terça-feira, fevereiro 19, 2013

O Número de contribuinte, o Topless e os Buracos negros


Calhou. Ou veio a propósito, tanto faz.
Eu sei que não é bonito falarmos assim de nós mesmos, mas as constipações, sobretudo aquelas que nos aprisionam num aquário de infelicidade e de mal estar, são propícias a estas recapitulações. E por estes dias lacrimejantes e de nariz entupido, a estante do corredor sempre nos vai fornecendo um ou outro livro, alternativa aos jornais da véspera onde o Pacheco Pereira nos adverte de que "num computador do fisco está toda a nossa vida já inventariada e cruzada através do número do contribuinte e dos poderes discricionários da Autoridade Tributária". E acrescenta que esse "verdadeiro número único dos portugueses [...] permite todos os cruzamentos de dados e uma violação sem limites da privacidade de cada cidadão" (Público de .16 de Fev.)
E de facto, qualquer Pide (ou pior do que isso, qualquer chefe de segurança de um Banco), subornando um funcionário ou, as leis dão para tudo, tendo acesso legal, pode saber que livros compro ali na Bertrand, o que costumo comer ao pequeno almoço e que prendas ofereço à minha amante.
É, como nota Pacheco Pereira, a realização do pesadelo Orwelliano retratado em 1984. E é curioso pensar que a personagem do Big Brother e a sociedade a que ele pertencia se inspiravam sobretudo no modelo soviético. Mas o pesadelo tornou-se realidade, pelo contrário, no mundo que nos diziam livre, sob o mais absoluto regime liberal de que há memória.
Irónico, não é?
Sentimo-nos como se nos tivessem roubado as próprias palavras: liberal, para não irmos mais longe, quis sempre dizer «generoso», «tolerante», «de espírito aberto»; era uma palavra que trazia implícita a ideia de liberdade, de oposição à tirania e ao poder absoluto dos Senhores Dons Miguéis e dos seus Salazares de serviço.
Agora, pelos vistos, traz consigo apenas a ideia de abandono: desenrasca-te, pá. Emigra! Rebenta para aí. Se fores demasiado pobre, anda cá que te damos uma sopa e agradece que já vais com sorte.
Nós que nos julgávamos homens livres e orgulhosos lá iremos, humildes, de boné na mão e os olhos baixos, à «sopa do Sidónio». 
Luis Spúlveda, no livro que a constipação me fez tirar da estante, narra que os que voltavam ao Chile post Pinochet, vindos do exílio, "andavam desorientados, a cidade não era a mesma, procuravam os seus bares e encontravam lojas de chineses, na farmácia da sua infância havia um bar de topless, a velha escola era agora um concessionário de automóveis, o cinema do bairro uma igreja dos irmãos pentecostais." (A sombra do que fomos, 2009, Porto Editora, p. 87)
A nós, mesmo sem sairmos de cá, mudaram-nos o país sem nos perguntarem nada. Em Lisboa, o Monumental, ali ao Saldanha foi abaixo, o Europa em Campo de Ourique também, o velho Império das sessões clássicas está nas mãos de uns outros irmãos que dão pelo nome de IURD.
Mas não foram só os cinemas: os cafés, os velhos e grandes cafés onde nos reuníamos, onde estudávamos, trocávamos livros e discutíamos sem fim, também deram de frosques: o Montecarlo, por exemplo, ou o Vává. Ou então, tranformaram-se em restaurantecos mixorucas, uma sopa, bica e nata ao balcão e fecham todos lá pelas dez horas quando tens sorte. Em compensação, vá lá que nem tudo é mau, barzinhos iam abrindo por tudo o que é lado.
E, de um dia para outro, zás! A cidade cobriu-se de parquímetros (que nós pagamos, mas que dão prejuízo) sem que o estacionamento tenha melhorado grande coisa e os táxis, esses mudaram de cor por causa de uma tal CEE de que éramos bons alunos.
Mas houve mais.
Lembro-me, por exemplo, do dia em que, lá no emprego, nos começaram a exigir que andássemos com um cartão plastificado pendurado ao pescoço a dizer que nós éramos quem toda a gente sabia que nós éramos, excepto uns rapazes supostamente «seguranças», contratados a peso de oiro para substituir os velhos contínuos que faziam de porteiros e conheciam toda a gente.
Tal como no Chile de Pinochet e de Kissinger, a nossa vida "encheu-se de buracos negros que surgem em qualquer parte; alguém diz luz e é engolido pelas sombras..." Ibid, p. 62 (com a adaptação dos tempos verbais).
Claro, tudo isto quer dizer que envelhecemos, que o tempo - um dos mais implacáveis de todos os buracos negros - foi comendo os nossos amanhãs que cantavam, ó sim, se cantavam!
E até o Fidel Castro, quando aparece na Televisão, ou quando o vemos numa fotografia, tem o ar de um velho náufrago, encalhado na praia do comunismo - ligeiramente primário, é certo, mas, que alternativa tinha ele face ao poder das máfias de Chicago e do exército americano?
A guarda morre, mas não se rende, não é?
É o que dizem.
Mas que remédio tem ela senão poisar a arma de vez em quando e assoar o nariz congestionado pela constipação?
 
 

segunda-feira, fevereiro 11, 2013

domingo, fevereiro 03, 2013

Ora Zico!

Já não há muito a dizer sobre o pittbull, actualmente a residir num canil em Beja, se ainda não morreu, que dá (ou dava) pelo nome de Zico.
Não foi, como só acontece ao Mário de Carvalho (onde é que eu já escrevi isto? nem me lembro...) o caso de um Bispo ter mordido o cão, mas foi quase.
Na falta de melhor, cortes de subsídios de doença, por exemplo, ou despedimentos em massa, a malta precipitou-se quando viu - num vídeo, suponho - o Zico a ser levado entre duas cordas. E, para mais, com aquele ar de parvo que os cães têm quando não percebem o que lhes está a acontecer.
Não faço a mais pequena ideia de quantos habitantes deste rectângulo esquecido por Deus têm conta aberta - e algumas delas bem chorudas - nesse BPN da banalidade que é o facebook.
Seja que número fôr, setenta mil dessas pessoas a assinar uma petição para que a vida do Zico fosse poupada, é obra. Sobretudo se pensarmos que sobre a cabeça do canídeo pesava a suspeita de ser um assassino e que a lei portuguesa, boa ou má, manda que os animais perigosos sejam abatidos, ponto final.
Se estas setenta mil assinaturas - e o chorrilho de asneiras e de insultos cruzados entre os assinantes e os que se recusaram a assinar - não são um sinal claríssimo do mal-estar da nossa cultura, não sei o que sejam.
Não tenhamos ilusões: em Portugal, na Espanha, na China, milhares e milhares de cães são mortos todos os anos. Até na filantrópica Inglaterra de onde nos vieram as primeiras preocupações com o bem-estar dos cavalos!
Porquê agora e porquê o Zico?
Que matou realmente uma criança de ano e meio, não oferece grandes dúvidas.
Argumentou-se, um pouco por todo o lado, que a criança não apresentava marcas das dentadas que não deixaria de apresentar caso tivesse sido morta pelo cão e, sim, tinha sofrido um traumatismo craneano. Mas o relatório da autópsia, a acreditar nos jornais, é bastante claro: há marcas do ataque, sim senhor, características, insofismáveis.
Se a palavra assassino tem significado, então o Zico é um cão assassino, e outro ponto final.
Mas alto!
«Merde! a guarda morre, mas não se rende!», como disse exemplarmente o general Cambronne. Os defensores do Zico têm mais argumentos.
Partindo do princípio sagrado de que o bicho é meigo, incapaz de actos violentos, só poderia ter sido trocado: um outro pittbull, esse sim, agressivo e bom para a luta seria o responsável pela morte da criança. Valia, porém, demasiado dinheiro em combates clandestinos. O Zico, bom e carinhoso, teria sido sacrificado em nome da ganância do dono que preferia perder um palerma sem préstimo a ficar sem o seu gladiador.
A dúvida metódica que tanto trouxe à cultura ocidental obriga-nos a levar a sério essa hipótese. Se uma coisa é possível, de certeza acontece, nem que seja na infinidade dos mundos - ou na infinidade do tempo, como pretendia Gell-Mann, o prémio Nobel da Física de 1969.
Terá acontecido justamente aqui e agora, neste mundo e no ano da graça de 2013? Será o Zico um outro Zico?
Talvez se possa ainda saber: se os defensores da tese do «Zico meigo» ainda forem a tempo e quiserem provar a sua (dele) inocência, que se prestem a pagar o teste de ADN, como vemos nas televisivas séries do CSI-Qualquer Coisa: há-de haver vestígios da saliva do cão em qualquer sítio, não?
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Os defensores do Zico têm-se dividido em dois grupos principais: os que afirmam a sua inocência a todo o custo - não, o cão não matou a criança - e os que, aceitando que tenha sido ele o autor das dentadas fatais, atiram as responsabilidades para os donos do animal.
E chegamos aqui à razão de ser deste post.
Nem uns nem outros têm razão.
A começar pelos que acham que um cão meigo não pode ter atitudes de uma extrema violência, são cegos ou nunca viram o caniche deles próprios atirar-se com os dentes todos de fora ao gato da vizinha. Podem, claro, como as crianças, como nós próprios: o caso é haver uma provocação que vá para lá dos limites da educação ou do medo. Um gato, por exemplo.
E os que acham que o cão, por ser um animal irracional, não pode ser responsabilizado, também não se mostram muito mais razoáveis.
Em primeiro lugar: irracional é o quê?
«Razão» nunca foi fácil de definir. Parece, no entanto pacífico que ser capaz de abstrair, de concluir acerca de coisas que não se vêem a partir dos dados percepcionados, é a capacidade fundamental da razão; e sabe-se, desde Crisipo (sec. III aC) que os cães são capazes deste tipo de raciocínios. Continuar a chamar-lhes, a eles e tantos outros, irracionais, diria eu, parece-se imenso com um preconceito, tanto mais que está solidamente estabelecido o uso da linguagem por espécies não humanas: chimpanzés, por exemplo, ou papagaios.
Porque não o cão? Tal como nós, humanos, também o cão é um animal social. E como todos os animais sociais, também ele necessita de uma linguagem que lhe permita ocupar um lugar na sociedade, interpretar sinais, dar a conhecer os seus estados interiores: com fome, amigável ou agressivo, aborrecido, interessado e curioso, desconfiado, com medo.
Que estes sinais são claramente interpretados pelos outros cães não parece oferecer grandes dúvidas:  cada um deles corresponde a um (chamemos-lhe assim:) protoconceito, a que correspondem comportamentos adequados, quer sejam inatos, quer adquiridos através dos mecanismos de inserção nas diferentes matilhas. E parece evidente que todos os cães aprendem a controlar, por exemplo, a fome enquanto esperam que os mais velhos, os mais acima na hierarquia, os donos, os deixem comer. O mesmo se passa com os outros impulsos, como é óbvio.
Também o Zico trouxe consigo, desde que nasceu, impulsos destes que a vida em sociedade lhe teria ensinado a controlar, moderando ou inibindo os seus esquemas básicos de comportamento. Quando nasceu, não era meigo ou agressivo: não dava afectuosas lambidelas nem mordia a torto e a direito; mas esses comportamentos faziam parte do seu equipamento de sobrevivência e ensaiou-os abundantemente enquanto bebé: mordiscou, lambeu, lutou e adormeceu aquietado junto dos seus irmãos de ninhada.
Teve de ser ensinado a que a sua agressividade é inútil porque na sua matilha - constituida geralmente pelos donos - não o agride; e que a «meiguice» lhe permite uma muito melhor integração. As escolas tentam fazer isso mesmo aos nossos filhos, mas raramente são bem sucedidas porque nós não os ensinámos de forma eficiente enquanto eram cachorrinhos.
E depois lá vem a desculpa:
- Pois, coitadinho do puto! Vem de uma família disfuncional ...
E são perdoados, como foram os assassinos da Gisberta, também eles institucionalizados porque as famílias de que vinham não os controlavam, não é?
E o Zico, veio de onde?
Alguma assistente social avaliou se alguém o mandava à escola, se estava bem alimentado, se fazia exercício, se, se, se?
Porque esses eram os seus direitos, e são os direitos o que lhe conferia deveres.
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Não tenhamos dúvida: um cão pode ser culpado e não apenas causador de um prejuízo. Ou pode estar inocente.
Quero dizer que ele tem capacidade para aprender normas, que interiorizou os seus deveres e que sabe quando os desrespeita.
A prova é que o faz justamente quando nós não estamos a olhar; tem medo de ser castigado, pois tem. É como eu: até hoje nunca entendi por que raio têm as câmaras municipais o direito de me alugar o espaço público (que, por ser público, já é meu) quando quero estacionar o carro. E se o fiscal da EMEL não fosse uma ameaça bem presente no meu espírito, eu bem vos digo quem é que lá metia as moedas.
Tal como o meu cão quando resolve trepar para o sofá e dormir lá uma sesta bem quentinha.
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Dizer que os animais, por serem irracionais não podem ser julgados ou que podem ser castigados sem julgamento, não se parece demasiado com afirmações do tipo «ah! os pretos não percebem nada de nada, são todos terroristas»? E que, portanto, a tropa portuguesa podia entrar por uma aldeia adentro e matar a torto e a direito? Não era semelhante a justificação da escravatura?
Não é essa a justificação das toiradas, dos ferros cravados, do animal torturado para gáudio dos espectadores?
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E para terminar, já agora, uma perguntinha só:
O leitor já leu O Mandarim, do Eça de Queiroz.
Se o leitor visse um homem a torturar um cão e tivesse uma campaínha, do género da que o Senhor Diabo deu ao amanuense Teodoro, ou vá lá: uma caçadeira - e a certeza de que não seria descoberto - a quem matava?
O homem ou o cão?