quinta-feira, fevereiro 26, 2009

Subsídios para o Livro de Aka (XIII)


- Aia - chamou Aka, em voz baixa, meditativa. - Podemos ir Nova Iorque?
- Não. Porquê?
Aka não respondeu.
Em vez disso, argumentou:
- Podíamos ficar em casa da Tia Louella. Mesmo que fosse só por dois ou três dias. O Tio Abraham ainda é representante no FMI, acho eu. Era quase só o dinheiro para o avião e para os taxis.E podíamos ir naquela classe, tu sabes, a menos cara.
- Seríamos um embaraço para o pobre Abraham, Aka.
- Mesmo que fosse só ir e voltar no voo seguinte? Cinco ou seis horas bastavam, Aia.
- Aka! Bastavam para quê?
- Para irmos ao Metropolitan Museum.
- Não me parece mal. Mas em cinco horas é um disparate, Aka. Se queres, para o ano que vem podemos passar um par de semanas a visitá-lo.
- Mas Aia, depois podemos pensar em ver tudo o que tu quiseres. Agora era só ver uma coisa e voltar.
- O que é que tu queres ir ver?
- A Petite danseuse de quatorze ans.
Este livro idiota conta a história de um jovem poeta que vai passear ao Jeu de Paume e apaixona-se pela Danseuse.
Fui ao Jeu de Paume e os Degas já lá não estavam.
Fui ao Orsai e a escultura não está lá, não sei porquê.
De qualquer maneira é só a porcaria de uma cópia.
Em Nova Iorque há outra um bocadinho diferente.
O original, foi um asiático qualquer que o comprou há pouco tempo .
Achas que foi aqule amigo do Pai, o Georges Eduard Fu?
Há dois anos comprou um Rembrant e já tinha outros quase tão caros.
- Aka, não faço ideia nenhuma.
De qualquer maneira, se não temos dinheiro para ir a Nova Iorque, a Hong Kong ainda menos. Vamos lá para o ano, se daqui até lá não te esqueceres.
- Para o ano já não quero ir.
Já não tenho catorze anos.
O tempo não pára, Aia.
Não é estúpido?
-
- Sabes, Aia? Afinal já não é preciso ir a Nova Iorque.
Podiamos ir só a Londres, à Tate.
- Talvez. Não vejo porque não.
De qualquer modo, telefonei ao marchand do teu pai que é um homem amável.
A escultura que tu queres ver está de volta ao Orsai no fim do mês que vem.
Esteve emprestada no Brasil, acho eu.
Não sei bem onde é São Paulo.
Mas são tudo cópias, Aka.
Podes ter uma se quiseres, disse ele.

quarta-feira, fevereiro 25, 2009

Quem pensa não casa (I)

Se me perguntassem - mas neste país ninguém pergunta nada; já toda a gente sabe tudo - eu diria que não tenho nada com isso. E acrescentaria que, apesar de tudo, não desgosto, uma vez por outra, de meter a foice na seara alheia.
Honestamente, tenho de declarar desde já: acho um disparate as pessoas quererem casar-se. Apaixonar-se, amar, estar de casa e pucarinho com as pessoas de quem se gosta, tudo bem. Cuidar dos filhos quando os haja, claro. Eu diria que é assim mesmo, se a expressão «assim mesmo» significasse alguma coisa. Aqui na minha terra diz-se que «é o que pertence».
Mas casar?
Francamente, eu acho que é como as mulheres poderem ir à tropa. Têm todo o direito.
Mas, como eu sou um anti-militarista convicto, custa-me a perceber porque diabo hão-de as raparigas desejar exercê-lo.
Com os homossexuais é o mesmo. Concordo que têm direito a casar. Se o devem exercer, é outra conversa, mas cada um é que sabe de si.
E pronto: vamos até que sejam todos heterossexuais.
Porque não hão-de casar com uma pessoa do mesmo sexo? Não terão relações sexuais, não lhes apetecerá, talvez. Mas cozinharão belas refeições juntos, discutirão livros que leram, os filmes que viram e podem ir para os copos, adoptar um puto, educá-lo, responsabilizar-se por ele. Afinal, não é a própria Igreja que afirma destinarem-se as relações sexuais apenas à procriação? Ora se eles não tencionam procriar...
E nada obsta, também, a que cada um por seu lado tenha uma amiguinha... ou tenham todos a mesma. E até podem convidá-la para casar com eles. Porque não? Era só criar uma figura nova nessa coisa de fazer leis: partilhar um casamento já existente, como se admite um sócio novo numa empresa já constituída.
Salta aos olhos, claro, que essas pessoas, heterossexuais ou não, dispõem já de instrumentos jurídicos para se juntarem e para resolverem as questões que sobrevenham. Para quê, então, produzir legislação especial?
Não sabendo nada de direito, julgo que, reguladas as relações mais banais, os legisladores tenham de acautelar as situações em que um ou mesmo ambos os contratantes se encontram numa situação, digamos, perturbada.
O casamento moderno assenta numa forte emocionalidade que vai, frequentemente até à paixão.
Do mesmo modo - ou semelhante - as pessoas com perturbações mentais ou de alguma forma diminuidas na capacidade de se determinarem mereceram a protecção da lei.
Os casamentos, portanto, de há anos para cá, foram alvo da atenção dos legisladores que consideraram insuficiente a tradição religiosa e a autoridade dos pais.
Por isso, por muito que me custe admiti-lo, acho que as uniões homossexuais e todas as outras formas de, por razões emocionais, viver de casa e pucarinho, têm de ser consideradas casamentos e defendidas pela lei.
Disse.

sábado, fevereiro 21, 2009

O Carnaval do Magalhães

- Isto agora dói um bocadinho.
Mas vocemecês nem queiram saber o carro alegórico que vai dar para o ano.

sábado, fevereiro 14, 2009

Subsídios para o Livro de Aka (XII)

- Psst! Miúda! Avia aí os trocos.
Aka olhou para ele, sem amenidade.
Era branco e não tinha o ar muito limpo.
Mas ali, sentado numa caixa, com um copo e um livro, não parecia ameaçador.
- Estás a ler o quê? - perguntou ela, sentando-se nos calcanhares em frente dele.
- Tens alguma coisa a ver com isso?
Aka mostrou-lhe uma nota de dez euros.
- Os trocos, lembras-te? O pedinte és tu, não sou eu.
- Só tens isso?
- Se o livro valer a pena pode ser que eu volte... E pode ser que tu me mostres outros livros e pode ser que vá havendo mais uns trocos...
- Ah bom. Queres fazer de mim um investidor, é?
- Não. Um mestre? O meu preceptor dizia que temos de escolher os nossos mestres. Mas não és obrigado...
- E em em que é que eu me pareço com um mestre?
Aka pensou.
- Em nada, acho eu. Achas que é por isso?
Ficou a olhar para ela, muito tempo até que mostrou a capa do livro.
- Ouve. É um gajo muito antigo, chamado Gide, André Gide, que já ninguém lê. Chama-se La porte étroite. Começa assim:
Outros poderiam fazer um romance; mas, eu consumi todas as minhas forças e virtudes a viver a história que vou contar...
Passou uma série de páginas e voltou a ler:
- A minha alma está hoje ligeira e alegre como um passarinho que tivesse feito o seu ninho no céu. É hoje que ele deve vir; sinto-o, sei-o; quisera gritá-lo a todos ... Não posso esconder por mais tempo a minha alegria... Interessa-te?
Aka fez que sim com a cabeça.
- Quem é ela? E quem é que vai chegar?
- Ela? Como é que sabes que é uma ela? Pode ser um ele. Ou um maricas. Ou um marciano. Os marcianos não têm sexo, sabias?
- Não. E tu, já viste muitos?
- Espertinha! Vendo-te o livro por esses dez euros. Mas com uma condição. Aceitas?
- Qual?
Ele percorreu as folhas do livro e rasgou as últimas duas ou três.
- Juras sobre o Corão que nunca tentarás saber o fim da história que ele vai contar?
- Não sou muçulmana. Mas tenho muito respeito pelo Corão. Juro.
- Toma. Deves-me dez euros.
Dois dias passaram.
Aka não lia muito depressa em caracteres latinos.
Acompanhada pela Aia e seguida à distância pelo Mahamoud, Aka voltou à ilha de Saint Louis.
O pórtico em obras lá estava.
Mas o ocupante era outro: gordo, a barba por fazer, a garrafa do vinho tinto.
- Le pettit con? Vieram buscá-lo, les flics ou les bleus, des comme ça.
Falou para a Aia que se mantinha distante:
- Vou-z-auriez-pa-z-une piéce, vous, la grand-dame? J'ai jamais toué personne, hê?
Mais não sabia.
O «pettite tête» não «pertencia», era um passante, não entrava na festa la fête com toda a gente.
- Ele era toc-toc. -concluiu e estendeu o boné para encerrar a conversa.
- Porque não compras outro exemplar desse livro e não o lês até ao fim? - sugeriu a Aia.- Esse, de qualquer modo, tens de o deitar fora, está sebento.
- Fiz um juramento - respondeu Aka.
E não explicou mais.
-
Ou:
Dois dias passaram.
Aka não lia muito depressa da esquerda para a direita.
O pórtico em obras lá estava, com o sem abrigo encolhido no seu anoraque enxovalhado.
Mas sem livro.
Parecia ter-se ido embora e esquecido ali o corpo.
Da boca aberta escorria um pequeno fio de baba.
Aka, ajoelhada ao seu lado, ficou uns minutos quieta.
- Talvez tenha de ser assim com os meus mestres - murmurou.
Não sabia como chamar uma ambulância, mas, do outro lado do telemóvel alguém havia de saber.

quinta-feira, fevereiro 12, 2009

Subsídios para o Livro de Aka (XI)

Aka andava pela Ilha de São Louis quando encontrou o Senhor.
Vinha a rir-se porque, depois da seriedade de uma Ecole de garçons a ter feito pensar pela milésima vez «mas porque é que eu fui nascer rapariga?», os olhos depararam-se com um restaurante com o nome L'Ilot Vache.
Aka não sabia francês suficiente para conhecer os múltiplos sentidos que a palavra «vache» pode ter, para além dos mais evidentes. Mas já tinha aprendido que dizer de qualquer coisa que «c'est vache» ou «c'est vachement con», não é propriamente um elogio.
Foi então que tropeçou n'Ele.
Vinha absorto, a ler um livrinho.
Quase chocaram. E sorriram-se.
Diga-se:
Os fiéis das grandes religiões, os cristãos, os islamitas ou os judeus, já não sabem sorrir a Deus. Os sacerdotes proclamam que é um Pai bondoso e justo; porém, só eles têm a chave dos tabernáculos onde O encerraram.
Talvez haja mais do que um Deus único, pensa Aka, porque o seu é ao contrário dos outros:
vive com o seu povo.
Como toda a gente.
É por isso que os antropólogos acham que a religião dela é um animismo.
Por isso, e por não precisar de sacerdotes.
O Tio Mais Velho orienta a oração da noite quando estão todos juntos.
De resto, Aka reza quando a alma lhe pede.
- Com que então a rir do restaurante onde eu almocei. -disse Ele interrompendo a leitura.
Aka fez um sorrisinho mais largo a que juntou um pequenino encolher dos ombros.
- E o que fazes aqui sozinha? Não é costume, pois não?
Aka, com os olhos, indicou o guarda-costas que se aproximara, a mão dentro do anoraque, no bolso do peito.
- É um chato, nem sequer Te reconheceu. - riu-se ela. - Não podemos pregar-lhe uma partida?
- Não. Não seria justo. Está a fazer pela vida, da única maneira que sabe.
- Pois. É o que me diz a Aia.
- Então deve ser verdade, não é?
Riram-se de novo.
E depois, não havia muito a dizer, foi a despedida.
O Senhor seguiu os Seus caminhos mergulhado no livrinho e Aka, pela rua de Saint Louis afora, de alma cheia, com o andar saltitante e uma canção desafinada nos lábios.
- Não era simpático perguntar-lhe porque existe, pois não? - interrogou-se ela.
E concluiu que não.
Há coisas que não se deve perguntar, mesmo que se saiba já a resposta.

sábado, fevereiro 07, 2009

No bird has the heart of singing but in absolute silence

"I gladly consent to be silent. But then, alas, I'm unlikely to know anything. To renouce literature, I would have to be really sure that I could know. A certainty that crassly prove my ignorance."
Susan Sontag, I, etcetera,
«Project for a trip to China» (1972), 1978

quarta-feira, fevereiro 04, 2009

Subsídios para o Livro de Aka (X)

-
Aka estava encantada com o livrinho pequeno e gorducho,
meias páginas, meios poemas,
meio outra coisa que Aka não soube definir.
O que primeiro a tinha atraído, no tabuleiro do bouquiniste, fora a encadernação vistosa,
bastante oiro, grandes letras gravadas em cabedal.
E logo depois, a dedicatória:
«À mon ami, mon amor, source de mes envoûtements...»
numa letrinha muito parecida com a da própria Aka.
- Foi decerto muito infeliz - pensou.
- Senão este livro nunca estaria aqui à venda.
-

segunda-feira, fevereiro 02, 2009