terça-feira, junho 30, 2009

Que fizemos do luar de estio?


Que fizemos do luar de estio em que os corpos se atormentavam em desejos e tabus?
Que resta das noites claras em que a palavra afagava o silêncio
das bocas suspensas no amor?
Que sobra de nós nos gestos invocados no tempo incerto
dos dias vazios de sol e de mar?
Tanto tempo demorado na memória
dos sonhos por fazer!
Agora lavro o tempo onde receio que rosa alguma florirá
(e contudo, insisto teimo e semeio)
José Alberto Damas

Degraus de Silêncio


E avança uma Velha sem Restelo:
- Qual é o Mar Português?

(o das lágrimas de sal...)
Esse mar nunca existiu
Ignora a cor das nações
Tratados que nunca viu
O mapa das intenções
Do homem que as coloriu

O mar não é português
Quando quer afunda os sonhos
Quebra a vaga de ilusões
Derruba barcos tristonhos
Sem olhar a distinções
No homem que as perseguiu...

Existe no mar um azul sem alma
E na mudança das suas feições
Nem páginas de resgatar a calma
Nem vogais de atestar circunscrições...

E fundo - no seu mistério
Sempre calando assistiu
À rota das ambições
Sem as lágrimas de sal
Nascendo das convicções
Do Homem só que Partiu...


Ana Maria Puga

degraus de silêncio

Papiro Editora, 2009

segunda-feira, junho 22, 2009

sexta-feira, junho 19, 2009

Subsídios para o Livro de Aka (XIX)



- Aka, há destinos como o teu.
Estão muito para lá do bem e do mal.
Passam por sítios proibidos onde um passaporte é só um pedaço de papel, sítios onde nem todo o oiro do mundo te resgatava a alma, quanto mais esse corpo que nem para a cama serve.
Sítos onde só contam as minas, as balas, os arames farpados.
Mesmo com catorze anos, Aka, já devias ter percebido porquê.
- Não tenho de perceber, Aia, e não quero perceber.
Para lá do bem e do mal, como tu dizes, o meu Deus ensinou-me que não há nada.
Continuas a não ter direito nenhum de me bater.
- Não te faças mais parva do que és, Aka.
Tenho todos os direitos, estou aqui em nome da violência.
Julguei que já tinhas entendido: eu não sou a tua mãe, Aka.
Sou a tua carcereira.

sábado, junho 13, 2009

Sem título

Havia de haver uma lei que obrigasse os pintas a ficar quietinhos ao menos um par de minutos quando a gente os quer desenhar.
Aqui fica a sugestão.

quarta-feira, junho 10, 2009

Wiseguying

José Gil, Em busca da identidade - o desnorte, Relógio d'Água, 2009
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João Miguel Tavares, "Cuidado com os nomes que chamam aos vossos filhos", Notícias Magazine de 7 de Junho, pag. 82
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Não quero que ninguém venha ao engano: este post é acima de tudo sobre um senhor, João Miguel Tavares de seu nome, jornalista freelancer dizem, que assina a página "Vida familiar" no Notícias Magazine de 7 de Junho último.
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É uma página curiosa.
Ao que me pareceu - e li-a atentamente mais de uma vez - o João Miguel Tavares vem a público mostrar a sua profunda indignação por não dever chamar, ternurento como é, «meu querido crapulazinho, meu g'anda sacaninha» ao seu filho Gui.
Pois quê?
Um pai já não pode dar um beijinho a um filho quando ele rasga os jornais do papá?
Já não se pode babar de puro gozo com as pequeninas malandrices do rebento?
João Miguel Tavares não diz e, provavelmente, não o pensará. Mas ficou-me a impressão de que, para ele, cuspir na Tia Ermelinda que, coitadinha, tem bigode, ou bater na Mãe que lhe recusou o equivalente a uma bola de Berlim antes do almoço, são pecadilhos que terão de ser reprimidos com um simples «anda lá, meu malandreco». E pimba! Um beijinho na bochecha.
Mas isso, como ele próprio reconhece, é porque não percebe nada de Filosofia.
Parece-me um facto: o João Miguel Tavares terá alguns defeitos, quem sabe, mas não o tenho na conta de mentiroso. E todo o texto da "Vida Familiar" o confirma.
Do opúsculo de José Gil - e ninguém é obrigado a escrever sempre em quantidade, só, por respeito a si próprio, em qualidade - João Miguel Tavares apenas nos dá conta de uma coisa que qualquer professor, qualquer psicólogo ou educador minimamente atento sabe de ginjeira: que, para a criança, a atitude dos pais é muito mais significativa do que as palavras proferidas. Bem podemos ralhar com a criança, dizer-lhe «isso não se faz» se o tom em que o fizermos for o primeiro e claríssimo desmentido das nossas palavras.
Para Gil, esta tolerância excessiva, mais não faz do que mostrar à criança que a malandrice, a pequenina trafulhice a meio caminho da desonestidade, é mais do que permitida; de facto, é desejável, o único meio para vir a ser um «chico-esperto» de sucesso numa sociedade de «chicos-espertos», governados pelo «chico-espertismo».
E, por curioso que pareça, não sendo, como ele próprio diz, um Filósofo, João Miguel Tavares mostra claramente que o percebe. Percebe que o chico-espertismo é um conceito central no modo como vivemos a cidadania em Portugal. Central, mesmo que não se apresente com a dignidade de uma expressão latina ou, o que seria ideal, americana (wiseguying, por exemplo, não sei se daria, mas que era mais cool, era).
Percebe. Mas o tom de simulação per contrarium (uma das formas mais fáceis da ironia) esse, diz-nos que não aceita.
Diga-se: não acredito que ele, Pai extremoso, deixe o Gui andar a correr aos uivos no restaurante incomodando toda a gente ou que lhe ralhe chamando-lhe «meu malandreco». Portanto, quando escreve que "o chico-espertismo abala a pátria e eu estou a ser cúmplice. A bem do futuro da nação, vou começar por trocar os livros da Disney pela obra completa de José Gil" e por aí fora, o que está a dizer o João Miguel Tavares, ele que não é Filósofo?
Eu diria, se ousasse interpretar, que, tal como muitos outros cronistas da nossa praça, está só a mostrar o seu wiseguyism.
Um dia, quem sabe se não será útil?
E já agora, trocar os livros da Disney pelos de José Gil talvez não fosse assim tão má ideia.
Primeiro porque evitava que os mocinhos lá de casa lessem porcarias. E depois porque ficavam com qualquer coisa realmente valiosa nas estantes para lerem mais tarde. E o Pai João Miguel também podia ir aproveitando.

segunda-feira, junho 08, 2009

Sem título


- Afinal, Tio La Fontaine, como é que era essa fábula?

quinta-feira, junho 04, 2009

Subsídios para o Livro de Aka (XVIII)



Não era anormal dirigirem-se a ela;
o guarda-costas limitava-se a vigiar, lá de longe.
- Não olhes as pessoas nos olhos. - ralhava a Aia.
Mas Aka nascera assim, perguntadora.
Os olhos, castanhos ou verdes, conforme a luz, inquisidores, captavam tudo e todos.
Deixavam-se captar por todos e por tudo.
O mágico tirou do turbante uma rolinha branca, depois olhou em volta, fê-la desaparecer nas mãos de um jovem de cabelos para a testa, em seguida pegou nas de Aka, colocou-lhe a direita em concha sobre a esquerda:
- Ah-ah! Voilá notre petitte voleuse! Quer mostrar-nos o que tem aí escondido?
Aka sentiu cócegas na palmas das mãos, como se um animalzinho crescesse e lutasse para sair.
Quando as abriu, a aranha sentiu-se livre, saltou para o chão.
Houve gritos, gente em fuga, uma rola branca voou.
O skin da grande barriga tentou com a bota, uma vez e outra, esmagar a aranha assustada.
Com as suas grandes patas, correu por entre pés de gente e de cadeiras.
Num instante surgiu um grupo para dar caça à "tarântula" e outro para defender os direitos da pobre «bestiole assustada».
Não viram o mágico curvar-se profundamente, mãos postas diante do rosto.
- Posso saber o nome daquela a quem devo ter visto um milagre? - perguntou ele.

segunda-feira, junho 01, 2009

Quando os Vascos eram Gonçalves


A Beatriz Costa já cá não está para me perdoar o abuso. Para ela, jovem nos anos quarenta, os Vascos, obviamente, eram Santanas.
Os tempos mudaram, como sempre fizeram e hão-de fazer, pelo menos, enquanto o Pai Cronos que é o dono das ampulhetas os deixar brincar com a Criação.
E quando esses mudados tempos vieram, as Beatriz Costa e as Amália Rodrigues deram-se conta de que também os Vascos não eram os mesmos.
Agora era o Vasco Lourenço, claro, capitão em Abril.
E o Vasco Gonçalves que depois foi primeiro ministro.
Diga-se o que se disser: quando por um qualquer erro da Mãe-natureza, certamente congénito, também eu ligo a televisão e me ponho a olhar, a primeira coisa que me assalta é a saudade dos discursos do Vasco Gonçalves.
Eu sei que ele era comunista, o que, hoje em dia, corresponde mais ou menos a ser um melquetrefe desclassificado.
Mas quem não foi, ao menos, compagnon de route, colaborador ou cúmplice numa qualquer fase da sua vida, das duas uma: ou era ferozmente salazarista como a Senhora minha Avó que Deus guarde, ou era tontinho da cabeça. E a alternativa não é exclusiva: muitas vezes, acumulavam.
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Percebam que não estou a falar de quem, felizmente, é demasiado novo para compreender o sufoco em que se vivia nos tempos de O Pai Tirano ou de O Pátio das cantigas.
Do que estou a falar é do Senhor Cardeal Patriarca a abençoar as tropas que iam para as colónias enquanto as polícias, a política e as outras, perseguiam os desertores, os emigrantes que tinham de ir a salto para França. Do que estou a falar é do número ridículo de estudantes que chegavam à faculdade e depois conseguiam acabar um curso. Do que estou a falar é dos bairros de lata que foram crescendo à volta de Lisboa e do Porto. Do Delfim, que tocava clarinete na filarmónica e vivia numa casa de terra batido, telhado de telha vã, sem água nem esgotos.
Do que estou, enfim, a falar é dos movimentos de libertação das ex-colónias que, ao ganharem a guerra, não libertaram só os pretos de lá. Libertaram-nos também a nós, os pretos de cá.
E, nos discursos do Vasco Gonçalves, ao fim de anos e anos santimoniosos, de untuosas palestras, surgia uma espontaneidade, uma tão grande fé nos humanos que, concordasse-se ou não, cativavam.
Mas, claro, ele era um major do nosso pouco glorioso exército.
Para os militares como ele, as coisas são simples, as pessoas são honestas ou não, trabalham ou não, são exploradoras ou são exploradas, é tudo sim ou tudo não. As meias tintas, a conversa para empatar, não lhe cabiam no discurso: meio jantar pode ser melhor que nada, mas não é jantar nenhum, ponto.
Foi fácil chamar-lhe Vasco, o Louco, como ao Francisco Costa Gomes chamaram o Chico Rolha. A louca sinceridade sempre assustou os bem pensantes que têm estômago para engolir tudo menos uma verdade crua.
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Cronos, entretanto, abanou as ampulhetas outra vez.
E a pouco e pouco fomos assistindo ao regresso do discurso da Senhora minha Avó.
Ela não era monárquica: era talassa. Com muita honra!
E repetia: Muita honra!
Contava com orgulho as pequenas patifarias da Tia Margarida pelos idos de 1910, de loja em loja a perguntar:
- Tem bolo-Rei?
E quando o orgulhoso empregado lhe dizia que agora, com a República, se chamava bolo-Nacional, respondia:
- Então, muito obrigada, mas não quero!
Também a minha Avó se recusava a aceitar que, quase sempre, se tem de mudar o nome às coisas para que elas fiquem na mesma. Ou, quando não se quer uma coisa, deixa-se-lhe o nome e sapam-se-lhe os alicerces. Escuso de dar exemplos, não escuso?
Para ela, o Salazar era tudo. O salvador da paz e da tranquilidade, a dela própria para começar.
O guardião da decência.
O seu único defeito? Não era bonito, não dava explendorosos bailes em Queluz.
Quanto ao resto... o resto não havia! Nós não nos metíamos em coisa nenhuma! Que ficasse bem claro!
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Claro que nos metemos.
Timidamente embora, fomos às manifestações. Distribuímos comunicados das Associações de Estudantes, o Avante, o Recuante e o Laterante, todos com montes de foices e martelos, todos dos verdadeiros partidos da classe operária. Muitas vezes recebíamo-los em embrulhinhos e distribuíamo-los antes mesmo de os ler. E houve outras pequeninas coisas que agora já não interessam, que não fizemos para que nos agradecessem.
Mas os tempos passaram e um outro Vasco escreve, com a maior das naturalidades: "parece que, no fim de contas, Salazar não se enganava [1]: Portugal prefere um único partido (se não exactamente um partido único). Um partido 'neutro', sem cor e sem princípios, com a autoridade necessária para salvar a pátria de si própria. Pela força, como é óbvio." E conclui, linhas mais abaixo que "a solução lógica seria assim eleger em Outubro uma força parlamentar irresistível, limitar a liberdade de imprensa (em sentido lato [2]) e submeter a justiça às conveniências do executivo." (Público de 30 de Maio)
Neutra, essa força irresistível?
Talvez. Mas a Europa, nos idos de 1933, não teve uma boa experiência com a eleição de "uma força parlamentar irresistível" na Alemanha. E ver o Vasco Pulido Valente a escrever as coisas que e Senhora minha Avó dizia aos oitenta anos, confesso, não me deixa nada tranquilo.
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1] E, decerto, raramente tinha dúvidas. O VPV não se pronunciou.
2] Lato?