sexta-feira, dezembro 30, 2011

Melindres de Pedagogo e glórias de General

-
Sérgio de Sousa, que tem colaborado com este blog, bem mais esporadicamente do que nós gostaríamos, acabou de publicar o seu Diário Póstumo de um Paraescritor (Anáfora, 2011).
Como afirma no Prefácio, "além do incontornável autor, mais quatro pessoas, pela assiduidade com que intervêm ao longo do Diário, tornaram-se também personagens dele."
São essas quatro, em primeiro lugar o seu editor, logo o seu filho mais velho, o Eugénio e o seu amigo Raúl Hestnes Ferreira, conhecido arquitecto, autor entre outras obras, do edifício da Escola Secundária de Benfica ou a Casa da Cultura e da Juventude de Beja.
Dado que a quarta personagem a intervir nesta narrativa diarística é Rui Costa Lopes, que também, conforme calha melhor, se assina como Tacci ou João Bessa, ou Bento Sequeira, ou qualquer outra coisa que venha a jeito, e como se dá o caso de ser o principal redactor deste blog, achámos conveniente apresentar o livro de Sérgio de Sousa com o devido destaque.
-
De Rui Costa Lopes se diz, ainda no prefácio:
"Penso que o Rui assumiu o papel daqueles escravos a quem incumbia seguir atrás dos generais nos desfiles da consagração das vitórias, para lhes lembrar que não deviam deslumbrar-se consigo próprios. Só que", acrescenta o autor, "felizmente, nem o Rui, apesar de pedagogo, é escravo, nem eu sou, nem me pretendo, general vitorioso." (pag. XV)
De facto, como diz mais tarde, numa entrada do seu Diário de 8 de Julho de 2003, Rui Costa Lopes cumpriu de forma cabal o papel que nesta narrativa lhe foi distribuído.
"De tudo quanto publiquei", escreve o autor, "o Rui não achou o primeiro livro aquilo a que se costuma chamar promissor, embora na altura lhe tenha encontrado um pormenor interessante. Digamos", continua, "que não quis logo demolir-me. Do resto, apenas ressalva de Na senda dos utopistas três textos, «A Tríade», a que se recusa chamar-lhe assim, nomeia-o «Palimpsesto» - enfim, não será exactamente, mas com boa vontade admito que pudesse ter esse título -, e de que diz não fazer a mínima ideia do que eu quis dizer com o texto, mas o que quer que fosse, está dito, literariamente dito, são palavras suas, «A crónica inventada no Portugal contemporâneo», porque acha piada à figura da protagonista, e o texto «Na senda dos utopistas», porque nele «se abordam algumas ideias», sic. O mais são trouvailles, sem realização literária.
"Claro que o Rui faz o favor de continuar a ser meu amigo, apesar de eu não escrever nada de jeito, e por isso me aconselha a que deveria não ser apressado na escrita, deveria cuidar do literário.
"Ora reconheço que tento escrever nos poucos intervalos de tempo de que disponho, e isso imprime à minha escrita um cariz provavelmente diferente do que teria se dispusesse de uma estabilidade material que me permitisse estar tranquilamente num local aprazível a ocupar-me quase exclusivamente de escrever.
"Mas também procuro uma escrita incisiva e não contemplativamente espraiada. Aprecio noutros virtudes de linguagem, para mim chega-me que a prosa resulte inteligível.
"O Rui acha que se não me disponho - por preguiça, precipitação, falta de domínio de eventuais capacidades - a escrever melhor, então não deveria publicar. Enfim, eu farei o que quiser, acrescenta. "Quanto a ele, o de eu não sair de uma pequena editora, significa que o que escrevo não tem qualidade e ando a ser explorado. [Se o que escrevi não presta," pergunta o autor entre parêntesis rectos a indicar que se trata de um comentário contemporâneo da preparação desta edição e não do Diário propriamente dito, "porque havia de ser bem remunerado?]
"O Rui vinca que quer dizer-me as coisas sem me magoar, paternalistamente.
"Eu sei que os meus escritos não têm a qualidade literária dos dos escritores. Mas serão tão maus que não devam ser publicados?
"Outros ecos de leitura dos últimos não me chegam, talvez só uns escassos e daqui a meses. Poderiam eventualmente ajudar-me.
"Estávamos já na esquina da minha rua, o Rui e eu, para nos separarmos, quando apareceu o Edgar, e o Rui apenas teve ainda tempo para simpaticamente me consolar, que não me ralasse, livros que não prestassem, era o que mais havia."
E conclui a anotação do dia: "É a opinião dele, provavelmente acertada, sinceramente expressa, do modo menos ferino que consegue." (Pags. 528, 529 e 530)
-
O escravizado pedagogo, pelo que se leu, cumpriu o dever de advertir o general dos riscos de se deixar levar pela ufania.
Mas, como todos os escravos em tais circunstâncias, com a coroa de louros erguida na mão e as frases a soltarem-se, «lembra-te César de que és pó e que ao pó hás-de tornar, lembra-te César: nasceste nu e a riqueza que conquistaste não te seguirá atá à cova... Lembra-te de que a plebe hoje te aclama e amanhã te condenará à morte» e por aí fora, bastante deve ter irritado o General que se sentiu amesquinhado no seu triunfo.
Não nos custa imaginar que, um tanto fora de si, tenha desatado a dar pontapés e bofetões no pobre escravo:
- Cala-te, imbecil! Cala-te ou levas mais.
E bem imagino o pobre pedagogo atirado da quadriga abaixo, a populaça a rir do escravo caído em desgraça.
-
Foi, cremos, o que aconteceu à personagem Rui Costa Lopes na saga de Sérgio de Sousa. De vez em quando, zás, lá vem um estaladão, a propósito de qualquer coisa: «lá estava o Rui, com o pobre cão, o Rover fechado no jipe à espera» (pag. 512), por exemplo.
Pobre cão? Quererá Sérgio de Sousa sugerir que a sua personagem tratava mal o boxer que há longos anos lhe faz a melhor das companhias? O carro estava estacionado à sombra, claro, com as duas janelas da frente ligeiramente abertas. O Rover, como era seu costume, ocupara o lugar do dono mal ele saíra e sentara-se, muito direito, no banco atrás do volante, a olhar vigilante quem passava. A personagem, casualmente, lembra-se muito bem desse dia porque veio várias vezes com outros amigos e copos variados, cá fora para lhes apresentar o Rover.
O pobre cão é ainda motivo de outra entrada, essa escrita em Pedrógão, em plena serra D'Aire, num mês de Agosto.
"O Rui veio almoçar aqui trazendo o Rover, para quem cozi um osso com macarrão." (pag. 638)
Foi uma gentilíssima ideia do Sérgio: o Rover alambazou-se com o macarrão de que aproveitou até as migalhas que se espalhavam pelo chão de cimento e depois, de barriga mais do que cheia, deitou-se à sombra a roer o magnífico osso. E eu pude beneficiar de um lautíssimo banquete cozinhado pela Mãe do Sérgio - uma Senhora carinhosa na sua impecável hospitalidade.
O mal foi que, a seguir a esse almoço e à bica tomada no café, ao Sérgio lhe apeteceu um passeio digestivo - coisa aliás, natural num citadino como ele.
"Tentei levá-los depois à serra," escreve ele na continuação, "mas o Rover não aguentou nem o começo da subida. Obviamente o culpado é o dono, que lhe passou a «calaceirice».
O dono, claro, assumirá todas as culpas que pudessem caber ao «pobre cão», mas, efectivamente não terá sido responsável pela temperatura do ar, bem acima dos trinta graus, nem pela falta de água - não se preveniu por não saber que «íam à serra»: é claro que, pedindo muitas desculpas por ter estragado o passeio, optou por não deixar o Rover rebentar de sede.
Este tema «calaceirice» da personagem Rui Costa Lopes é glosada bastantes vezes. Por exemplo, na página 562 diz-se: "Não compreendo, falta-me o ânimo para fazer o que quer que seja.
"Engonho.
"À noite dei uma saltada a casa do Rui, que preguiçava."
É certo que o Rui não é nenhum hiperactivo; como se diz a páginas 406 "... se não se desse o caso de o meu Amigo ser um preguiçoso, que sempre se limitou ao que o obrigaram a fazer" e como se explicita na página 108, "Inteligente e frugal (ups, aqui ele tem de agradecer) o Rui não se esfalfa atrás do que não elegeu como essencial. Ele é filósofo, contempla, discorre e compraz-se."
E também: "O Rui, embora bem refastelado na vida, defende que só a Ideia o interessa. Um clerc, como escreve António Pedro Pita (quem será?), pretendendo que o seu reino não é deste mundo e, acrescento eu, que tudo quanto é social lhe é alheio, pior, o enfastia, pretende, o irrita, de facto."(a quem? ao António Pedro?)
Esta preguiça contemplativa acarreta, como se viu, uma outra característica talvez não muito invejável: a falta de sentido das realidades.
Sérgio de Sousa comenta: "é o cúmulo da falta de realismo!" a propósito de uma brincadeira acerca da nossa mania de pintarlucar umas telas pequeninas. Eu, com os acrílicos e as aguarelas, sou um tosco. E, de facto, o que eu estava nesse dia a sugerir era que ele devia arranjar um escritório, uma vez que passava a vida a dizer que em casa, por motivos que não compete ao pedagogo de serviço na quadriga dizer, não conseguia trabalhar.
Também, quando a Câmara Municipal de Sintra me premiou a novela A Siberiana, Sérgio de Sousa anota que assistiu à "cerimónia de comunicação da atribuição, não ainda da entrega, do prémio Ferreira de Castro de 1996, Literatura, ao Rui."
E conclui o seu relato: "O Rui pagou o jantar, dele e quatro acompanhantes, no Café de Paris, logo a gastar o valor do prémio que ficaram de lhe mandar." (pag. 68)
Que falta do sentido das realidades, de facto.
Mas mais:
"Reli há poucos dias A Siberiana, do Rui, agora editada em livro. [...] Gosto e desgosto desigualmente do livro. Acho-o literário, isto é, com o encanto de um arquétipo, sem reflexo na realidade." (pag. 190)
E antes, já tinha comentado que achava o "romance bem construído, socorrendo-se de uma estrutura policial" e que o Rui o tinha apurado "bastante." Porém, imagine-se, "Ele diz que não, e esta será mais uma das desavenças numa amizade de quase quarenta anos, como escreveu na dedicatória do exemplar que me ofereceu."
A entrada era de 1999 e a amizade, no fim de 2011 já vai nos cinquenta.
Talvez por isso Sérgio de Sousa se permite publicar agora um comentário de Março de 2000 em que diz o seguinte:
"Ao fim da tarde passo por casa do Rui, ocupado a rever a tese de mestrado - em que procura imputar determinado ideário filosófico a Eça de Queiroz - que a Imprensa Nacional publicará este ano, centenário da morte do escritor." (pag. 277)
O escravo que acompanha o General no seu triunfo tem de dizer que «imputar» não é uma palavra que lhe agrade neste contexto e que a toma por mais um empurrão para se ver livre da incómoda personagem que passa a vida a irromper pelo seu Diário.
Creio que lhe devo fazer a vontade e acabar de vez com essas desagradáveis desavenças.
Não convém a General nenhum, aspirante a um lugar entre os notáveis, que com eles constantemente se encontra e conversa, ter um chato de um amigo que não gosta da maioria das coisas que ele escreve, e que lhe aponta a dedo estendido o que de bom ele realmente tem escrito como um modelo que poderia seguir se escutasse os seus leitores, os seus amigos: «Tríade» (e não Palimpsesto, peço desculpa), por exemplo, «A Dona do Cachorro», «Nas férias», «Na senda dos utopistas», «Dr. Virgolino e as suas amigas» e pronto, coisas assim, a que se podia agarrar e desenvolver... se quisesse ou se tivesse tempo.
O Rui que o seguia na quadriga e lhe moderava as fanfarronices, apeou-se, atirou com a coroa de louros ao caraças e foi-se embora.
Deseja muitos sucessos e muito boa sorte ao Senhor General.
-