domingo, janeiro 25, 2009

Subsídios para o Livro de Aka (IX)


Aka, com os lábios apertados, sem prestar atenção ao que estava a fazer, deixava os dedos correr pelas teclas do clavicórdio, suavemente por vezes, brusca, quase violenta noutras.
- Aia?
Os dedos insistiram no mesmo acorde, repetido uma vez e outra e outra.
A Aia cortou a linha com os dentes e examinou o bordado:
- Hum? - fez ela.
- A igreja é uma associação de pedófilos homossexuais?
- Igreja? Qual igreja?
- Esta. - com um gesto do queixo indicou as revistas abertas, espalhadas pelo tapete.
- Claro que não, Aka. Como podes dizer uma coisa dessas?
- Não sei. - os dedos interromperam o acorde e ficaram como que a tocar o ar e as suas teclas invisíveis. - Não sei nada, Aia. O que é um homossexual? Aqui diz que os surdos mudos foram sodomizados num colégio de padres. Eu tenho um irmão que é surdo mudo, sabes? Não sei como se chama, é o filho mais velho da segunda concubina do meu Pai, lembras-te, aquela que é mahori e tem o rosto tatuado? Quando nós vivíamos em Florença e ele vinha brincar connosco para o terraço grande, do lado do Arno, nós dizíamos «sschiu.... agora ninguém fala: quem ele entender primeiro, ganha!» Chamávamos-lhe o Shiu-biu e ele nunca nos disse se tinha outro nome.
Os dedos voltaram às teclas para as primeiras frases de Limelight.
- E o que é sodomizar?
- Aka, nada disso é da tua conta. Esquece essas revistas, por favor. Se o teu Pai soubesse das porcarias que tu lês, não te tinha mandado aprender. A culpa é minha que te deixo trazer isso tudo para casa.
- Estou a pensar...
- Aka! Chega! Proíbo-te de pensares mais seja o que for.
- Achas que o Papa desta vez lhe vai enviar um pedido de desculpas?
- Desculpas? A quem?
Só os acordes do clavicórdio lhe responderam.
A Aia atirou a caixa de costura para o chão.
- Estás a ficar insuportável, Aka.

sexta-feira, janeiro 23, 2009

Letra e Música

Paulo Castilho,
Letra e Música,
Oceanos, 2008


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Se calhar já o disse algures: os meus escritores favoritos (entre os portugueses nossos comtemporâneos, acrescente-se, dado que o Nuno Bragança e o Cootzee não preenchem um destes requisitos pelo menos) são o Mário de Carvalho, o João Aguiar e o Paulo Castilho. E, durante o passado 2008, todos eles me deram a alegria de publicar um livro.
Não é uma figura de retórica: foi mesmo com alegria que me precipitei para as livrarias à procura de qualquer coisa que fosse legível e que nos dissese respeito, a nós que, até ver e na falta de alternativa, vamos fazendo parte da lusa gente.
O Lobo Antunes será um autor muito estimável. Voto sinceramente a favor de que lhe dêem o Nobel, mas, ele que me perdoe: não me obriguem a lê-lo.
A Agostina, idem.
Dos Miguéis Sousa Tavares e das Margaridas Rebelo Pinto, nem falar: assumo que o defeito seja meu. Mas, por isso mesmo: é uma das manchas no meu carácter que mais prezo, que, como o Huck Finn, posso apertar ao peito e chamar irmã.
A Maria Velho da Costa, essa desarma-me. Lembro-me particularmente de Lucialima, um romance tão irregular que dei comigo a adorar a história da Lucinha, a menina ceguinha, e a detestar quase tudo o resto, sobretudo a cena erótica entre o Lima-Limão e a menina-patroa com quem ele ia brincar fardado da Mocidade Portuguesa. Não tenho instintos pedófilos, mas oh!, se os tivesse...
Myra (Outubro, de 2008 também, da Assírio e Alvim) está aqui ao lado, há meses num pego-lhe, não pego, leio, não leio que me irrita e me incomoda. Não me perguntem ainda porquê. É uma questão que tenho comigo mesmo e que, provavelmente, acaberei por resolver.
E, entrementes que é uma palavra interessantíssima, outros livros que me caíram no prato, e esses devorei-os.
Do Mário de Carvalho e da Sala Magenta, do João Aguiar e do Priorado do Cifrão, já falei, estamos conversados.
E quanto ao Letra e Música, do Paulo Castilho, tenho andado a adiá-lo.
Não porque não se leia de jacto. Não porque não seja um romance bem construido. Não porque a sua trama não seja interessante: uma jovem nascida em Sintra, numa casa com nome próprio, emigra nos idos de sessenta e seis, primeiro para a pérfida Albion e depois para os States, em busca de um som, uma forma de fazer música, de a tocar e a cantar, impossível ou, pelo menos, improvável em Portugal.
Creio ter sido Dinis Machado (ó Glória da nossa Terra, que tens salvado mil vezes...) o primeiro escritor a usar de um método narrativo de segundo, terceiro e, por vezes, quarto grau. É um conta-se que Fulano disse que Sicrano viu Beltrano fazer...
«Contam-se hitórias do Ângelo», disse Austin, acendendo um cigarro, «que ele era, segundo a expressão que Molero diz ter recolhido em fonte idónea, danado para a porrada. Que uma vez, isto contava o Zeferino Torrão de Alicante, e o Chinês que vendia gravatas confirmava com a cabeça...»
(O que diz Molero, 1977. 21ª ed., Bertrand, 2007, pag. 48)
Só me lembro de ter voltado a ver alguma coisa parecida numa obra que teve algum êxito: Austerlitz, de Sebald, creio que 2001: «Austerlitz conta que...» (não tenho o livro que me foi emprestado por um amigo e não encontro o caderno onde anotei a citação completa, sorry).
É provavelmente falta de atenção da minha parte.
O próprio Paulo Castilho usara já este artifício literário em Por outras palavras (2000) onde a narrativa mais ou menos autobiográfica de um escritor em mal de inspiração é, por sua vez, narrada pelo Filipe, um jovem escritor também, que o secretaria, enquanto nos vai narrando as peripécias da sua relação com a Rita, a outra secretária.
O mesmo recurso é retomado em Letra e Música.
Mónica Mendes, a jovem cantora emigrante, deixa os diários da sua aventura anglo-americana. Cabe ao Filipe, agora um pouco mais velho, a sentir por sua vez dificuldades criativas como o seu antigo patrão, fazer o apanhado desses testemunhos, reconstituindo a vida da cantora. Infelizmente, já se separou da Rita que, como o autor explica em nota de rodapé, «pertence a outra história» (e isto podia, talvez, explicar a sua crise criativa).
Em Por outras palavras, era da relação entre a Rita e o Filipe que surgia a tonalidade céptica, sarcástica por vezes, que dava espessura às personagens e vida às diferenças geracionais. Em Letra e Música, se calhar é essa tonalidade o que falta. Será defeito meu, mas não consegui ler na Mónica Mendes uma personagem credível - ou terá sido o Filipe vagamente deprimido que não a soube transmitir?
A Isabel e a Cláudia, as duas irmãs sobrinhas da cantora, pelo contrário, seguem a tradição de Paulo Castilho: como a Rita que é de outra história, são personagens muito vivas e, como dizer? Simpáticas, é pouco. Amáveis? Gostáveis? Talvez.
E ainda bem.
Estou farto de autores que detestam as personagens femininas dos seus próprios romances.
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quinta-feira, janeiro 22, 2009

Obamocepticismo 2

- E agora? Metemo-los onde?
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O nosso Obamocepticismo está um bom bocado menos céptico: Guantanamo vai fechar.
Praise the Lord!

domingo, janeiro 18, 2009

I don't believe in angels...

Santo Anjo do Senhor,
Meu zeloso guardador,
Já que a Ti me confiou
A Piedade Divina:
Hoje e sempre, governa-me,
Reje, guarda e ilumina.

quarta-feira, janeiro 14, 2009

Subsídios para o Livro de Aka (VIII) - cont.

- Aka! - gritou a Aia, já exasperada: - Já chega. Se não sais daí, rebento a porta.
«Aí» era um closet, meio armário, meio quarto de vestir.
Mas não foi preciso: a maçaneta de porcelana girou tranquila, com se nunca tivesse estado trancada.
As roupas lá estavam, levemente agitadas por uma brisa que vinha da parede de fundo, de uma porta antes encoberta por paineis de madeira.
Num hotel antigo, tantas vezes adaptado, com tantas crescenças, nada daquilo era para admirar.
Aka era um diabinho esperto, uma verdadeira Peri quando crescesse, sabia-se lá por onde andava agora.
A Aia não era timorata e ainda recordava os livros da Enid Blyton, cheios de passagens secretas. Um pouco embaraçada pela longa capa, desceu a escadinha íngreme. Acordes metálicos de guitarra enchiam o ar quando chegou a um corredor largo e atapetado, uma longa curva para a direita, lado onde estavam as portas numeradas.
- Parecem camarotes de um teatro - pensou a Aia. E entrou.
Vultos indecisos na penumbra voltaram-se para lhe dar as boas-vindas.
- Também foste abusada, irmã? - perguntou alguém num murmúrio. - Podes tirar o niqab. Sabes, aqui ninguém precisa de ter vergonha e muito menos sentimentos de culpa.
A Aia inclinou-se para espreitar o palco.
Por um instante pareceu-lhe reconhecer Aka na cantora magra e de cabelos rapados, mas, claro, não podia ser ela.
- É a Sinhead O'Connor - explicou a mesma voz murmurada. - Veio cantar o War, sabes, aquele cântico em que ela grita: «child abuse, yeah!»
- Nós estamos aqui para a proteger se for preciso - disse outra voz.
- Who'll dig his grave? - perguntou a Aia, com um sorriso melancólico.
- I, with my pick and shovel, I'll dig her grave.
Voltaram-se para ver quem tinha falado, mas era apenas mais um vulto na sombra.
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terça-feira, janeiro 13, 2009

... e outros lugares muitos ...

- Aquilo, Senhor Deus, é a aldeia.
E aqui era a nossa casa.

segunda-feira, janeiro 12, 2009

Sem título

Rui Azul
(sax tenor)
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Wolfram Mineman
(piano)

sábado, janeiro 03, 2009

Subsídios para o Livro de Aka (VIII)


O homem não soube como começar. Olhou o gerente que, com um sorriso desdenhoso, o mirava uma vez por outra.
A Aia não se dignava olhá-lo.
- Porque trouxe aqui esse indivíduo? - perguntou ela.
O gerente pensou que os olhos, do fundo do niqab, se riam deles.
- Quem me dera poder resistir a uma ordem da administração. - respondeu.
Era um filósofo.
A Aia, numa voz suave como uma lixa muito fina, ordenou:
- Diga tudo o que tem a dizer. Poupe-me os detalhes.
O homem, atabalhoadamente, falou em assinaturas, compras exorbitantes, dezenas de milhar de euros, falta de garantias.
- A menina em questão - explicou ele - ultrapassou os limites todos do crédito. Vossa Excelência compreenderá que tenhamos de tomar algumas precauções, ter a certeza de que não se trata de um abuso... ou mesmo uma fraude! Até para protecção dos próprios clientes...
- Que nome?
- Repare, não digo que haja...
- Que nome?
- Petra von Goethe ibn Sadar ibn Sadham, é o nome que a menina assinou. Mas não sabemos, verdadeiramente não sabemos, pode tratar-se de uma falsificação, compreende, ou assim...
- Se é o nome da princesa Petra que aí está, todas as facturas serão pagas. Falsas ou não falsas, não interessa. Pode retirar-se.
Abalado, mas com visível alívio, o homem deixou-se empurrar.
Quando a porta se cerrou nas costas dos intrusos, a Aia dirigiu-se à sala onde Aka, de djilahba negra e o rosto coberto, a olhava inquieta.
- Compreendes o que fizeste, minha pequenina?
- Ó Aia! Os meus irmãos podem partir bordéis inteiros, gastar reinos em Monte Carlo e o meu pai não diz nada. Não podes fingir que nada disto aconteceu?
- Sabes que não, Aka. Se não mostrarmos que sou capaz de te disciplinar, não podemos ficar
em Paris. Queres voltar para casa?
- Não, Aia, voltar não.
- Sabes que vintes chicotadas é o mínimo que os teus tutores aceitarão?
- Ó Aia, com muita força não...
- Não, com muita força não. Mas quanto mais depressa, melhor. Levanta o vestido.
O segurança de serviço ao circuito video, rebobinou vezes sem conto as imagens do chicote e do rabito de Aka enquanto se masturbava.
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Ou, por exemplo:
- O meu nome hoje é Liddell, Aia, - disse Aka assim que os intrusos saíram.
- Alice Liddell.
Bebeu um gole de um licor doirado e voltou a poisar o frasquinho de cristal em cima da consola, antes de começar a diminuir de tamanho.
- Acreditaste verdadeiramente que aceitaríamos seguranças do sexo masculino a vigiar os nossos quartos, minha tolinha?
Mas Aka, com poucos centímetros, já se tinha sumido no interir da gaveta aberta e não respondeu.
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Ou ainda:
- Aka! - chamou a Aia - Já chega! Sai desse armário imediatamente!

quinta-feira, janeiro 01, 2009

Subsídios para o Livro de Aka (VII)

As horas correram num ápice: Aka saltitou de boutique em boutique.
Ignorou as joalharias.
Quando sentiu fome sentou-se num banco alto do bar e comeu um gelado enjoativo, mas com umas óptimas bolachinhas espetadas.
Saiu sem pensar na conta.
Antiquários e porcelanas interessaram-na.
Parou a ver um relógio de mesa, com uma pastorinha em esmalte, de longo vestido e um pequenino fauno com uns pequeninos chifres e minúsculos pés de cabra e que giravam vagarosos num bailado solene, de mãos dadas, dentro de uma redoma.
Depois, demorou-se a contemplar as T-shirts Monica Hikikomori.
A assistente aproximou-se cautelosa, para tocar muito ao de leve o tecido do niqab, observar as escravas que Aka se esquecera de tirar dos braços: na profissão aprende-se muito cedo a não confundir os guardanapos com os esfregões.
- São modelos únicos, pintados à mão e assinados - esclareceu ela.
- Talvez me deixem usá-las - murmurou Aka. E em voz alta, porque lhe tinham dito que não devia ser açambarcadora: - Há problema se eu levar estas todas?