terça-feira, fevereiro 22, 2011

Bertrand Russell

Russell entrou nas nossas jovens vidas, quem sabe se pela pior das razões.
O seu livro Porque não sou cristão, lido às escondidas na edição brasileira, não terá tido o impacto que merecia e a razão é simples. Não o lemos como a defesa de um racionalismo coerente e algo radical, mas unicamente como uma contestação aos senhores padres de Religião e Moral, aos nossos pais, ao salazarismo tacanho que atabafava a nossa irreverência sem nada nos dar em troca.
As organizações de juventude estavam severamente controladas: os Escuteiros praticamente nas mãos da Igreja, a Mocidade Portuguesa que nos obrigava a uma preparação militarizante e a saudar de braço estendido, como as juventudes hitlerianas, era obrigatória nas escolas.
Por todo o lado era o discurso patriótico, anti-comunista, contra a dissolução dos costumes e pela virgindade das meninas que eram noivas e irmãs, puras como Nossas Senhoras.
Claro, o episódio da ilha dos amores tinha sido cortado na edição escolar d'Os Lusíadas e nós íamos lê-lo na edição de algum mais afortunado.
E depois começou a guerra.
A fé e o Império, as grandes navegações que fizeram os nossos maiores e, por isso, Angola é nossa e resto também.
Lá foi a nossa juventude, de espingarda às costas, para as colónias, com a benção da Igreja, para defender a civilização cristã e ocidental.
Estávamos fartos das grandes palavras.
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A literatura «lá de fora», sobretudo a francesa, abriu-nos para outros pensares: lemos tudo, desde a Françoise Sagan ao Sartre, do Roger Martin du Gard até ao Claude Roy.
E o Bertrand Russell conduziu alguns de nós, pelo menos, ao pacifismo; compreendemos que uma civilização, por muito cristã e ocidental que fosse, se assentava a defesa dos seus valores na esquadra americana e nos arsenais nucleares, não valia grande coisa.
Orgulhosos, começámos a usar o emblema do seu movimento contra a bomba atómica. Era um círculo branco sobre fundo preto, com um diâmetro vertical, norte-sul, e as direções sudoeste e sudeste assinaladas a branco também.
Os mais velhos olhavam para nós com alguma melancolia.
Ao ver-me com o vistoso emblema, o Pai de um dos nossos amigos contou uma história dos tempos em que a Espanha estava em Guerra - dita civil porque o exército estava quase todo do lado dos revoltosos e do lado do Governo livremente eleito só estavam os civis. Daqui de Portugal ia todo o apoio para a causa dos generais: o major Botelho Moniz, com os seus viriatos, claro, mas a prisão e a entrega de refugiados na fronteira, a colaboração entre polícias, comida e armas, de todos os modos que o regime em Portugal podia apoiar a revolta.
Aos anti-franquistas portugueses, platónicos apoiantes da República Espanhola, restava o uso de um emblema da AEG quando o podiam arranjar.
Vale a pena recordar que a AEG era uma enorme multinacional alemã, ligada aos equipamentos eléctricos. Em 1936, quando eclodiu a revolta dos militares em Espanha, de certeza que estava a trabalhar para o Hitler, o mesmo que, de imediato, enviou a «divisão condor» a apoiar Franco.
Parecia contraditório.
Porém, para os iniciados, AEG não significava Allgemeine Elektricitäts-Gesellschaft, mas sim, em portunhol, Arriba Espanha Governamental. Para a polícia política de Salazar, valia o equívoco.
- Mas - concluiu o Pai - nós reconhecíamo-nos uns aos outros.



Muito mais tarde, na Faculdade, para lá das aulas e das orientações ideológicas, deparei-me com a obra de Russell.
O positivismo e depois o positivismo lógico tiveram um importante papel no pensamento filosófico em Portugal, pese embora aos integralistas e saudosistas. Porém, depois de Vieira de Almeida se ter reformado e de o curso de Filosofia em Lisboa ter levado a volta que levou, descobrir a escola de Viena, o empirismo lógico e coisas dessas, era uma lança em África para os alunos.
Conhecia já o livrinho - que de «inho» só tem o tamanho - de 1912, Os problemas da filosofia, editado em Coimbra, com tradução de António Sérgio.
Um dia porém, em 73, meses antes do 25 de Abril, encontrei, sei lá por que milagre, An inquiry on meaning and truth, na edição francesa da Flammarion, discretamente entalado nas estantes da Livraria Universitária, ali ao Campo Grande.
Toda esta época do meu percurso é confusa. Julgo que andava já às voltas com Wittgenstein, quando tentava escrever a tese de licenciatura e lembro-me de ter devorado o ensaio do Russell como um bulímico a engolir pastéis de nata.
Juro-vos que não consegui abarcar nem metade de metade.
Mas ficou-me a saudade de qualquer coisa que não tinha tido e que não poderia vir a ter nunca mais: gostaria de me ter sentado lá atrás, num anfiteatro, talvez em Cambridge, talvez nos States, escudado pelo meu caderno e pelos meus desenhos, a ouvir as aulas de Bertrand Russell.
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O Guimarães Rosa, num dos contos de Sagarana, creio eu, diz uma coisa interessante, mais ou menos assim:
"Quem sabe se, algures, num país onde eu nunca fui, e onde não irei jamais, existe a mulher ideal, a minha alma gémea..."
E pimba! O narrador desse conto resolve casar-se com a prima.
Eu, modestamente e à minha maneira, confesso que discordo.
Um dos meus maiores pecados, digo eu, pelos quais terei de dar contas um dia, foi nunca ter partido à procura dessas coisas excepcionais, desse quadro, dessa pequena escultura, desse Maio de 68, dessas Brigadas Internacionais em que combateu o Orwell, desse professor que me poderia ter ensinado aquilo de que talvez nem faça a menor ideia.
Não é um verdadeiro desperdício?

sábado, fevereiro 19, 2011

sexta-feira, fevereiro 18, 2011

segunda-feira, fevereiro 07, 2011

Que parvos que somos


Há quanto tempo não tínhamos assim uma canção de protesto, daquelas que vão direitas à mouche, quer dizer, canções que, de repente assumem o sentir colectivo?
Dantes iam surgindo umas que a gente cantava sentados nos degraus da faculdade, tipo:
«Canta, canta, amigo canta, vem cantar a tua canção, tu sozinho não és nada, juntos temos o mundo na mão...»
Ou então, acontecia, perguntarmos «ao vento que passa, notícias do meu país. E o vento cala a desgraça e o vento nada me diz...»

Agora que estamos entregues a
comentadores-mais-ou-menos-comendadores, à sua comenda e bebenda assentados, até corremos o risco de acreditar que a política do pleno emprego e a da educação universal foi errada e que num país de mão de obra escrava os escravos refilam tanto menos quanto menos estudarem e assim deve ser.

Sim, a culpa é dos Robertos Carneiros e dos Marçal Grilo - vá lá que são estes - alegadamente por esquecerem que a educação vai a par com os estudos de mercado.

Tomem lá, que a canção dos Deolinda é "a resposta, e uma boa resposta" à vossa "'prioridade das prioridades'" (VPV, em 5/2 dixit).

Ah, comendadores, comendadores!

Que parvos que somos...

Complemento circunstancial de lugar onde



Estávamos, os meus cães e eu, ali os três, sentados a apanhar sol e a bendizer a Primavera antecipada, e, num repente aí vão eles a ladrar direitos ao portão, num acesso de energia tão fulgurante que eu dei comigo a berrar «ena Pai, isso é que é bom estar vivo!»
O Tio Zé Damião, por exemplo, acha que eu tenho o pésimo costume de falar sozinho.
Enfim, é verdade de certo modo, mesmo se ele também afirma com aquele ar de autoridade que «a sala dos cães é rua».
Mas nunca estou não completamente só, sobretudo porque os meus cães andam sempre por aí, ao contrário do que diz o Tio, geralmente a meter-se-me debaixo dos pés a abanicar-se de descarada pedinchice.
- Que é que tu queres? Mostra lá ao dono! - digo eu.
Eles mostram, claro, seja o que for, nem que mais não seja, para me contentar. Um apetite súbito a atravessar-lhes o espírito, comida ou água, ou ir para o quintal, qualquer coisa que altere a identidade dos instantes e faça mover o tempo.
E eu respondo também, uma coisa oportuna:
- Logo! Agora não, que o dono está aqui a acabar este desenho.
O que escusava era de continuar com explicações:
- Não está a correr lá muito bem, percebes?
Se «vamos» é a palavra mágica, abre a porta a uma imenside de esperanças, a palavra «logo» é desilusão. Mesmo que o discurso prossiga por aí fora, já não ligam. Não querem saber dos meus desenhos, é verdade que não são Dürers nenhuns, mas um bocadinho de boa educação não lhes ficava mal, pois não?
Não querem saber.
Vão dormir mais um bocadinho porque sonhar é uma actividade nobre. Até passar mais um fabiano a pedalar, pelo menos.
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É certo que as caravanas passam.
Mas os cães, esses não querem saber: ladram à mesma.
Correria, excitação, muito barulho, os rabos a abanar e ar contente de quem cumpriu o mais sagrado dos deveres.
Um gato, à falta de melhor, também serve. Mas as bicicletas, isso é que é!
São mais lentas, dão azo a correr de um lado para o outro ao longo da cerca e, às vezes, tem-se tempo para ir e voltar, dentes à mostra, num alarido eufórico.
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Felizmente passam muitos ali em frente ao portão.
São ciclistas como deve ser, com aquela fardamenta própria dos ciclistas.
Dantes um cidadão pedalava nas pasteleiras com um fato qualquer, até mesmo o do domingo. Punha umas molas - às vezes da roupa - na baínha das calças para não prender na corrente e lá ia ele, todo pimpão.
Nos tempos que correm, com tudo mudado, a crise e o dólar, o Iraque e a revolta no norte de África a fazer lembrar a história do Bei de Túnis, ninguém se atreve a tamanha pinderiquice.
O cidadão não escapa.
Tem de ir à loja do chinês para ter tudo em ordem, de acordo com os figurinos, calções pretos, as camisolas a moldar os músculos, luvas sem dedos e aqueles espantosos capacetes de ciclista. Às vezes com uma pequena mochila às costas, lá vão eles, a pedalar pelos caminhos a fora.
São quase sempre homens, e digo «quase» apenas por precaução: pode ser que as haja, mas o facto é que, raparigas, nunca passa nenhuma.
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Fico a pensar no que terão elas contra as biclas de todo terreno.
Nem sei mesmo se há algum desporto que seja feminino por excelência. É claro que, como qualquer rapaz, elas nadam e jogam à bola, vão nas mais diversas modalidades competir umas com as outras nos Jogos Olímpicos. Mas não creio que o façam em modalidades em que sejam, por exemplo, recordistas mundiais.
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Quando eu era jovenzinho, miúdo a brincar na praia, as meninas jogavam com o ringue, normalmente num círculo, atirando-o umas às outras e rindo-se quando alguma o deixava cair. Quando o grupo era grande, jogavam ao «piolho», um jogo que hoje é conhecido pelo «mata» e só se joga nas escolas, hélas, abastardado com uma bola em vez do ringue.
Não sei se ainda se fabricam: eram uns anéis ocos de borracha, com uns três centímetros de diâmetro na secção e cerca de vinte no diâmetro maior, ou seja, uns sessenta e três de perímetro se aproximarmos às décimas.
Sempre achei que era o desporto ideal para a praia e as raparigas tornavam-se exímias no lançamento do ringue e, a seguir, a apanhá-lo no ar quando ele vinha a descrever curvas fantasiosas.
A bola é masculina: importa o tamanho da mão e a força do braço.
No ringue era mais importante a habilidade a apanhá-lo no ar, deixá-lo deslisar pelo braço e logo o atirar antes que as adversárias tivessem tempo de se precaver; a velocidade, o golpe de vista e o efeito que se dava ao ringue no seu lançamento, eram fundamentais.
Mas claro, sendo fenminino, o ringue não teve nunca uma federação, campeonatos nacionais e muito menos representação olímpica.
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Quando penso num desporto, assim caracteristicamente delas, a primeira coisa que me ocorre é a dança.
Claro, há também a ginástica rítmica e a aeróbica e tantas outras.
Mas explosões de energia como os meus cães são capazes quando correm ao longo da cerca, como eu era capaz quando tinha dez anos e corria pelas vinhas de encosta abaixo, a contornar as cepas, a romper as gavinhas e as vides com o corpo, essa exultação pertence à dança.
"Estar cheio de vida", escreveu Coetzee em The lives of animals, "é viver enquanto corpo e alma." E acrescenta: "Um nome para a experiência de vida completa é alegria."
Não consigo deixar de pensar que a vida completa é uma dança, é um pairar sem peso, um rodopiar sem fim.
Quando se cai, morre-se.
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E explico aos meus dois cães que se vieram sentar arquejantes aqui ao pé:
- Vocês já repararam que estão vivos? Mas mesmo vivos? Mesmo, mesmo, mesmo?
É claro que os cães não me ligaram nenhuma. Um deles, a cadela, já se levantou e, pela barulheira, deve estar a beber água à maneira dela: metade pela goela abaixo, outra metade espalhada à volta da tijela.
E eu, desiludido com o auditório - embora não muito, confessemos - volto a correr aqui para o computador, para não perder o fio às ideias.
Acaba de me ocorrer uma coisa qualquer de sabor Heideggeriano: que a vida é a verdadeira «essência do fundamento», o «complemento circunstancial de lugar onde» de tudo o que é.
Que todas as coisas acontecem no tempo, é certo; mas o próprio tempo que vai correndo de cronão para cronão, não passa de intantes num contínuo de vida, num cogito que é.
Talvez por isso, vou eu aqui escrevendo, a morte é um absurdo. O não ser, dizia o Parménides, o não ser, não é. A não-vida não existe: viver é que é o Bem Supremo.
Já sabiam, não sabiam?
Eu, que sou assim, meio tosco, é que só agora me dei conta.
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Não quero dizer, lá por a Vida ser o valor máximo, que se deva estar vivo a todo o custo.
lugares onde indignos.
O samurai, por exemplo, em desonra não pode viver. Suicida-se, ou melhor dito, executa o ritual do seppuku.
O nobre perante um conflito insuportável tem o direito de escolher uma morte qualquer, por exemplo, bater-se em duelo.
O escravo pode decidir que não quer ser escravo e enfrenta o pelotão de fuzilamento de olhos abertos.
Mesmo se é um dom de Deus, algo que só a Ele pertence, a vida, o Bem Supremo, não pode ser erigida num valor absoluto: por alguma porta o mal, o nada, a contradição, teria de aceder ao lugar onde e constituir-se em dor, em caos, em guerra, em narco-tráfico. Em escravatura, fome e doença.
Talvez o mundo, que não passa de uma ideia - transcendental, diria Kant - parte do meu pensar a própria vida, seja no fundo, lá bem no fundo, uma não-ideia, uma impossibilidade.
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Os meus cães já andam por aqui a reclamar:
- Então? Ainda não são horas do almoço?
Ainda não; estou aqui a pensar:
- Rai's parta mais os ciclistas todos...

quarta-feira, fevereiro 02, 2011

Sem título


Podia ser uma fada dos bosques, uma personagem do Sonho de uma noite de Verão, um anjinho da guarda, ou qualquer outra coisa... De facto era para ser só um ensaio de cor, mais ou menos inspirado na Pipi das Meias Altas.