quarta-feira, junho 25, 2008

Nim





Fui eu - ou pelo menos gosto de pensar que fui - quem começou a chamar-lhe Nim. Tinha os seus quatro anos quando a Mãe a trouxe de um país qualquer lá do Leste e vieram as duas aqui parar: os nossos partem para Lisboa, o imigrantes vêm substituí-los.
É claro que a Nim tem um nome, Marieke, ou qualquer coisa que soa parecido, é como a Mãe a chama: vem à beira do passeio e grita por ela, espaçadamente. A Marieke tanto pode vir a correr, com a t-shirt da feira a bambolear, demasiado grande, como pode demorar uma hora.
Bem mandada, não atravessa as ruas, não põe o pé pequenino fora do passeio. Mas o passeio corre à volta de um enorme quarteirão. A Mãe trabalha na padaria-pastelaria-café, do lado do jardim. Tem um banco à esquerda de quem sai, à direita, já a fazer a esquina, é a cervejaria-snack com a esplanada, a farmácia já do outro lado, e a papelaria, livros escolares, revistas e jornais, totoloto e o mais que se quiser. A minúscula imigrante habituou-se a entrar, sem uma palavra - ela não fala - a sentar-se no chão a folhear um livro, a Holla, uma banda desenhada. Fica horas esquecida, esquecida das três irmãs que se revezam, sempre duas, atrás do balcão. Com os dedinhos mínimos, passa as páginas, não sabemos o que vê naquelas fotos, naqueles desenhos, naquelas letras. Depois, arrumado o livro preciosamente, nem sempre no sítio exacto, mas sempre suficientemente próximo, sai sem uma palavra, sem um gesto que faça pensar que sabe que entrou em casa alheia.
Também pode ser encontrada na casa de mobílias, muito lá mais adiante, depois do stand de automóveis fechado e da oficina de tractores e máquinas agrícolas, sentada com muito juízo, muito quieta, a cabeça encostada ao estofo de um dos braços da poltrona, profundamente adormecida às vezes.
Se continuar a dar a volta ao quarteirão, tem as análises clínicas: entra quando apanha a porta aberta. Está lá sempre um poder de gente, alguém para conversar com ela um minuto ou dois: fazem-lhe perguntas, dizem-lhe gracinhas e fazem-lhe festas - o que não lhe agrada nada. Sem uma palavra, sempre a olhar muito séria, recua três ou quatro passos, pára fitando o inimigo nos olhos e só depois lhe volta as costas.
Em frente, do outro lado da rua são as veterinárias. Têm muitas vezes gente com cães à porta, bem seguros, para que não briguem. A Nim detém-se a olhar, mas ainda não ousou atravessar a rua para explorar mais um local de fascínio. No resto do quarteirão não há muito que ver: a loja dos chineses - mas não a querem lá, com o narizito no ar, a bisbilhotar cada prateleira, cada vitrine - uns electrodoméstidos sem mistério e o Mini-Preço - este sim, a merecer pelo menos uma volta contemplativa. As empregadas são jovens e gostam dela:
- Queres um rebuçado? - perguntam-lhe por vezes.
Abana veemente a cabeça, recua um passo, mas, volta a avançar o mesmo passo e estende a mãozinha minúscula enquanto continua a negar com energia.
A nós, quando passa pela esplanada, faz-nos o mesmo.
- Queres um bolo?
A cabecita nega e a mão estende-se.
- Tens de responder nim, ouviste? Vá, desanda! Vai lá dentro dizer ao Chico que te dê o bolo.
E lá vai ela, a abanar a cabeça, a estender a mão para o Francisco.

A Nim está a crescer.
A Mãe já esteve sem trabalhar na pastelaria, parece que se juntou com um rapaz ali dos Milagres e depois separaram-se e ela voltou.
A Nim está a fazer-se uma bonita cachopinha. Passou para a Escola lá de cima para o quinto ano, parece que é boa aluna a matemática, mas, diz a Clara Centeno, que é professora de inglês, não se lhe arranca uma palavra. Já não pára na papelaria: as irmãs não a querem por lá.
Agora está muitas vezes sentada aqui ao pé de nós, na esplanada. Continua a fazer que não com a cabeça e a estender a mão para aceitar o bolo que lhe oferecem.
Veste as mesmas t-shirts da feira que já lhe estão acanhadas, calções mal-amanhados, ténis gastos, mas os olhinhos continuam muito, muito azuis.
Já há malta a investir nela para daqui a cinco ou seis anos, que é que vocês pensavam? Com as imigrantes, dizem eles, tem de ser assim.

terça-feira, junho 24, 2008

Aleivosia

O Portugal, Caramba! tem estado um tanto parado devido a uns pequenos problemas com um certo animalejo... A gente não alumia o nome ao bicho porque a nossa mãezinha ensinou que essas coisas não se dizem (sobretudo à mesa, mas vá lá) porque é feio. E pronto.
A gente agora vai ver é se o animalejo se despacha: à uma, já estamos com saudades de dizer mal do governo; e depois, até tínhamos um um bom motivo para fazer feliz o Vasco Pulido Valente a dizermos que nos estamos nas tintas para o futebol e que achamos que é uma alienação sim senhor. Por isso a gente quer lá saber que a selecção tenha perdido com Suíça e ainda menos com a Alemanha.
Mai-nada!

quarta-feira, junho 18, 2008

Declaração

O Portugal, Caramba! apoia o NÃO da Irlanda, pois apoia! E depois? Têm alguma coisa a dizer? E não apoia o Cavaco Silva, pronto!

segunda-feira, junho 09, 2008

Un sou dans ma poche, e um caderno debaixo do braço.




Manter um Diário Gráfico, como o Eduardo Salavisa recomenda aos seus alunos, é complicado para quem, como eu, andou sempre com um canhenho (e pelo menos um livro) debaixo do braço. Durante anos arrastei comigo blocos A-4, pastas com folhas de papel de máquina, cadernos geralmente lisos onde se confrontavam apontamentos das aulas que eu ia dar com os das aulas que recebia em acções de formação ou no mestrado. E riscos, muitos riscos, porque a maior parte do que nos dizem nas aulas, nas conferências, no lançamento de livros, cabe num cantinho da primeira folha.
Tudo é gráfico, evidentemente, nesses cadernos, mas nem sempre os grafismos incluem o desenho.
Nas páginas que mostro, há de tudo: apontamentos de leituras, citações, esquemas com que, por vezes, tento forçar-me a entender o que outros pensam, e por aí fora. Os desenhos surgiram, muitas vezes, por uma necessidade de me explicar a mim próprio os conceitos que ia descobrindo.
O pião a girar na palma de uma mão na página da esquerda, por exemplo, deveria ilustrar o conceito de «atractor estranho» - Ou talvez lhe esteja a servir de esquema empírico, quem sabe?Sempre tive uma enorme dificuldade em entender coisas para as quais não é possível desenhar um boneco que as representassem.


Nesta página, aqui em cima, porém, o desenho do que estava na mesa do pequeno-almoço, não tinha nada a ver com coisa nenhuma. Serviu só para desenjoar. Ou, talvez, já não recordo, para interromper a leitura e conversar com os outros convivas. É meritório, não é?

sexta-feira, junho 06, 2008

Tricot

Jacques Prévert, Le temps haletant

Moi qui tutoyais le soleil
je n'ose plus le regarder en face.
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