quarta-feira, novembro 21, 2018

Carta Aberta (talvez melhor: Desabrida) ao Manuel Alegre



Dâmaso
- Eu cá, é de atracão!
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Grande Manuel:
Deixa-me dizer-te como aprecio a tua intervenção pública e ousada nesta questão do politicamente correcto. Também eu, frequentemente opto pela incorreção - não no caso do massacre dos toiros para gáudio sádico de uns quantos espectadores, não em andar aos tiros a coelhitos que só iam na vida deles sem incomodar ninguém, mas, para dar um pequeno exemplo - quando toda a gente incensava o tua «A Praça da Canção», eu, incorrecto como sou, achei-o superficial, mero aproveitamento do tempo que passa (como o vento?). 
Não penses que duvido da nobreza dos teus sentimentos de resistente anti.fascista. Mas sempre suspeitei de que, à mistura, vinha alguma dose de vontade de ser reconhecido, tipo ser «o maior da cantareira». Estarei em erro? Coisas da minha dose de incorrecção. Tu o dirás.
Adiante. Quero que compreendas que eu também compreendo os teus gostos aristocráticos, Manuel: Afinal, ir à caça com a espingarda debaixo do braço e uns grupo de amigos apreciadores do ar livre é elegante., Ir assistir a uma tenta de gado na herdade de um ganadeiro amigo, ser parte da Festa Brava, são coisas que afidalgam que se farta.
Só há uma coisa que eu não percebo: terás medo de que os aficionados deixem de ir às toiradas a 13% do IVA e passem a frequentar o Balet, só por causa dos 6%?

terça-feira, setembro 25, 2018

A FÁBRICA DAS ALMAS
(Dedicado à Beatriz Lamas de Oliveira)

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Antigamente, muito muito antigamente, para aí quando Deus ainda andava pelo Mundo, as almas eram assim como os cereais, que só foram domesticados, num sítio longínquo, chamado Neolítico.
Antes, portanto, só não cresciam nas bermas dos caminhos porque não havia caminhos nenhuns, só umas veredazinhas de pé posto. As almas, por isso, iam crescendo ao Deus dará. Passava uma futura mãe doninha, ou raposa, ou o que fosse, e as almas entravam pela barriga onde os cachorrinhos já se iam acotovelando para nascer. Às vezes, muito raras felizmente, não havia almas que chegassem e um bebé nascia morto ou quase, quase. Era tão triste que, não raro, acontecia o milagre: uma alma vinha a correr mais de longe, chegava esbaforida, mas ainda a tempo. O bebé demorava mais um bocado a recuperar, mas aí estava ele, passado umas horas ou, vá lá, uns diazitos, a empurrar os outros, a brincar, às cambalhotas e a mamar pela vida.
Com as devidas diferenças, era assim com todos os outros bichos, desde as lagartixas às abelhas, aos pardais e às sardinhas.
Com os homens foi o mesmo durante muitas e muitas voltas do Sol à roda deste pontinho do universo. Mas, claro, os tempos passam, os homens foram-se juntando em aldeias, e como aprenderam a semear o trigo, também aprenderam a fazer umas almas por outras, assim artesanalmente, o xamã juntava uns ingredientes, fazia umas rezas e encantamentos e pronto, Ia havendo almas para todos.
Não quer dizer, claro, que uma rapariguita que fosse dar uma volta com o namorado ali ao bosque mais próximo não apanhasse uma alma, digamos, selvagem, para o filho que havia de nascer.
Infelizmente apareceu um povo que exigia o monopólio do fabrico de almas: só as almas «Jeová» eram consideradas genuínas. E, ainda por cima, só se encontravam disponíveis nuns sítios chamados Sinagogas onde os estranhos ao povo eleito não podiam entrar. Os outros povos, coitados, mal ou bem, expulsos ou massacrados, lá iam tendo os seus xamãs.
Dizem os entendidos que a polémica que custou a vida a homens bons,como Jesus ou João Baptista, estalou como uma guerra feroz. Dum lado estavam os que achavam que as «Almas Jeová» deviam ser também concedidas aos gregos, aos romanos e egípcios, e pronto, a toda a gente, Do lado oposto, entrincheirados na Sinagoga, os que continuavam a defender que as almas são só para o povo escolhido e basta. Esta guerra tem tido episódios tristes, tantos que não vale a pena citar nenhum.
O certo é que esta primeira batalha pela globalização foi sendo ganha pelo grupo conhecido como «Cristão», sobretudo a partir do momento em que o poder político e militar do Império Romano lhe emprestou o braço forte: o imperador Teodósio I tornou-o «religião oficial do estado». As «Almas Jeová» expandiram-se e passaram a estar disponíveis até mesmo para os escravos, desta vez nas Igrejas também.
É claro, outras fábricas de almas, como as Mesquitas foram surgindo, e continuaram a expansão por esse mundo fora, dando origem a cenas muito, muito tristes, guerras e, nos nossos dias já, bombardeamentos num quase, todos contra todos, só dinheiro é que parece importar nesta questão de Almas.
E a produção artesanal, perguntarão. Pois, na verdade, nunca parou. Perseguida pelas Inquisições, umas vezes sob a acusação de «judaísmo», outras de «feitiçaria», e sempre de «heresia» foi resistindo como poude, Tem até recrudescido um pouco nestes últimos tempos graças à tendência para um certo sincretismo religioso que privilegia, estamos em crer; o misticismo em detrimento dos rigores formalistas.
E pronto. Espero não vos ter maçado muito.

sexta-feira, julho 06, 2018

EUTANÁSIA, ou nem por isso?



EUTANÁSIO, TUTANÁSIAS, ELE...

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Perdoar-me-ão o cepticismo, (ou não, que hei-de eu fazer?)... O facto é que, nos últimos dias, tenho lido, por aqui e por ali, tudo o que me aparece sobre o problema da eutanásia e a conclusão a que chego é que é demasiada areia para a minha camioneta. Se eu estivesse no lugar do Marcelo Rebelo de Sousa, desconfio que vetava a lei, qualquer que ela fosse, que a remetia de novo ao parlamento para que a pensassem duas vezes.
Notem que eu sou a favor do suicídio medicamente assistido sempre que alguém, em extremo sofrimento, não tenha sequer a autonomia para subir ao décimo andar, galgar a janela e zás! Pode, por exemplo, estar acamado, ou ser paralítico, ou ter perdido braços e pernas na explosão de uma mina anti-carro, sabe Deus... A única coisa que eu exigiria, se fosse eu o legislador, era que fosse sempre, em qualquer caso, o suicida a suicidar-se, a premir o gatilho do revólver que tenha à sua disposição; que não venha médico nenhum, enfermeira ou parente próximo disparar por ele, dar-lhe a colher de 605 forte no boca, empurrá-lo pela janela. Tudo bem que lhe arranjem uma pistola, que introduzam uma bala na câmara: mas premir o gatilho tem de ser ele, o suicida. Ninguém por ele, a seu mando, a súplica sua.
Pois, dir-se-á, e se ele estiver paralítico, por exemplo? 
Bom, a tecnologia já tem resolvido problemas mais complexos. Lembrem-se, para não irmos mais longe, do Stephen Hawking, que continuou sempre a trabalhar e a escrever os seus livros apesar da completa atrofia muscular.
Resta, claro, o problema da eutanásia, que eu não entendo lá muito bem e que me causa bastos engulhos. 
Comecemos pelo caso mais simples, para mim, pelo menos: imaginem que eu tenho um canito, já velhinho, com uma doença que lhe causa o maior dos sofrimentos. Que recomenda o senso comum que eu faça? Que o leve ao veterinário, o qual, se não lhe dá uma «boa morte», pelo menos acaba com o sofrimento que a ciência detecta, ao mesmo tempo que se lhe acabam os sinais vitais. Como a nossa cultura «cristã-empresarial» se recusa a admitir que os animais (mas só os outros, os não humanos, e mesmo assim...) tenham alma, os escrúpulos acabam aqui. 
Diferente é o caso de uma criança. Se o meu filho bebé tiver uma doença incurável, fatal e terrivelmente dolorosa, que posso eu fazer? Tal como o canito do exemplo anterior, o bebé não tem capacidade para pedir que lhe abreviem o sofrimento, mas eu que o amo profundamente, não tenho o recurso de o levar ao veterinário... e só quem nunca esteve com uma criança que, mesmo encharcada em analgésicos, se contorce de dor e grita o seu desespero, me poderia condenar se eu assumisse a morte do meu filho e a pedisse encarecidamente... E, no entanto, é o que a sociedade, com os seus esbirros me faz. E, tanto quanto apurei, é a solução que, da eutanásia, nos quatro projectos que amanhã serão discutidos no Parlamento, unanimemente se exclui.
E pronto. Eu sei que há muito mais, mas por hoje é tudo. Sejam felizes e, se puderem, releiam o conto «O Alma-Grande» do Miguel Torga. Talvez venha a propósito, que sei eu?

quarta-feira, abril 18, 2018

CATARINA E OS REFLEXOS

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            - Pai? Hoje perguntei à Luísa… Tu sabes, Pai! A minha professora chama-se Luísa.
            . Desculpa, querida, estava a pensar noutra coisa. O que é que tu perguntaste à tua professora?
- Perguntei porque é que as palavras são iguais.
            - Iguais? Iguais como?
            - Tu disseste que o reflexo é tipo haver uma luz muito forte e a gente fechar os olhos sem pensar. Mas reflectir, tu dizes sempre que é pensar duas vezes numa coisa que a gente não deve fazer. E depois eu pensei que o que a gente vê no espelho também não é verdade, é só o espelho a reflectir e é mentira, não é Pai?
            - Sim, de certo modo… Mas, e depois? Pensaste o quê?
- Depois pensei no meu quarto, sabes? De manhã fica assim muito clarinho. E a Conceição diz que é a luz do Sol a reflectir-se nas paredes. E eu lembrei-me daquilo que tu disseste também, no outro dia, de ser claro é ser mais verdade, porque eu vi tudo clara e distintamente. Mas as paredes não são menos verdade quando está escuro, pois não, Pai?
            - Não, claro que não. É como tu dizes, a confusão vem de usarmos palavras iguais para coisas diferentes.
            - Pai!
            - Que foi agora?
            - Tu disseste «claro que não». Como é que uma coisa «não» pode ser clara? Não devia ser escura?

sexta-feira, março 23, 2018

CATARINA E OS SAPATOS BRANCOS


          


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          “Os paradoxos são coisas engraçadas porque vai tudo muito certinho, tudo muito lógico e quando chegamos ao fim estamos a contradizer o que dissemos no princípio.
“Por exemplo, o Hempel escreveu uma coisa sobre os melros serem todos pretos.”
- Os melros não são todos pretos, Pai. Têm aquele biquinho que é amarelo.
- Desculpa. Às vezes a nossa maneira de falar torna as coisas confusas, é como a história dos reflexos.
“Tirando o bico que é amarelo, como tu disseste, todos eles devem ser pretos, foi o que a gente viu sempre. Mas bem, o mundo é muito grande e tem muitos cantinhos, silvas, canaviais, sítios desses onde os melros podem esconder o ninho. Pode ser que haja, num outro lugar qualquer onde a gente nunca foi, um melro ou mesmo uma data deles que não sejam pretos. Se fores à procura e encontrares pelo menos um desses, então ficas a saber que não é verdade que todos os melros sejam pretos. Percebeste?
- Não sei, Pai. É mentira?
- Mais ou menos. Se a Anabela te vier dizer que todos os cães são cães de caça como o do Pai dela, tu mostras-lhe a nossa Janeca e pronto. Provaste que não era verdade. Com os melros é a mesma coisa. Se arranjares um que seja encarnado às riscas, fica provado que é mentira que os todos os melros sejam pretos.
- E depois?
          - Depois, a lógica é uma coisa engraçada. Em lógica tanto faz dizer que todos os melros são pretos, como dizer que tudo o que não for preto, não é melro. Ou se quiseres, «todos os não-pretos são não-melros», é assim que se diz em lógica, quando não queremos baralhar tudo. Ou então, também podes dizer que nenhum elemento que pertença ao conjunto dos não- pretos pode pertencer ao conjunto dos melros. Vai dar ao mesmo.
            “Então repara: nenhum pomba branca é preta, pois não? Por isso, em vez de procurares melros que não sejam pretos, também podes procurar pombas brancas que sejam melros. Parece um disparate, mas a cada pomba branca que tu encontrares e que não seja um melro, estás a ter a confirmação de que, afinal, todos os melros são pretos.
            “Às vezes tenho receio de que os estudiosos e os cientistas andem todos à procura de pombinhas brancas …”
            - São parvos, Pai?
            - Não, claro, claro que não. Mas quando se anda à procura, nem sempre se tem a noção exacta do que queremos encontrar. Além disso, acho que o Hempel estava a falava era de corvos pretos e sapatos brancos. Não tenho certeza de que se aplique igualmente aos melros e às pombas.
            - Porquê, Pai? Ele não gostava dos melros?
            - Devia gostar. Mas ele era alemão; viver na Alemanha no tempo do Hitler era muito difícil. Teve de fugir para a América. Talvez a ideia dos corvos o perseguisse. Sabes, os corvos têm muito má fama porque comem carne dos animais mortos. Talvez os nazis lhe parecessem bandos de corvos negros, a perseguir os judeus.
            - Pai, o que é ser judeu?
            - Não sei bem. Tem a ver com a religião deles, creio, embora eu não tenha a certeza de que todos vão à sinagoga.