quarta-feira, abril 30, 2008

Quem sai aos seus, voa baixinho.


Há já muitos anos, aí por 75, talvez, lembro-me de um jovem a quem se não chamava então «gestor», a berrar indignado! Chamava-se Pedro Costa, ou Sousa ou Alves, uma coisa assim.

Era licenciado numas Letras quaisquer, argumentava sempre com um esquema diante dos olhos e achava que, acima de tudo, tinha de se ser coerente.

Nós nem por isso: verdade era dialética, as contradições faziam parte do processo revolucionário e a vanguarda da classe operária é que era, nós, mais ou menos intelectuais só podíamos estar a seu lado. E passávamos horas à roda da mesa, como dantes soía, reuniões atrás de reuniões, a decidir da linha justa. Estávamos, como se dizia então, «a serrar presunto». O Pedro Alves, porém, que era maçarico naquelas coisas, achava que estávamos era a perder tempo. A bem dizer, a gente suspeitava de que ele se tinha apaixonado por uma senhora casada - as paixões revolucionárias foram mato, naquelas eras, quem não se separou nem participou em dúbios encontros que atire a primeira pedra - e queria aproveitar aquele bocadinho antes de ela ir ter com o marido.
Apesar disso, muitas vezes fomos dar com ele a trabalhar até altas horas no gabinete, com planos e reestuturações que eram chumbados liminarmente porque os sectores implicados tinham sempre coisas muito mais importantes em que pensar.
- Mas o quê, caramba, mas o quê? - indignava-se.
Não obtinha resposta... ou sim: relambórios revolucionários, cheios de palavreado redondo, parágrafos tirados do Lenine ou do Enghels.
- Tás a ver? - acalmava-o eu. - É um período revolucionário, pá, só acontece uma vez na vida.
- Mas qual revolução, pá? - gritava ele. - Se não há trabalho revolucionário, como é que há revolução?
Nós encolhíamos os ombros. Algum mais exaltado respondia que tudo isso eram conceitos burgueses, contra-revolucionários. Tarefismo. E por aí fora. O jovem gestor não tardou a ser suspenso, transferido, reduzido á sua insignificância; um dia, o Pedro chateou-se e declarou-nos que se ia embora.
- A gota de água, pá. - explicou-nos ele. - Atingi o meu limite. Não aturo mais aquele gajo. Ou sai o Director ou saio eu.
Tinhamos ido almoçar em grupo, ali adiante da Escola Politécnica que ainda não tinha ardido, e estávamos já nas bagaceiras. Eu tinha acendido o cachimbo com um tabaco pestilencial - era para o que dava o vencimento - e enchia a atafulhada sala com as largas baforadas de espesso nevoeiro, mas nessa altura ainda não era pecado.
- Qual Director? Ele há quatro! - perguntei eu
- Três. O outro é o presidente. - precisou o Leonel.
E o nosso camarada alumiou o nome ao santo.
A empresa em que trabalhávamos tinha sido considerada estratégica, tanto antes como depois de Abril, e estava cheia de «fascistas». Por isso achou-se bem que fosse intervencionada: os militares sucediam-se nos diferente pelouros e o Director em causa qualificara-se para o cargo pelo facto de ser Capitão, piloto aviador da Força Aérea, provável ex-bombardeador de tabancas indefesas.

A proposta que o Pedro Lemos, gestor gestor recém-eleito e, já agora, o engenheiro Lousa, responsável por um importante sector técnico da empresa, tentavam que fosse discutida dizia respeito à concentração dos múltiplos edifícios pelos quais se espalhava a actividade da empresa. O produto principal dividia-se por três edifícios, tão distantes uns dos outros que exigiam um corropio de viaturas para se manterem em contacto. A manutenção dos equipamentos, essa podia requerer, no mínimo, umas cinco oficinas, cada uma instalada num inferninho à parte. A empresa fôra, ao longo das décadas, adquirindo edifício atrás de edifício, aluga daqui, compra dali, para instalar tão importantes necessidades.

O património imobiliário era impressionante. Das complexidades correlativas nem se fala: diga-se apenas que um carrossel de carrinhas 4L girava incessante, por vezes com um só papel, mas acompanhado do respectivo protocolo - um caderno de capa preta que tinha de ser preenchido à mão - que devia ser assinado pelo contínuo do serviço destinatário antes de a carrinha, vazia agora, percorrer de volta o caminho para mais um molho de folhas.

Fazer um grande edifício que concentrasse tudo isto parecia ao jovem camarada, bem como ao camarada engenheiro responsável pelo produto, uma medida razoável. O financiamento estava á vista: bastava alienar dois ou três dos edifícios para garantir a viabilidade da nova sede.

- Vamos lá a voar baixinho, disse peremptório, o Sr. Capitão piloto aviador, pondo ordem na reunião de planeamento.

- A voar baixinho, estão a ver? Como é que os gajos querem que se faça alguma coisa? - e repetiu: - Se ninguém faz trabalho nenhum, como é que querem fazer a revolução?

- Tens a certeza de que alguém quer? - provoquei eu a escarafunchar no cachimbo que se tinha entupido. - Olha que eu não sei se acredite...

- E então, vais-te embora só por isso? - perguntou o Leonel.

- Só por isso? Achas que não chega? Um parvalhão que não sabe ler nem escrever, um analfabeto de pai e mãe, a mandar a malta voar baixinho? Se não tem envergadura para dirigir uma empresa deste tamanho, andor. Não vai ele, vou eu. Tenho mais que fazer, pá. Vou trabalhar para a Nanterre, que há lá muitos livros.

- Pá - intervim eu a pôr água na fervura. - Que é que tu queres? O gajo o que aprendeu lá na tropa foi a voar assim. E sabes porquê? Com aquelas latas velhas dos Fiates e dos T-3 e os helicópteros da Grande Guerra, eles têm é medo de ir mais alto. O programa revolucionário dos gajos tem de ser a mesma coisa, pá, é rasteirinho, pronto.

A resposta do Pedro Costa não foi lá muito bem educada e questão ficou por ali, que remédio. Ele partiu, escreveu uma meia dúzia de cartas aos amigos, publicou um par de livros, ainda me mandou um e o outro encontrei-o, por acaso, numa livraria em Montmartre, quando por lá andava com uma amiga, em turismo romântico.

- Olha, olha! - exclamei eu deliciado.

A Voilá veio espreitar, leu o título que falava da enteléquia e quis saber a razão dos meus entusiasmos.

Contei-lhe, por alto, com o fim da história, de que entretanto me inteirara.

Vinte e cinco anos depois da partida do Pedro (Lemos Costa, como estava na capa do livro), mais mês, menos mês, mais ano, menos ano, com alguns (bastantes, para não dizer muitíssimos) milhões de contos de prejuízos acumulados, a empresa contratou finalmente um gestor a sério: não importa a sua filiação partidária. Não parece que tenha saneado as contas, mas o que fez logo, além de despedir meia dúzia de pessoas mais ou menos incómodas, claro, e contratar meio cento de outras, foi vender os imóveis inúteis e concentrar os serviços.

Não soube dizer à Voilá, nem provavelmente o saberão, quer o Engenheiro responsável, quer o outrora jovem Pedro Costa, que luvas terá havido nessas transacções ou até, quem sabe, se não terá havido nenhumas. O que é certo é que, durante vinte e tal anos, a contar por baixo, se andou a voar muito baixinho.

Éramos assim antes do célebre dia 25. Mas como do nada, nada sai, assim continuámos a ser.
Quem quis ser diferente, emigrou. Nós, em matéria de voos, queremos e havemos de continuar a ser assim rasteirinhos, rasteirinhos...

quinta-feira, abril 24, 2008

Violenta repressão em Cuba

- Então! Nem um cassetete, ao menos, porra?

Glória ao Vencedor


O Grande concurso dos Blocos Castelo tem um vencedor, o Graza, do Arroios, que, após uma aturada pesquisa na Net, identificou a jovem Rita Redshoes. Aqui fica, com as felicitações do Portugal, Caramba!, a taça que, muito justamente ganhou.

sexta-feira, abril 18, 2008

Adivinha:


O Portugal, Caramba! não tem quaisquer dúvidas sobre a enorme influência da Igreja Católica Apostólica Romana na cultura portuguesa. Ela faz-se sentir desde as grandes questões fracturantes da nossa sociedade, como se viu durante a discussão sobre o aborto e, mais recentemente, no problema da culpa no divórcio litigioso, até aos mais ínfimos detalhes.
Assim, o Portugal, Caramba! propõe aos seus leitores a seguinte adivinha:
Como se chama a jovem cantora portuguesa que declarou:
- Sim, claro, admito que o Santo Padre tem sido uma influência constante na minha carreira.

quarta-feira, abril 16, 2008

Carta Aberta ao/à Senhor/a Gerente


Meu caro/a Sr./a Álvaro/a Silva (1):

Recebi da filial da instituição bancária que V. Exª/º dirige, um questionário impresso.
No seu (dele) antecipadamente grato preâmbulo, explica o dito impresso que a minha colaboração é pedida para dar cumprimento ao Aviso nº 11/2005 do Banco de Portugal.
Não querendo duvidar da vossa competência profissional, estranho que tenham decorrido três anos desde a emissão do Aviso e este vosso pedido de colaboração.
Demorou assim tanto tempo a elaborar o questionário? Acredito que sim, porque acredito também nas virtudes da ponderação.
E, de facto, reparo que ponderaram atentamente as eventuais susceptibilidades dos vossos clientes. A abrir a carta deparei logo com a expressão «Caro/a Cliente». Dado que o meu nome no envelope é claramente masculino, e não podendo supor que V. Exª/º não se tenha dado ao trabalho de o ler, interpreto essa fórmula de tratamento como propositada para respeitar uma possível identidade de género alternativa. Agradeço a atenção e, desconhecendo por meu lado a orientação sexual de V. Exª/º retribuí da melhor forma possível como constatou supra.

Perdoe-me V. Exª/º este longo intróito, que eu vou já à substância desta carta.

Sou cliente da vossa instituição há tantos e tantos anos que muito me espanta que venha agora perguntar-me coisas do tipo como me chamo e onde moro - bastava terem guardado fotocópia do envelope que me enviaram, não? - data do nascimento e profissão, se estou activo ou reformado, rendimentos e habilitações literárias... - tudo coisas que constam nos inúmeros papéis que V. Exªs me enviam regularmente ou dos contratos que convosco firmei; e não creio que alguma das coisas que me perguntam seja omissa da minha ficha de cliente. Que alguns dos vossos Administradores não necessitem de saber ler, não me parece grave. Não acredito, porém, que os jovens futuros executivos que mourejam atrás das vossas secretárias (honnit soit...), não possuam pelo menos um par de pós-graduações. Porque não recolhem eles os dados do vosso próprio ficheiro?

Espero, evidentemente, que nessas fichas não constem coisas como Automóvel, sim, não, ou ocupação dos tempos livres (Hobbies). Já viu V. Exª/º quanto me envergonharia o meu pobre Fiat Uno de 1987 se constasse lá em vez de um BMW? E já imaginou V. Exª/º como eu coro só de pensar que, acidentalmente, uma das vossas Secretárias, Doutoras ou Empregadas da Limpeza leria na minha ficha, que passo os meus tempos livres na internet a ver filmes pornográficos?

Perdoe-me, portanto, esta recusa envergonhada às curiosidades indiscretas do vosso inquérito.

Deixei para o fim uma dolorosa questão.
Desculpe, mas ainda não tinha sido insultado tão gravemente desde que o segurança de uma loja me proibiu de entrar sem selar o saco onde eu trazia um pobre par de botas acabadinho de comprar noutro lado.
- Ah, é porque há muitos roubos..., explicou ele embaraçado porque eu lhe disse claramente que não o autorizava a mexer nas minhas compras.
- E está a chamar-me ladrão?, perguntei eu com cara de poucos amigos.
- Ah, são ordens...
- Então diga ao seu patrão que acaba de perder um cliente.
E saí pela porta fora. Até hoje.
Do mesmo modo, Exmº/ª Senhor/a, tenho de lhe fazer esta pergunta: para que é que no seu questionário me pedem documentos comprovativos da minha morada e do meu número de contribuinte, da profissão, etc.?
Documentos comprovativos de quê? De que as minhas eventuais respostas são verdadeiras? Mas não é suposto que eu, cliente, seja uma pessoa honesta e verdadeira e não tenho o direito de ser assim tratado?
Em resumo, a minha pergunta é simples: é mentiroso o que me está a chamar?


Com os melhores votos de sucesso profissional para si e todos os seus colaboradores e aguardando uma resposta a estas dúvidas, sou, de V. Exª/º atentamente

a) Tacci (2)



1) Nome fictício, claro. Não sou nenhum denunciante.
2) Heterónimo, como já sabem.

segunda-feira, abril 14, 2008

O Insecto Imperfeito, de Beatriz Lamas de Oliveira

Quem tem farelos?






um



Julguei durante longo tempo ter sido a única pessoa neste mundo a dar-se conta d'O insecto imperfeito.
Não era um livro particularmente chamativo. Tinha uma capa alaranjada, um desenho a negro, tipo um grilo dentro de uma gaiola nem por isso muito bem desenhados. A Gradiva não tinha feito um esforço muito notório.

O nome da autora, Beatriz, provavelmente a Bia como a tratariam os amigos, e os apelidos Lamas de Oliveira pelo lado familiar, não diziam nada. Porque é que se compra um livro destes, é um mistério. Haverá um Anjo da Guarda dos leitores empedrenidos? Sabem? Aquele que nos puxa pela manga e, sem contemplações, nos grita ao ouvido:

- Leva esse, ó estúpido!
O desatento comprador agarra-o, um pouco ao calhas, entala-o entre outros mais sonantes: um policial que nunca mais recordará, um importante autor norte-americano com direito a página e meia nos suplementos literários e os poemas do Nuno Júdice.


dois




E a leitura, quando chega, é surpreendente. Uma história de sedução, quase os anos de aprendizagem de um velho abusador.

Lembrou-me uma amiga que, num daqueles dias desesperados, perguntava: «Mas porque é que os homens são tão aproveitadinhos? Não nos querem, mas aproveitam sempre uma queca de borla...»

Foi gentil e poupou o meu amor-próprio: não disse «vocês os homens». Eu era muito jovem, muito apaixonado, casado há pouco tempo, e ter-me-ia magoado. Mas fiquei a pensar. E voltei a pensar. E penso de cada vez que a barca da paixão cruza a linha do horizonte e o gajeiro grita de lá de cima: «cachopa à vista!». É uma das minhas dúvidas mais recorrentes. Porque é que nós, os homens, tínhamos de ir a todas?

Emprestei o livro à esquerda e à direita (honnit soit...).

Procurei outros exemplares pelas livrarias para o oferecer. Fiz a sua apresentação numa escola secundária.

E, tirando a minha modesta pessoa, só encontro outras duas que parecem ter reparado n'O insecto imperfeito.


três





Uma delas acabo de a encontrar através de um motor de pesquisa: a Fernanda Botelho, que em 99 fez para a Gulbenkien a recensão do livro. Trancrevo como encontrei, se bem que, apostaria uma garrafa de bom tinto Duas Quintas contra uma de reles cola: a Fernanda Botelho, se tivesse sido ela, escrevia muito melhor do que isto:

"A obra está cuidadosamente escrita, com boa clarividência psicológica, mas o leitor? eu pelo menos, não entende lá muito bem a finalidade, o objectivo, a mensagem a recolher da leitura?..."

A Fernanda Botelho era uma mulher muito inteligente. Como tenho lido muito poucas, e muito poucos. Acredito que deixou estas perguntas para si própria, sem nenhuma intenção de fazer delas uma nota crítica. Mas é o que se encontra na net.



quatro



A outra pessoa que reparou no livro de Beatriz Lamas de Oliveira foi o Sérgio de Sousa que tem honrado este blog com a sua atenção (não muita) e sobre ele escreveu na revista «Leiamos» de Maio de 2000 (Edição de Editorial Escritor, Lda).

Com a devida vénia, transcrevo o que a este livro diz respeito:


"... Embirrei com o livro antes de o ter lido," escreve Sérgio de Sousa, "quando o vi numa livraria. Seria algum contraponto à novela de Júlio Moreira, O Insecto Perfeito? Folheei-o e não me pareceu. Romance, dizia-se. Com 98 páginas, apenas duas personagens principais? Resmunguei, apegado a antigos critérios de classificar as prosas.

Depois, de uma amiga, circunstancialmente colega de liceu da autora, ouvi o comentário: «É giro, achei-lhe alguma piada.» E assim se dá cabo, autenticamente esfrangalha um livro.

Por aspectos marginais, sem minimamente ter tomado conhecimento do seu texto, eu já embirrava com o livro.

Li-o e fiquei a gostar dele.

A primeira impressão foi: Que impacto teve uma relação amorosa na autora, que ela teve de vir dissecá-la na pele de extraterrestre.»



cinco



«O livro é mais profundo do que um ajuste de contas, é imaginativo e rigoroso.

Também existem mulheres que acalentam sonhos grandiosos e vagos, que levam a vida a imaginar êxitos, que jamais pensaram no que precisavam de fazer para os alcançar, que entretanto vão seduzindo homens que se deixam encantar pelos seus cantos de sereias e outros encantos mais palpáveis, e as vão sustentando, e depois essas mulheres acabam muitas vezes sós, sem amparo. Também há mulheres «pentacoladoras», e Beatriz Lamas de Oliveira não o ignora.

Mas não é delas que trata este seu livro, em que a protagonista desperta, com uma serenidade científica, da envolvência numa relação que nos relata com palavras precisas.»



seis



«A protagonista é uma extraterrestre colocada em Braga, num corpo de mulher, que ali se envolve sentimentalmente com um estrangeiro. Termo de duplo sentido, estrangeiro porque catalão, e porque, pelo menos para a protagonista, à partida estranho, o que comporta também múltiplos significados, desconhecido, esquisito.

Incarnada mulher, a extraterrestre representa o papel respectivo. A duplicidade da personagem vai servir a análise do envolvimento a que como mulher se presta, e a do distanciamento a que, como extraterrestre, dilucida a evolução do relacionamento.

E o jogo entre os comportamentos da extraterrestre e da mulher resolve-se numa síntese que é a missão.

Missão para cujo cumprimento a extraterrestre foi enviada à Terra, missão que é afinal o sentido «extraterrestre» da atitude feminina, de se deixar envolver e persistir numa relação com premissas para si erradas, empenhando-se numa transformação.»



sete


«Enquanto mulher, a protagonista inscreve-se na classe média superior, presta auditoria a empresas que preferem pagar caro a ela, para se verem livres de uma caterva de empregados a quem pagam pouco.

O estrangeiro é filho de uma prostituta, criado um pouco ao deus-dará, que foi passando pelo insucesso escolar, pelo «desenrascar-se» na tropa, e aprendendo expedientes de sobrevivência, «o valor dos favores como um capital de troca acumulável», «a usar o sexo, por um lado como afirmação das suas capacidades masculinas, por outro, como uma cenoura, que se vai acenando ao burro para o manter no bom caminho», confiando na sua experiência junto de mulheres carentes, a arranjar desculpas «para matar o tempo que era incapaz de utilizar», «em vez de envidar esforços para concretizar algum projecto de vida... a espraiar-se... em projectos de fantasia desinibida...» não se dispondo a desenvolver competências próprias, mas a aproveitar-se das dos outros, reclamando «direitos de proprietário em descanso merecido», desprezando todo o trabalho tido como feminino, revelando-se na realidade inábil, mas muito treinado a inventar desculpas para as suas incapacidades, nunca reconhecidas, antes sobrestimadas as capacidades, confundindo compartilhar com acomodar-se, aproveitar-se, julgando-se, ou agindo como se fosse, isento das obrigações comuns, insensível ao gostar e a compreender o desgosto, e por fim a repulsa, que isso provoca nos outros, o estrangeiro acabara vivendo sempre, afinal, à custa de sucessivas, temporárias, esperançadas amantes.»


oito




«A esta conclusão acabou por chegar a protagonista que, também ela, em espírito de missão, atinge contudo um momento em que quer apenas voltar a sentir que é responsável tão-só pela sua vida, que verbaliza que «duas pessoas não podem viver juntas só porque uma delas acha muito triste viver sozinha...»

O momento em que recusa um homem de quem tenha de tomar conta como um filho, em que quer ter uma relação «de igual para igual», com um homem responsável, com projectos e meios próprios, um homem cuja vida se não resuma à actividade de «pentacolar».



nove




«Beatriz Lamas de Oliveira, que ao longo da sua narrativa vai inserindo várias palavras com uma precisão cirúrgica, de que são exemplo as «tuas estupidezes», pag. 18, referindo-se aos trabalhos domésticos, «que quase nunca se atrapalhava» (o estrangeiro), referindo-se aos seus subterfúgios, e muitas outras, com especial destaque para os termos castelhanos, inventou ainda essa palavra conceptual, «pentacolar».

A «pentacolada» é um desporto radical imaginário, cuja prática requer um equipamento com cordas e ganchos, mas nada mais é precisado. O leitor, que já assistiu, pelo menos pela televisão, a largadas de pára-pentes, a escaladas alpinas, a gincanas de motocross, facilmente se identifica com esta actividade, que requer «audácia, esperteza, força, atributos masculinos», daí que surja como «a actividade masculina iniciática predominante». Em que, atrevo-me, permanentemente se oscila colado, dependente.»


dez




«A novela, prefiro chamar-lhe assim, de Beatriz Lamas de Oliveira, narra um caso extremo de vida de um homem que, na verdade, sempre se colou, e dependeu, pelo sexo, de mulheres que o foram temporariamente sustentando, oscilando entre umas e outras. Mas este caso extremo tem ressonâncias apenas ligeiramente atenuadas no machismo generalizado, e no comportamento típico masculino.

A relação homem-mulher, em que aquele que se pretende depositário da responsabilidade familiar, mas que se revela inábil na resolução de assuntos práticos e rotineiros da vida, imaturo, e a mulher acaba por arcar com o assegurar do dia-a-dia, o prevenir, o proteger, com paciência missionária, é um padrão ainda dominante.
(...)»

onze


«Pentacolada». Pois.
Tout communique, diria o Jacques Tatti.
Porque é que vocês os homens são tão aproveitadinhos, perguntava a minha amiga, há já muitos anos. Não creio que ela se lembre. Ainda bem, porque ela é uma Senhora.
Mas eu lembro-me, porque a dúvida foi ela quem a lançou. Receio não ter sido sempre um cavalheiro. Mas quem nunca praticou essa tal «pentacolada» que me atire a primeira pedra.

sexta-feira, abril 11, 2008

quarta-feira, abril 09, 2008

A Batalha de Não-sei-onde e os anos da Gi


Carlinhos - Heu... a gente vinha... quer dizer, a gente queria era vir e ser assim os primeiros, tá a ver, S'Dona Gi? Mas ela, ali, a Magrizela, ficou a experimentar saias e a dizer que as flores eram chungosas e isso. Só o Trabuco, que é aquela ratazana a fingir de cão que o Zé Nesgas arranjou, tá ver, S'Dona Gi, ele ficou a roer-se de inveja de eu ter a Magrizela...
Zé Nesgas - Tu? Tens o quê, man? Tu tens é pregos...
Carlinhos - Da-hã... Tu não estás flipado, assim do neurónio, nem nada? Deixaste ou não deixaste que o teu Trabuco trouxesse o osso para dar à Dona Gi?
Zé Nesgas - Oh pra ele! Man, pá, tou admirado! O génio chegou aí e faltou-lhe o gasóleo. (pausa) Charlie, man, tu não tás é a ver: o Trabuco trazia o que lá tinha de melhor, o mais saboroso, man, o mais suculento.
Carlinhos - Pois, e o mais aromático... Era cá um aroma que até apagava a chama olímpica, nem era preciso ser solidário com o Tibete.
Zé Nesgas - Tibete. Ah... pois, não me tinha lembrado... Mas sabes? Havia de se fazer um congresso pra arranjar um mais burro qu'a tu e n'haviam de conseguir.
Carlinhos (agarrando o Zé Nesgas pelas bandas do casaco) - Ah é?
(Envolvem-se numa bela escaramuça, qual de baixo qual de cima.)
Magrizela (suspirando ruidosamente:) - Desculpe, Gi. Nós vínhamos só para lhe dar os parabéns e trazer-lhe estas florinhas... Mas, desde que eu deixei de ser cadela, aqueles dois são piores que o gato e o rato. Fiz quinze anos, se continuasse cão estava à beira de morrer, tinha acabado o que quer que por cá andasse a fazer... Não me queixo de me ter tornado mulher, claro. Viverei mais quatro ou cinco vidas de cão, ainda não sei a que preço. Poderei ter filhos outra vez, e outra, e outra, daquele tonto do Carlinhos, em calhando...
Mas tive de aprender a negociar o tempo. E eu... eu tenho aprendido umas coisas, sabe? Uso o sutiã número trinta e quatro B, os sapatos trinta e seis, e tenho de tomar a pílula para que não nasçam cachorrinhos antes de termos tudo o que é preciso para os amarmos. Sei estas coisas, mas não sei porquê. Cada dia tem de se aprender uma nova regra, um canon novo, um novo preceito. É como, tá a ver, é como se a vida fosse uma coisa assim miudinha. Mas o porquê, o porquê último, isso que era evidente quando eu era só uma cadela... a Gi sabe? A Gi sabe se os homenzinhos amarelentos que nos cobrem fazem alguma ideia sobre isso?
E pronto, aqueles patetas já acabaram de brigar... São tão queridos e tão tolinhos, não são?
Olha, enquanto eles não chegam: muitas felicidades para ti, para os teus cachorrinhos e para os cachorrinhos dos teus cachorrinhos...
Carlinhos - Desculpe, S'Dona Gi.
Zé Nesgas - Tem de dar o desconto, ele é parvo.
Carlinhos - Outra vez?
Zé Nesgas - Outra vez o quê? Não percebes que tu és como aqueles cartões do supermercado? Tem cartão interpingo-modelo? Ao fim de cinquenta pontos, zás, temos direito a dar-te uma no focinho?
Carlinhos - E tu, não sabes que tu és do género férias em Punta Cana? Esmurra-se já e paga-se em vinte anos?
Magrizela - Nossa Senhora! (Canta:) Parabéns para a Gi, nesta data querida...
Zé Nesgas (emendando:) - Parabéns a você! Parabéns a você é que é!
Carlinhos - ~Você? Você é estrebaria, ó mongas...
Cai o pano. Em fundo ouve-se discutir enquanto a Magrizela canta o «Parabéns para si».

sexta-feira, abril 04, 2008

Joseph Ratzinger V

Francamente! Não me lembro de os Bispos de ali ao lado, nas Espanhas, terem sido chamados ao Vaticano e, em calhando, nem era preciso.
Mas os nossos foram. Não sei porquê: pinta-me que se andavam a portar mal. Tolerantes? Acomodados?
Não que se tivessem tornado verdadeiros pais, sofredores com o rebanho dos seus filhos, padres de espírito conciliar chamando à Igreja os mais humildes.
Não. Não era bem isso.
Mas, num povo de costumes tão brandos, irritável e agressor, sim, por vezes, mas logo manso e arrependido?
Melhor era que se deixasse estar, não era nenhuma fera, mas porquê acordá-lo? Talvez não mostrasse ameaçadoras presas, mas disparate era o mais provável.
O Senhor Papa, porém, é teutónico! Duvido que entenda estas nossas subtilezas. Para ele o pão é pão e o queijo é queijo.
A religião, sendo uma velhíssima hitória, é um património com dois mil anos. A Hierarquia é a sua única proprietária, a sua única intérprete com patente registada, a única dispensadora da Graça e do Perdão. Perdoarás a quem te ofendeu? Não. O Perdão é um dom divino que só a Hierarquia pode dispensar.
Amarás o próximo como a ti mesmo? Sim, desde que perguntes ao teu «legítimo Superior» quem, e o que fez para ser o teu próximo.
Pôr termo ao laxismo, como se vê, era imperioso.
E, se os Bispos nuestros hermanos endureceram as suas atitudes, ao ponto, por exemplo, de apelarem ao voto contra os partidos que aprovaram o casamento de homossexuais - os da esquerda, óbvio, se estes pobres socialistas como se chamam, ainda o são... - a Conferência Episcopal Portuguesa reelegeu o Senhor D. Jorge Ortiga, Arcebispo de Braga.
Nada contra.
Os Senhores Bispos que elejam quem muito bem puderem.
Mas que o eleito corra logo a gritar «ah! sacrilégio! laicismo! ateus! expulsaram-nos da praça pública!», isso já não parece tão curial.
Tanto mais que, já antes tinha saído a terreiro a clamar que iam proibir a assistência religiosa nos hospitais e por aí fora. Não era bem verdade, mas que importa?
Se, de facto, ainda não vimos ninguém do governo, ou mesmo fora dele, sair para a rua a gritar horrorosos insultos como «católicos!» ou «papa-missas!», também não deixa de ser facto que, cada vez mais, as pessoas se divorciam sem pedir conselho espiritual, que se juntam em pecado em vez de casar como deve ser. E agora as mulheres até já podem abortar legalmente em vez de se submeterem à penitência do opróbrio e do vão de escada, ao medo e à dor.
É o escândalo, percebem?
Quase tão mau como rezar a Santa Missa de frente para os fiéis, numa língua que eles entendem.
Ah, caramba!
Que o Papa seja infalível... pois. Tem de ser.
Mas o João XXIII, Senhor... ?
Porque nos dais tanta dor? Porque padecemos assim?