, terá ele dito. Dêem-nos aos vossos boys, está bem?
Grande Nosolino!
Força, man! Vai-te a eles, pá.
Assim é que é.

sexta-feira, julho 02, 2010

A volta do Concha Y Toro












"Sabe, no fundo
eu sou um sentimental .

Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dose de lirismo (além da síflis, é claro)

Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar,

Meu coração fecha os olhos e sinceramente chora."


Fado Tropical, Chico Buarque, Rui Guerra

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Querem saber?
Ando por aí, de supermercado em supermercado, de prateleira em prateleira, à procura.
Eu juro que já a vi, num daqueles dias em que devíamos bater em nós mesmos, de tão burros que estamos. Porque é que não a trouxe logo?
Era fim de mês, se calhar, o dinheiro já se fazia escasso?
Mesmo assim. Foi imperdoável.
Chamava-se Concha y Toro, Casillero del Diablo, era uma garrafa igualzinha, excepto na data, claro, a uma outra, de saudosa memória, trazida do Chile e que guardávamos para celebrar o derrube do general Augusto Pinochet.
Não chegámos a bebê-la: morreram ambos, o vinho, inocente, na sua garrafa, cansado de esperar, o Pinochas na cama, os pecados perdoados, quem sabe, por algum desses padres anti-operários, anti-comunistas, por causa de quem, ao cheiro dessa canela, Cristo se despovoa.
Mas se o Pinochas era um reles ditador, era também o símbolo de todas as reles ditaduras sul-americanas.
Culpa de Neruda? De Isabel Allende? De Spúlveda?
A Argentina e o Brasil tiveram, certamente, os seus escritores. Não terão alcançado a notoriedade, as suas denúncias ficaram, talvez, abafadas por livros como o De amor e de sombra.
Ou fomos nós que nos deixámos ofuscar.
Quase nos esquecíamos dos Videla, dos Castello Branco.
E mais.
Não passavam, todos eles, na sua empáfia condecorada, de testas de ferro, marionettes nos palcos da sul-américa. Mas de tal modo concitavam o ódio, quase nos faziam esquecer o Henry Kissinger, as secretarias de estado, os Nixon e os Ford.
Não chegámos a beber a Concha y Toro primeira.
Mas agora que o Videla, já condenado a prisão perpétua, indultado e novamente preso em prisão domiciliária, agora que vai novamente a julgamento, meu Deus!
Desta vez, não escapa. Quero uma Concha y Toro segunda para celebrar, pronto!
E, talvez não devesse dizê-lo, mas sei aí de um Porto, quase com cem anos.
Adivinhem quando é que a gente o vai beber.

Sem legenda