segunda-feira, dezembro 31, 2012

O Gato e o Rato (fábula interminável)

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O Portugal, Caramba! deseja-vos a todos - excepto ao governo, claro - um Ano Novo espetacular.

quinta-feira, dezembro 27, 2012

quarta-feira, dezembro 12, 2012

O Gato e o Rato (fábula interminável)

Diga-se desde já que não devo à Drª. Isabel Jonet coisa nenhuma: limito-me, como sempre fiz, a corresponder o melhor que posso às frequentes presenças de escuteirinhos no supermercado e pousar no carrinho um saco com umas massas e uns feijões, as tradicionais conservas e umas latas de salsichas.
É facto que nunca me pediram bifes, nisso a Drª. Isabel tem razão, nem bilhetes para concertos de rock. Já me pediram radiografias, sim, mas velhas, com os meus ossos e uns pulmões em mau estado, mas isso é outra coisa, é mais a campanha para a reciclagem, entregue os seus medicamentos fora de prazo na farmácia e outras coisas dessas.
Mas, todo este aranzel de opiniões contra a pobre Senhora, dá-me que pensar: alguma coisa nela  oscila entre a militância ecológica (poupar água quando se lava os dentes, por exemplo), a disciplina conventual (nada de bifes, a carne estimula uma hormonas perigosas) e a moralidade rígida da pobreza envergonhada (não vás aos concertos, pá, não vês que os pobres não têm nada que se divertir?).
Eu sei que pensar nestas coisas me incomoda, é como uma comichão vagamente dolorosa, mas que está lá, como para me recordar que a solução pode não ser esta, tem mesmo de ser outra, mas tem de ser uma.
Ouvir a Drª. Isabel Jonet, para mim, foi um pouco como regressar a uma infância, nem por isso demasiado feliz, quando íamos todos na procissão com a capa da Irmandade do Senhor dos Passos (que ainda não era Coelho), quando as Senhoras davam aos necessitados desde que não bebessem vinho nem se rissem despropositadamente e quando as mulheres sem direito a maiúscula trabalhavam e cuidavam dos futuros necessitados.
Não juro que goste deste regresso de coisas tão velhas, com um tão intenso cheiro a bolor.
Mas a Drª. Isabel Jonet será a culpada?
E de quê?
De ter falado das suas convicções mais profundas e de ter dito umas inconveniências?
Ora! Que se lixe.
O Senhor Pinto da Costa, para não falar dos nossos ministros mais ministros, claro, diz bastantes mais e nem se rala com os pontapés na gramática! E nós perdemos o nosso precioso tempo (de desempregados até) a comentar estas coisas? 
Francamente!
Tenham tento e percebam que o que vos moveu foi a tristeza de ver que o Banco Alimentar contra a Fome não correspondia a nenhum ideal de solidariedade senão nas vossas cabeças. No mais, é o que os humanos conseguem fazer: uma organização que, quando não se dedica a tiranizar os outros, segue o seu caminha a manquejar, com risco de cair de vez em quando. 

O Gato e o Rato (fábula intermiável)


quinta-feira, novembro 08, 2012

segunda-feira, outubro 22, 2012

A Lei da Caça

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Há coisas, francamente, que eu não entendo.
Por que diabo a caça, os animaizinhos de Deus que andam aos pulos por aqui e por ali, a tratar das suas vidinhas, hão-de ser resnúlia.
«Resnúlia», expliquemo-nos, é uma palavra que eu, sem a certeza de a ter inventado, pelo menos adoptei, fiado no bom exemplo do nosso Luís Vaz.
Se bem se lembram, ele inventava as palavras de que sentia necessidade aportuguesando o latim. E o Eça não se livra da fama de ter feito o mesmo a partir do francês.
Eu, seguro de que os grandes espíritos são sempre melhor exemplo do que os encolhidos, fui-me também aos clássicos e aportuguesei a expressão do Direito Romano, res nullius. 
Res significa «coisa», objecto, qualquer que ele seja, terras, casas, alfaias, escravo ou cão de que se não possa afirmar que têm direitos, mas que podem ser objecto deles. E nullius pode traduzir-se por «de ninguém».
Há coisas, portanto, que não são de ninguém. 
Um escravo abandonado não é um homem livre: continua a não ter direitos, mas não tem dono. Pode, portanto, ser apropriado pelo primeiro que lhe deite a mão. O mesmo acontece com um barco abandonado pela tripulação e deixado à deriva. E a uma carteira perdida e não reclamada, aplica-se o provérbio «quem perdeu, perdeu, quem acha é seu». 
Em muitas culturas esta incapacidade para ser sujeito de direitos ainda abrange os filhos, abrange as mulheres: se o pater (o macho alfa daquela família) morrer, outro macho terá de lhe suceder, sem o que as esposas e os filhos desprotegidos poderão ser considerados res nullios e apropriados pelo primeiro que se apresentar, para os fins que lhe aprouver.
E, se não acreditam que esta mentalidade ainda por aí persiste, perguntem a qualquer jovem bonita: ela vos dirá que uma mulher sozinha num bar, num restaurante ou no cinema corre o risco de ser vista como «resnúlia» e que já está habituada a ser alvo das mais variadas tentativas de apropriação por tudo o que nas redondezas for candidato a macho.
Salvas as devidas proporções (e só porque a mulher, de há uns tempitos para cá foi aprendendo a defender-se) a caça, as perdizes e as rolas, os coelhos, as raposas e os saca-rabos são a mesma coisa.
Pelo simples facto de existirem, qualquer pinto calçudo se arroga o direito de os perseguir e matar: não têm direito a nada.
Experimentem as gentis Leitoras e os bondosos Leitores abordar um grupo de caçadores e, com a mais caridosa das intenções, falar-lhes nos direitos dos animais. Vão a ver como é engraçado.
Responderão, com a educação que a prudência lhes recomendar - mas nem mais um grama - que os animais não têm disso, que são bichos ruins e dão cabo de tudo, desde as hortas até às árvores novas, que transmitem doenças e que têm de ser caçados... por eles próprios, claro.
E vá de passar pelas terras das outras pessoas, pelo quintal se não estiver bem vedado. Cortam as redes ovelheiras e pisam o que lhes estiver no caminho porque a lei da caça lhes dá o direito de perseguição.
E a gente, a vê-los ali com ar de guerrilheiros do Sendero Luminoso, ou de jagunços de um livro do Jorge Amado: o melhor é sermos prudentes, digo eu.
Há um par de anos, dei com um deles empoleirado no muro do meu poço, a uns trinta metros aqui de casa, de arma em punho, à espera de que o cão lhe levantasse um coelhito numa moita, ao que parecia. 
Mandei-lhe um berro aqui de baixo, a cautelosa distância porque não sou parvo - enfim, espero que não muito, pelo menos - e lá se foi ele, vagaroso e gingão, caminho acima.
Vedámos o poço, que remédio, com uma rede alta.
Que mais havíamos de fazer?
Estão a ver porque é que eu sou contra a Lei da Caça, não estão?
Até por autodefesa.
Se me for permitido, acrescentarei ainda, mesmo se a despropósito, que de há tempos a esta parte me ando a sentir assim, tipo Resnúlio, perseguido pelo Gaspar e pelo seu bando de caçadores da Autoridade Fiscal e Aduaneira e tenho a impressão de que nem as comissões venatórias me protegem.
Acham que é delírio e que tenho de ir urgentemente ao meu psiquiatra?
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segunda-feira, outubro 08, 2012

domingo, outubro 07, 2012

Quanto do teu sal

 
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Ó Mar Salgado, quanto do seu sal voltou a ser lágrimas de Portugal!

quarta-feira, setembro 19, 2012

Ultraleve

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Ligeiro,
ligeiramente surdo,
desculpa, querida,
importas-te de repetir?
As lentes grossas, já aligeiradas,
e um ligeiro espessamento das mucosas
esqueci-me onde.
Um ligeiro coxear, claro, quando começo a andar,
uma ligeira calvície, sim, quando a luz incide de cima,
que queres,
é a idade
[mas pára! Pára de beber, pára de fumar, faz dieta, não comas, não bebas, vive sem viver]
Felizmente,
ainda é ligeiro o colesterol,
e ligeira acumulação de gordura no fígado e a ligeira obesidade,
apneia/hipopneia de grau ligeiro
ligeiro, ligeiro,
não sei que mais,
esqueci-me das
ligeiras perdas de memória,
[como se chamava aquele tipo, aquele António, estou a vê-lo, o rosto de cavalo ligeiramente torto e a barba por aparar, como se chama ele déja?]
É, talvez, uma ligeira a perda de leveza no ser,
quiçá por insustentável, como o crescimento nos países terceiros.
Grave, grave, 9,6 metros por segundo quadrado,
só a perda de uma  ligeireza que dantes vinha sem se fazer rogada.
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terça-feira, setembro 11, 2012

Hegel

 
 
Ao ilustre filósofo
Georges Wilhelm Friedrich Hegel
 
O Pavão
 
De tanto molhar as penas
No tinteiro da razão,
Entalou o ego em dilemas,
Furou com o aparo o tinteiro
E tratado que levou ao livreiro
Não passava de um borrão.
Não há belo sem senão.
 

João Bessa, Poemas Metafísicos, Estremoz, 1967

terça-feira, setembro 04, 2012

Formas Superiores de Vida Animal

Luís Januário
Casado com D. Margarida Inácia Blanco de Azevedo Côrte-Real Andrade e Sousa
Pode ser encontrado nas feiras da Golegã e de Sevilha e em São Martinho do Porto, em alguns fins de semana antes das vindimas.

segunda-feira, agosto 27, 2012

Formas Superiores de Vida Animal

 
Dr. Dom Jacinto
(retrato robot)
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Pode ser encontrado em locais como a Granja ou no Náutico de Cascais.
Identifica-se mais facilmente pela qualidade dos tecidos do que pela dos alfaiates.
 
 


quarta-feira, agosto 15, 2012

Formas Superiores de Vida Animal

As leituras, felizmente, como dizia há já muito tempo um amigo nosso a propósitos dos símbolos, são como a chuva, acabam sempre por passar.
E passam.
Os livros, a gente lê-os, faz que sim com a cabeça, «oh! como é verdadeiro!». Ficamos avisados. Logo a seguir esquecemos e fazemos as asneiras de sempre.
Se se tratar de literaturas menores, como a ficção científica ou a policial, pior ainda. Das histórias aos quadradinhos, então, nem é bom falar. Alguém lhes liga? Alguém ousa admitir que aprendeu fosse o que fosse com essas literaturas pouco sérias?
Para não irmos mais longe, já repararam que, quando nos levam de casa um livro policial, tipo, «pá, não tens aí uma merda que se leia?», ninguém se sente obrigado a devolvê-lo?
Foi assim que eu perdi uma data de coisas importantíssimas: por exemplo, um livro do Perry Mason, na edição da coleção Escravelho de Ouro que me teria permitido fazer agora um bombástico post sobre o suicídio de Hemingway.
Já viram o prejuízo?
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Mas adiante: o facto é que a culpa não é só dos amigos que nos levam os livritos num bolso e nunca mais se lembram de quem era o propritário quando os re-emprestam a terceiros. 
Nós próprios também os perdemos: são nossos, claro, mas ficaram lá para o fundo duma estante, entalados entre filas e filas deles, a ganhar pó, nicho ecológico ideal para gerações e gerações de aracnídeos de toda a espécie (ácaros incluídos).
Nas grandes arrumações, uma vez por outra, vamos dar com uma preciosodade:
- Olha! Um Freeling que já não lemos há anos sem fim!
Ou uma Le Guin, umVonnegut, um Chandler - a propósito, há que anos não leio O Imenso Adeus...
E, inferno e danação, mais um que se perdeu!
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Enfim, un de perdu, dix de retrouvés, da poeira das arrumações surgiu um Hammett, toca a relê-lo, porque reler é recordar, recordar é viver, e viver, tirando umas secas por outras (por exemplo, tenho de levar o meu jipinho à inspeção, já viram?), viver, dizia eu, e espero que concordem, é bem porreirinho.
E então quando encontramos os nossos próprios sublinhados?
É a ocasião impar para uma recherche du temps perdu, tipo Proust à procura de reencontros; sucedem-se os espantos, as exclamações:
- Que raio! Em que é que eu estaria a pensar quando sublinhei isto?
Ou então, com um toque de ternura:
- Pá! Que giro! Que ingénuo que eu era!
Uma vez por outra ficamos a pensar:
- Pois é. É isto mesmo.
Foi o que aconteceu com A chave de vidro, do Dashiell Hammett onde um breve traço na margem abrangia um par de parágrafos.
- Não sei por que continua a falar do senador como se ele fosse um ladrão de cavalos - tinha eu assinalado. - Ele é um cavalheiro e...
- Absolutamente. leia o que dizem a seu respeito no Post: é um dos poucos aristocratas que restam na política americana. E a filha, outra aristocrata. Mas é por isso que o previno: tome tento e garanta-se logo que o for visitar, ou sairá de mãos vazias, porque, para eles, você não passa de uma forma inferior de vida animal, para com a qual não há regras estabelecidas.
É claro, tatava-se de um senador e aristocrara made in Usa, mas eu quis lá saber dessas imensidades quase sobrenaturais: desatei a pensar pequenino, na nossa democraciazinha à portuguesa.
É verdade que toda a gente olha para nós como se fôssemos "formas inferiores de vida animal".
Lembram-se de um livro do Graham Greene chamado O Terceiro homem?
Eu lembro-me, claro, mas também não sei onde pára. Ora acontece que nesse livro havia uma personagem, Harry Lime, se bem recordo, que lá do alto duma roda gigante numa Feira Popular na Viena do pós-guerra, apontava as figurinhas minúsculas lá em baixo e perguntava:
- Se um daqueles pontinhos pretos, lá ao fundo, parasse de se mover de repente, que nos importava?
De facto, tão pequeninos e tão ao longe.
Infelizmente, somos nós, esses pontinhos pretos. 
Não há regras para tratar connosco: cortam nos ordenados, nos subsídios de doença, fecham hospitais e palácios da justiça; sobem impostos, taxas, portagens, o que lhes apetece. Vendem ao desbarato aquilo que nos custou milhares de milhões a pôr de pé, a REN, a EDP, o BPN, a TAP, Sines, o transporte de mercadorias, sei eu lá! E já se falou nas Águas de Portugal.
E é quando humildemente queremos protestar, mesmo baixinho, «olhem lá, a àguínha, que fazia tanto jeito...», é nessa altura que sentimos, cá bem fundo:
- Sou uma forma inferior de vida animal.  
Se não me acreditam, tentem apresentar uma reclamação às Finanças... perdão: à Autoridade Fiscal e Aduaneira.
Ou então, ir ao banco reclamar contra o aumento das vossas prestações...
O Caixa olhar-vos-á exactamente como o Chefe o olha a ele; e como o Director olha para o Chefe; e como o Chairman do Banco, do alto dos seus vencimentos, cartões de crédito e prémios, olha para os BMWs dos Directores enquanto espera que o motorista o venha buscar.
A prima Cecília
Nós, para não lhes ficar atrás, pumba! Do alto do nosso sofá comprado no Ikea, olhamos para esse Senhor Chairman, quando ele aparece no nosso plasma da Worten, do mesmo modo como nos olhou o seu próprio Caixa. 
E pronto. Fechou-se o círculo.
Se pensávamos que a democracia era mais do que isto, estávamos enganados.
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Ficou-me, no entanto, uma dúvida.
Ficaram mais, mas, de momento, esta já chega:
Onde estão e quem são esses aristocratas da nossa sociedade a quem nós pudéssemos chamar com algum grau de certeza, «formas superiores de vida animal»?
Ao olhar para as figuras públicas, nenhuma me parecia merecer esse epíteto. Nem Bavas, nem Mexias, muito menos os Relvas, os Cavacos Silva, os Majores e Meneses, os Pinto da Costa e os outros de quem não fixei os nomes.
E olhando para o passado, para as prateleiras poeirentas das minhas memórias, também não: certamente que não o Soares, nem o Guterres, nem o Barroso. Ninguém que eu tivesse visto no plasma.
Então, decidi-me. Que tal fazer assim uma espécie de retrato-robot e procurar por eles como se fossem foragidos e a justiça os reclamasse? 
Agarrei no lápis e zás.
A Sra. Dona Estefânia Alice Cecília do Menino Jesus é, quem sabe, o primeiro.
Quem a encontrar, cale-se muito bem calado e não diga nada a ninguém.

quarta-feira, julho 18, 2012

Doce de Ameixa

Nero, que era uma pessoa importante lá em Roma, tocava lira - e, claro, a culpa era dos cristãos, dos ciclistas e dos escravos que não queriam trabalhar.

A minha desculpa, que dela bem preciso, é que o raio do doce está a ficar um espetáculo.

segunda-feira, junho 25, 2012

E aos costumes disse LOL!

- Pá, companheiro!
Manda aí uns trocos para eu pagar a multa! (1) 
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1) Seguindo uma sugestão do Luciano de http://pequenosprazeresmusicais.blogspot.pt/.

segunda-feira, junho 18, 2012

Para fazer um cavalo feliz

No Domingo veio cá o meu primo Artur.
Parou o jipe em frente ao portão, como de costume, apeou-se e acenou de lá, o braço esticado a agitar um jornal que me pareceu o Finantial Times.  
«A Isaltina hoje não veio», explicou ele enquanto sacava da mala uma caixa de madeira com três garrafas e um embrulho tosco com o que parecia um paio. «Ficou com o puto, o Arturito, porra, o meu neto! Parece que tem uma virose ou uma merda assim que os médicos inventaram agora... Olha lá, tu quando eras pequeno tiveste alguma vez uma virose? Havia disso quando a gente andava a jogar à bola na rua? Havia era canelas esfoladas, nódoas negras e cabeças partidas! Isso é que era.»
Concordei, é claro.
O Artur, cada vez mais parecido com o Tio Zé Damião, ia entrando, já estava a partir rodelas do paio para um prato, eu tirava um queijo da Idanha de dentro do frigorífico e uma fatia de paté, e ele a comandar, «pá, vamos mas é lá para fora, olha lá, farto estou eu de estar dentro de casa.»
E já com o vinho aberto e os copos servidos, instalados debaixo da glicínia, ele declarou com ar de solene convicção que «vocês é que têm sorte, pá, aqui longe das merdas todas!»
Num gesto inconsciente com que pontuava a exclamação, agarrara no Finantial Times e fazia menção de atirar com ele.
- Pois - concordei eu.
Aquilo era uma estreia. Toda a vida o Artur troçara de nós por vivermos «longe de um cinema, pá,  dos restaurantes, quantos quilómetros é que tu tens de andar se quiseres ir a um centro comercial, hem? Uns quinze, ou mais, olha lá! E a praia, pá? Quarenta! P'ra cima!»
E, perante aquele ar de infelicidade genuina, acrescentei:
- É o meu bocadinho de corda mais comprida.
Não percebeu, claro.
- Pá, houve uma mulher, uma italiana assim meio anarquista, que escreveu uma coisa que dá que pensar, sabes? "Para fazer feliz um cavalo," diz ela, "basta amarrá-lo a uma corda mais comprida." Isto aqui é a minha corda mais comprida, como ela disse.
Ia a acrescentar que a frase era da Goliarda Sapienza, e que o livro se chamava L'Arte della gioia, mas ele não me deu tempo.
- E tu és um cavalo, pá, porra? Só se fores tu, olha lá, que és assim tipo burro!
- É. E tu? Tu fazes-te de mula a ver se disfarças.
Ficámos a olhar um para o outro e eu continuei:
- Deixam-me pastar por aqui, pelo menos enquanto não precisarem deste sítio para passar outra auto-estrada ou para fazerem um aterro sanitário. Depois expropriam tudo por dez réis de mel coado e arrastam-me daqui para fora; e se eu não quiser ir, dão-me um tiro e dizem que resisti à polícia. Estás a ver. Enquanto não me tirarem isto, carregam no Imi, levam-me os subsídios, aumentam o Iva e o gasóleo... E a ti? Também não estás grande coisa, pois não?
- Eh! 
 Bebeu um gole de vinho e voltou a servir-se. E eu aproveitei para carregar um bocadinho mais na ferida que a presença do Finantial Times me fazia adivinhar e que os seus silêncios confirmavam:
- Estás a ver, para amansar os cavalos, basta ir encurtando a corda, todos os dias mais um pouco, até chegar ao alcance da chibata.
Ele murmurou qualquer coisa incompreensível, tipo «isto é uma democracia, olha lá!», mas eu mandei-o lixar-se. 
- Pá, a democracia não tem nada a ver com a corda. A corda, não tenhas ilusões, existiu sempre e vai continuar a existir. Somos humanos: a espécie a que pertencemos deve ser a mais gregária de todas as espécies à face da Terra. Que outro bicho, formigas incluídas, estás a ver? Que outro bicho era capaz de viver  amarrado a vinte milhões de outras formigas? Pá, tu já foste a São Paulo, já viste o que é viver com mais vinte milhões de iguais a ti. Não passas de uma gota minúscula no meio de um lago maior que o Titicaca. E já andaste de metro. Que outra espécie seria capaz de viajar numa carruagem do metro à hora de ponta? E nota: sem deixar atrás de si um rasto de sangue e de destruição! Se fossem formigas eram um monte de patas e de cabeças arrancadas. Se fossem gatos, era tripas, era olhos, era tudo.
O Artur abanava a cabeça.
- Pá! Não é bem assim, olha lá. - tentava ele argumentar gesticulando perigosamaente com a faca de cortar o queijo. - Há a civilização e há tudo isso, pá. Lá que tu vivas aqui como um atrasado, é lá contigo.
- Está bem, pronto. Podemos dar nomes mais bonitos às coisas se tu quiseres. Falamos em «amor filial» ou em «patriotismo», por exemplo. São amarras que temos à nossa terra e à nossa família. E alguns como tu, demasiados, diria eu, ainda têm o clube! E sabes o que é um clube? É um sítio onde onze esforçados inúteis ganham a vida a pontapés.
- Não dizes mal do Glorioso, óvistes?
- Eu? Tem juízo. Quero lá saber do teu clube. Tu é que andas a gemer por aí que te encurtaram a corda e já sentes o chicote no lombo. É ou não é?
- Porra, pá, também não é tanto assim.
Levantou-se a abanar o peso da cabeça.

- Vou lá dentro à casinha - anunciou. - Mas, felizmente, pá, na Grécia, hem? Ganhámos as eleições, 'tá-z-óvir?

domingo, junho 10, 2012

segunda-feira, junho 04, 2012

Manifesto para uma Esquerda Livre

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Foram ontem as primeiras reuniões abertas dos subscritores do «Manifesto para uma Esquerda Livre».
Não se sabe ainda, é claro, nem o que é uma esquerda - a não ser no boxe - nem como pode ela ser livre.
Desde logo, porque ser de esquerda não é exactamente um lugar que se ocupe, uma coisa adquirida, como dantes se comprava à época um camarote em São Carlos; ia-se ou faltava-se, conforme os azeites, aplaudir ou vaiar as primas-donas.
E depois, porque a tradição nos diz coisas que já se tornaram absurdas: por exemplo, continua a dizer-se que o Partido Socialista «é» de esquerda, e a direita aproveita-se, não cessa de nos dizer que as maiores asneiras foram feitas por ela.
Pode ser que tenha razão, mas, então, para mim, é como se fosse o Dantas.
Se o Dantas é de esquerda, eu quero ser espanhol. Pim!
Antes de irmos mais adiante, devo dizer o seguinte:
Não penso que a um socialismo mais autêntido - aquele que reivindicava «a paz, o pão, a habitação, saúde, cultura e educação», tão simples como isto! - seja importante o problema da propriedade dos meios de produção, como era para os marxismos mais ortodoxos. Basta-lhe que esses meios estejam ao serviço da comunidade, o que, obviamente, não depende dos «proprietários», o mais das vezes meros accionistas com pouquíssimo voto nas matérias. Depende dos «decisores», uma classe que gere, que administra, que endivida, deslocaliza e faz falir aquilo que melhor lhe convém.
Não tenhamos medo de ressuscitar a luta de classes:
A classe dos «decisores» é uma classe que urge combater antes de chegarmos seja onde fôr.
Mas é importante saber caracterizá-la, saber quem faz parte dela e quais são os seus instrumentos de poder.
E, atenção: não basta conquistar esses instrumentos: já foram conquistados e perdidos vezes sem conto. Estamos fartos de saber que o poder corrompe; que atrás de classe, classe vem e que o que a outra fez, fará esta também.
A tarefa de uma esquerda que se queira livre consiste, antes de mais, em restringir o poder, desarmar-lhe os instrumentos:
Onde houver polícias, haverá sempre quem as mande contra quem se lhe opõe.
Onde houver dinheiro, alguém comprará as consciências dos outros homens.
Onde os fins forem mais importantes que os meios, não haverá liberdade, não haverá esquerda livre, nem direita livre, nem centro livre.
Livre, só a Goldman Sachs - ou lá como se chama. 

sexta-feira, maio 11, 2012

A visita da Cobra Rateira

Esta gentil senhora que aqui podemos ver numa bonita foto  rapinada da internet, é a Malpolon Monspessalanus. Mais em família, diz-se que é uma Cobra Rateira, e pronto.
Como visita, não posso dizer-vos que seja muito muito conversadora: tudo o que diz resume-se a um som asmático, prolongado, vindo lá do fundo da garganta. Quase esperaríamos que desatasse a tossir, com uma tosse cavernosa de fumadora inveterada, mas não. Aqueles «esses» expirados prolongam-se, interrompem-se por momentos e voltam com a mesma monotonia de sempre.
- Pá, olha lá que que com esta gaja não se aprende nada - diria o Primo Artur enfiando uma fatia de queijo da Idanha entre duas goladas de tinto.
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De facto, ao contrário do Artur que chega ali ao portão com o jeep e desata a businar, a Malpolon não é pessoa de grandes estardalhaços.
Quase nunca a vemos, entra e sai sem dizer nada, sem incomodar. Ontem, porém, foi diferente. 
Resolvida a participar das nossas refeições, veio fazer-nos uma visita, deslisou até ao quintal por entre as ervas que as últimas chuvas e agora este calorzinho transfomaram em matagal.
Deve-se dizer que, de há tempos para cá, quase deixámos de ter aquilo a que se chama «lixo comum». Se já separávamos os plásticos, o papel e o vidro para futura reciclagem sabe Deus por que longínquas instituições, porquê deitar para o contentor camarário os restinhos de pão que ganharam bolor e já nem para umas migas se aproveitam?
O mesmo para as cascas das batatas, para o talo das couves, o cascabulho das maçãs quando o nosso cão, vá-se lá saber porquê, o olha desdenhoso.
De modo que fizemos uma estrumeira.
É claro; agora está mais na moda ter um compostor, daqueles muito sofisticados, que se vendem nas grandes superfícies do «faça você mesmo».
Mas nós aqui em casa o que temos mesmo é o monte do estrume, à moda antiga.
E, uma vez por outra, mesmo se o tentamos evitar porque os tempos não estão para desperdícios, até uns restinhos de comida lá vão parar.
Os melros e os pardalitos são os nossos mais frequentes comensais.
Era para lá que a Rateira Malpolon se dirigia, ou, quem sabe, era de lá que vinha, já com a tripa forrada com o que encontrou.
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Infelizmente, aquela parte do quintal, como se calcula, está protegida por uma rede.
Não é nada que detenha um um gato sequer: uma simples redezinha de plástico a marcar uma fronteira, permeável aos insectos e aos ratitos que lhe passam por baixo se quiserem.
A Cobra, porém, ou por distração ou porque ia apressada, enfiou-se numa das malhas, a cabeça e um bom palmo conseguiram passar, o resto do corpo ficou entalado.
Sem atinar com a marcha à ré, fez o pior que era possível: enfiou a cabeça noutra malha e noutra ainda e lá ficou, nem para diante, nem para trás, sem se conseguir mexer sequer.
Só um ou outro estremecimento e a sua respiração de asmática nos mostraram que estava viva e, diga-se, não muito bem disposta.
Se fosse em casa do Tio Zé Damião, era sabido: «as cobras são bichos nojentos, dão cabo de tudo! Ter isso aí até é um perigo para as galinhas. Dá-se com a enxada, parte-se-lhe a espinha e já está, fica para aí a torcer-se que é para aprender.
Antigamente é que era: meti-se num saco, a Venatória pagava quize milréis por cada uma, sempre dava jeito. Agora, querem eles lá saber!» 

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Claro que não seguimos o conselho do Tio, nem o consultámos sequer.
Tentámos com a tesoura de podar, mas era muito larga e mal jeitosa. O ideal foi mesmo uma tesoura das unhas: a Malpolon estremecia de cada vez que os bicos fininhos se aproximavam para cortar os nós da rede, soprava de indignação, mas garanto, quando se apanhou à larga nas malhas, caramba!Parecia que levava fogo no rabo, nem ficou para posar para uma última fotografia.
Esperamos todos que, a estas horas, a nossa Rateira esteja a contar às amigas a grande aventura da sua vida: como, resistiu heroicamente àqueles enormes seres desnaturados que a tinham apanhado à traição e que a ameaçavam com uma espécie de mandíbulas cortantes que faziam clic! Clic!
E já agora, se não lhe fizesse muita diferença, a gente agradecia que ela passasse de largo pelo nosso quintal: não dá jeito nenhum andar sempre a ter de fazer buracos na pobre rede, como calculam.

terça-feira, abril 24, 2012

sábado, abril 21, 2012

In fine

Se se nos acabar o tempo
(que é a essência do fundamento)
Lamento,
Mas quero lá saber:
Já não vamos estar cá
Para ver.

João Bessa, Poemas Metafísicos, Estremoz, 1967

quarta-feira, abril 18, 2012

Mistérios

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Que será feito da nossa vocação marítima?

quarta-feira, abril 11, 2012

quinta-feira, abril 05, 2012

terça-feira, março 13, 2012

Tiro ao Cavaco!

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Segundo alguns comentaristas, abriu, na mediática feira, o stand de tiro ao Cavaco.
Tem sido um sucesso.
Só não nos juntamos ao valoroso grupo de atiradores porque não gostamos da companhia.
Quanto ao resto, diríamos como o Almada Negreiros:
Se o Cavaco é português,
eu quero ser espanhol.
Morra o Dantas!
Morra!
Pim!