sábado, julho 19, 2008

Guerrilheiro Sentimental


Digamos desde já: este post vem a propósito da publicação de um livro, Guerrilheiro Sentimental, de Eurico Figueiredo.
Mas tornou-se mais complicado do que pretendíamos, quando, uma coisa leva a outra, começámos a pensar nas pessoas que admirávamos e, de um modo ou de outro, nos serviram de modelo. A geração da Crise Académica de 62, a que o Eurico Figueiredo pertence, por exemplo.
Quantas sobraram?
Quer dizer:
Roger Vailland, para quem não sabe ou já não se lembra, foi para a nossa geração, essa mesma que aprendeu a andar nesses anos, um autor de culto.
A expressão, hoje em dia, está tão desvalorizada que até às séries mais repugnantes da televisão ou aos filmes do Clint Eastwood se aplica.
Mas nós que frequentávamos as sessões dos cine-clubes, líamos Camus e Sartre e ouvíamos jazz com uma veneração talvez excessiva, tínhamos, de facto, um culto pelo autor de Drôle de Jeu e de Um homem do povo na Revolução. Vivíamos no regime sombrio de Salazar e os romances de Vailland ofereciam-nos um modelo de combatente clandestino menos miserabilista do que o proposto pelos funcionários do partido comunista.
Não foi sem alguma surpresa que soubemos ter Vailland decidido, já desde os finais dos anos cinquenta, apear das paredes o retrato de Estaline, abandonar o partido a que aderira durante a Resistência.
Não me lembro já da justificações para essas tomadas de posição. Fixei, no entanto, a jura que ele fez: nunca mais poria nas suas paredes o retrato de uma pessoa viva. Era uma coisa que fazia muito sentido para quem tinha de conviver com os retratos do Salazar e do Américo Tomás pendurados nas salas de aula, um de cada lado do Crucifixo(1).
E também nós jurámos a mesma coisa. Alguns tinham a Guernica, outros um poster do Che, mas só depois de o Che ter morrido. E o critério ficou. Quem poderíamos nós ter ter nas nossas paredes? E quem, se lá o tivéssemos posto, teríamos de apear?
Vi o Eurico Figueiredo, que me lembre, um par de vezes na vida. Empoleirado naqueles faraónicos calhaus com que o Estado Novo achava que se dava dignidade ao imenso portal da Faculdade de Letras de Lisboa, falava aos estudantes. Já tinha falado o Jorge Sampaio, não sei se o Medeiros Ferreira, nem me lembro já do que disseram. Não era muito importante: ousar falar em público, quando tínhamos todas as razões para acreditar que, no meio da nossa pequena multidão, havia pelo menos uma meia dúzia de de informadores da Pide, era já um acto heróico.
Devo tê-lo visto, depois disto, mais um par de vezes naquela a que depois se chamou a Cantina Velha e onde os estudantes iniciaram uma greve da fome.
Os anos foram passando, muitos, como ele, escolheram o exílio, outros foram à guerra ao "Ultramar" como o Abílio Teixeira Mendes.
Depois, o 25 de Abril aconteceu. E foi curioso ir observando as carreiras.
O Eurico Figueiredo escolheu ser médico, foi até à Assembleia da República duas vezes, creio, defendeu as suas posições com a mesma convicção com que falara das escadas da Faculdade de Letras, tantos anos atrás, foi contra a lei do aborto (o estafermo!) e não foi ministro de coisa alguma, nem da Educação, nem da Saúde. E agora dedica-se a produzir um vinho, o Solar do Prado.
O retrato dele, se o tivéssemos pendurado na parede junto com os da sua Geração, estaria a ficar muito sozinho. Mas teria resistido. Honra lhe seja.
E era o que queríamos dizer a propósito do Guerrilheiro sentimental, Estórias de Exílio, Campo das Letras, 2008. Leiam-no.
Vale bem a pena.


(1) Não resisto a citar a velhíssima piada do Cristo crucificado entre dois ladrões. Desculpem.

quinta-feira, julho 17, 2008

Nunca o invejoso medrou

Pablo Picasso, Jaqueline em trajo de turca, 1955 A inveja é a coisa mais inútil do mundo.
Às vezes é pena.

Faz-se noite de aquecer


4 Janeiro 2008

Fez-se noite de aquecer
No frio do Inverno imposto
E nas águas ansiadas
Caindo mal ajeitadas
Na ironia do sol posto
Sem palavras por dizer
Dormitando apaziguadas
Renasce o canto na utopia de crer...
-
Ana Maria Puga, Reticências

segunda-feira, julho 14, 2008

... do que cabeça de Sardina pilchardus Clupeidae.

2. Já não há exploradores e explorados?
a) O "capital", lembram-se? O que lhe terá acontecido?
Claro, capitalistas é capaz de já não os haver. O que há é "empresários", gente empreendedora que aposta na inovação (pelo menos uma vez por outra) e que procura financiamento nos bancos. Não está, regra geral, interessado em investir com capitais próprios que rendem juros confortáveis noutras aplicações.
Estes empréstimos, julga a gente, terão de ser aplicados de modo a remunerar os investimentos, remunerar o banco que financiou e, está bem de ver, o accionista desse mesmo banco. A acreditar nos jornais pelo menos, a maior parte das vezes é o próprio tomador do empréstimo (é assim que se diz?). E este, por sua vez, pode perfeitamente ser outro banco que também tem os seus accionistas. Ou os mesmos, quem sabe? Os jornais mentem tanto...
Nós, aqui no Portugal, Caramba!, não percebemos nada de economia; de finanças então, menos que nada. Mas parece-nos óbvio que, a ser assim, esta tão grande cadeia de "remunerações" a pagar pela transformação do ferro em lata, da lata em conserva de sardinha e de conserva de sardinha em almoço, só é possível se o custo desta transformação não tiver nada a ver com o preço a que a sardinha no prato vai ser paga.
Haverá alguém que nos explique como é que tudo isto é possível sem uma constante procura de «bolhas» especulativas como a do «betão» e, se calhar, como já foi a das «novas tecnologias»? E como vai ser, se Deus Nosso Senhor permitir, a da «energia»?
b) E o "proletariado"?
Se bem me lembro, dantes dizíamos que proletário era o trabalhador por conta de outrém, aquele que não pode escapar ao IRS, a menos que seja tão mísero e o seu contrato tão precário que nem sequer lhe exigem os recibos verdes.
Claro que isto não excluía, para os mais conhecedores de senhas e contra-senhas das nossas tertúlias, a existência de muitos trabalhadores assalariados (haverá diferença entre o salário e o ordenado?) que, não tendo consciência disso, julgavam pertencer à burguesia. Chamava-se-lhes um nome altamente insultuoso: pequeno-burgueses. E, mesmo não sendo beneficiários do "capital" e dos lucros chorudos que, supostamente, pelo menos, ia gerando, eram ferozes opositores de toda a mudança - excepto a que o "capital" ia apresentando como necessária, urgente e patriótica.
Tenho uma vaga noção de que «trabalho» era toda a acção humana através da qual algo apenas potencial se tornava actual. A ideia de uma casa, existente apenas no mundo ideal, passava a existir em acto pelo trabalho do arquitecto, do pedreiro, do electricista e do canalizador, do carpinteiro e do vidraceiro. Pelo trabalho, então, o que era ideal (os conceitos como o de vigas de ferro, tijolos e tudo o mais) juntava-se ao que era matéria bruta (hematites e pirites, argilas, etc.).
c) Ou seja: pelo trabalho, a Natureza humanizava-se. Ou, para estarmos mais próximos de Hegel, a verdadeira bête noire dos últimos dois séculos, divinizava-se.
Que "humano" é esse que o trabalho anda a realizar?
E que "divindade" é essa que, cada vez mais, se actualiza? É Deus? É Demónio? Ou já não há diferença entre eles?

sexta-feira, julho 11, 2008

Mais vale cauda de merluccius...

1. Como é que chegámos aqui?

a) Lá em casa, quando éramos catrainhos, brincavam connosco porque não se devia dizer "pescadinha de rabo na boca", mas sim "de cauda nos lábios". Nós, claro, não ligávamos muito porque os exemplos que vinham de cima não eram sempre do mais edificante.
Mas íamos ouvindo a história do senhor que tratava a empregada por "serva", o pequeno almoço era o "repasto matinal", a barriga era "os interiores" e por aí fora. Porém, uns amigos levaram-no a ver uma Revista (à portuguesa, claro) e, quando voltou, imagine-se: as pernas passaram a ser "gambias", o apetite passou ser "larica", tudo coisas ordinaríssimas para a altura.
E a moral da fábula não podia faltar:
- Já vêem: quando nos esquecemos de ser bem educados...
Não percebemos demasiado bem o que acontecia, mas ficámos com a ideia de que, no mínimo, Deus, Pátria, Salazar e Família, não haviam de gostar. A educação é uma coisa terrívelmente relativa, pelos vistos.
b) Vem isto a propósito do recente debate sobre o Estado da Nação.
O Portugal, Caramba! avisa desde já: não tem qualquer competência para decidir se este Governo está no bom caminho ou no mau, se a Maddie foi morta ou raptada, se a Drª Manuela Ferreira Leite é bonita ou nem por isso, quantos corruptos se sentam nos lugares do poder.
É claro que não deixa de ter as opiniões que tem, umas melhor fundamentadas do que outras. Talvez não fosse descabido, até, declarar desde já os seus ódios de estimação - por exemplo, ao pobre do Cavaco Silva - e uma ou outra preferência, não venham depois dizer que.
Por tanto, para que conste, por aqui somos contra o TGV Lisboa-Porto, mas a favor de uma ligação de alta velocidade a Madrid e ao resto da Europa.
Somos contra o novo aeroporto seja onde fôr e preferíamos que não cortassem mais o que resta deste pobre país com auto-estradas, sobretudo quando o seu destino, adivinha-se, será a sucata dentro de uns vinte, trinta anos.
Somos contra as privatizações e a alienação do património, embora nos repugne que os Monumentos Nacionais - ou a treta que o substituiu - deixe cair a Igreja do Colégio dos Jesuítas a Campolide, por exemplo.
Não é, porém, destas coisas que queremos falar.

c) Do que queremos falar, verdadeiramente, é daquilo que muita gente se pergunta neste momento: dantes tínhamos um país reprimido, atrasado e em guerra. Agora somos, supostamente ao menos, uma democracia. E, olhando em redor, perguntamo-nos: como é que chegámos aqui?É claro que este "aqui", se desdobra: há um «aqui» mero estado de espírito, feito de descrença e desilusão. Acreditávamos, estávamos, como dizem os nossos irmãos, "muy ilusionados". Ou seja: tínhamos espectativas e julgávamos que eram realizáveis. Falamos por nós, e damos como testemunhas os programas dos partidos políticos de então, a constituição que deles resultou.

Queríamos superar o nosso analfabetismo, a nossa incultura. Queríamos acabar com a miséria. Queríamos que nenhum português mais se visse forçado a procurar "lá fora" as coisas que "cá dentro" não alcançava e a que queria ter direito. Coisas tão simples como uma casa que não fosse só um telheiro, de chão em terra batida; que tivesse tecto e uma casa de banho, electricidade, água canalizada, esgotos... Coisas tão simples como dinheiro para chamar o médico e aviar a receita na farmácia... Escolas para onde mandar os putos, a ver se tinham uma vida melhor do que a nossa.

Queríamos aquelas coisas que começávamos a ver na televisão: um carro e um fato, sofás para ver o futebol com os amigos enquanto bebíamos umas cervejas.

Queríamos desodorizantes, sabonetes e champôs. Queríamos que os nossos filhos bebessem leite e não só sopas de café.
Invejávamos os americanos - ou o que supunhamos que eles eram. Raros de nós queríam ser como os russos: não sabíamos nada do seu sistema educativo, mas víamos que os seus automóveis eram francamente maus.
E achávamos que também precisávamos de liberdade.
Éramos pequeninas rãs, mas queríamos ser maiores do que o boi.
d) Mas também há um «aqui» que é geográfico, por assim dizer. Estamos neste canto da península e nem sequer temos a sorte da Turquia que se espalha por dois continentes e, por isso, pode escolher entre a Europa e a Ásia. Escolheu, pelo menos até ver, a Europa. A seguir talvez venha o Líbano que se pode gabar de ter vários milhões de cristãos. E depois, quem sabe, Israel, que não me parece que tenha muitos.
Nós, ibéricos, temos um pézinho em África. Os nossos irmãos aqui ao lado têm Ceuta e cercanias; nós temos a (alegada) língua de Camões. Teríamos tido, como os turcos, a possibilidade de escolher.
Podíamos ter embarcado na Jangada de Pedra do Saramago e atracado em África. Já viram como era bom para a nossa auto-estima? Em vez de estarmos na cauda da Europa, podíamos estar vanguarda da África.
Em vez de rabo de pescada, éramos cabeça de sardinha.
Mas, vendo bem, se a cabeça fosse a do António Sardinha, também não era grande coisa.
Mas rabo? Ainda que de pescada? Francamente!

quinta-feira, julho 10, 2008

Mas os adultos, Senhor...














Que é que pensam?
O Estoril não é só um Casino.

É também o Tamariz.
E um paredão por onde correm gentes.
- Que perseguem? - pergunta-se o fumador impenitente, o copo de whisky a chocalhar o gelo. - De que fogem?
- O quê, senão a si mesmos? - esclarece o rafeiro.
- De quê, senão deles próprios?

sábado, julho 05, 2008

Reticências


1 Março 2008

Não sei bem porquê
Gosto de escrever em forma de sapato
Começando na curva arredondada do pé
Até chegar às pontas dos dedos num desvelo timorato...


Ana Maria Puga, Reticências... Papiro Editora, 2008



Interpretado com a caneta e o pincel, o poema podia resultar mais ou menos assim. Mas a Ana Maria nunca nos havia de perdoar...

quarta-feira, julho 02, 2008

Filinto Elísio, da velha França...

O Portugal, Caramba! decidiu criar o «Super-Tinto Blog Award» e, como a Caridade bem ordenada, por si próprio é começada, atribuiu-se logo a distinção a si mesmo.
Nada de egoísmos porém. Se alguém desejar a mesma distinção, faça o favor. É só copiá-la e pôr junto das que já lá tiver.
A iniciativa nem sequer é original, mas era cativante. Não que, como o Salgador da Pátria, donde picámos a ideia, não gostemos de uma cerveja bem fresca em dias de calor.
Mas, enfim, um vinhinho branco, muito seco e levemente refrescado, não é somente muito melhor: é infinitamente preferível.
E quando se chega aos tintos, que dizer?
Nada se não a música pode dar conta desse doce enebriamento.
Conhecem a velha canção de bêbados, o Filinto Elísio?
É assim:
Filinto Elísio/ da velha França/ enche-me a pança/ deste sabor!
Malditas tripas/ que não comportam/ trinta mil pipas/ deste licor!
Depois, os bebedores, à vez, emborcam o copo cheio e despejam-no goela abaixo. Todos os outros cantam:
Primeiro atirador, atira atira/ primeiro atirador, atira atira..., até que o copo seja completamente esvaziado.
O bebedor deve, então, virar o copo para baixo e mostrar que não sobrou nem uma gota. A malta entusiasmada canta:
Mas que belo compinchão/ que bem comporta o seu quinhão!
Claro, se cair uma só gota que seja, canta-se:
Mas que mau compinchão/ que não comporta o seu quinhão!
E o mal-jeitoso deve abandonar de imediato o círculo dos bebedores.
Segue-se o bebedor seguinte e o outro, e o outro:
Segundo atirador, atira atira... Terceiro atirador... Quarto atirador...
A ideia é que, a pouco e pouco, os bons bebedores comecem a ficar um tanto entornados e comecem a não ser capazes de beber o seu copo até ao fim sem entornar uma gota sequer.
O último a cair para o lado é o glorioso vencedor e a boa moral que se lixe. A gente atura-o enquanto ele vomita, ouve-lhe os despautérios e as dores da alma, acarta com ele para casa... e pronto. Amanhã o melhor será outro. E depois de amanhã, se calhar, ainda outro.
«Super-Tinto blog award»