segunda-feira, janeiro 21, 2008

Joseph Ratzinger III



As incómodas
analogias


Há coisas de que só demasiado tarde nos apercebemos e que, provavelmente, teriam feito a sua diferença.
Por exemplo, numa das suas conferências, pouco antes do Maio de 68 em França e da nossa crise académica em Coimbra, Joseph Ratzinger contou uma história, muito ao seu jeito de argumentar a partir de analogias.
Podíamos chamar-lhe a «Parábola do bom Palhaço» e começa num circo que irrompe em chamas. Podemos imaginar: as trapezistas semi-nuas, os cavalos enlouquecidos, o velho tigre às voltas na jaula e rugindo de inquietude, os cães amestrados a ganir de rabo entre as pernas...
O Palhaço é o único que já está vestido e é encarregado de chamar os bombeiros e lá vai ele, a correr, a face pintada, o chapéu às três pancadas... É claro que, naquele tempo, ainda não havia telemóveis e que o campo da Feira onde acampavam os circos todos não tinha nem uma cabine telefónica: reinava o mais absoluto dos primitivismos.
Como se adivinha, porém, para os pacatos campónios que o viram chegar, o desespero do palhaço é como se fosse apenas mais uma palhaçada. Quer dizer: como uma divertida manobra para levar mais espectadores ao Circo. E quanto mais ele desespera, mais os bondosos aldeãos riem e o aplaudem.
É natural: o hábito não faz o monge, mas como disse Milôr Fernandes, "fá-lo parecer de longe". E que há-de fazer alguém vestido de palhaço, senão palhaçadas? Não é?
Para o padre Ratzinger, futuro Papa, "esta imagem capta sem dúvida um aspecto da realidade apreensiva em que se encontram a teologia e o discurso teológico nos dias de hoje, pois revela o peso que tem a impossibilidade de desfazer os estereótipos do pensamento e da fala habituais, para mostrar que a teologia trata de um assunto da maior importância para a vida humana." (Introdução ao cristianismo, p. 28)
Ou seja: não liguem à vestimenta do teólogo. Por mais antiquados que sejam os seus paramentos, por mais obsoletos os seus rituais, o seu latim, o seu cânone, não se riam! Ele está a falar da vossa própria humanidade.
Desmaquilhasse-se o palhaço, despissem-se-lhe os adereços da função e do estéreótipo: o seu apelo ganharia de imediato o que lhe faltava: a credibilidade, o dramatismo, a urgência.
É sedutora a analogia. Estamos fartos de alarmes, de gritos de "aí vem lobo!"
Houve a gripe das aves, coitadas, imagino-as a assoarem-se a lenços de papel.
Houve o bug do ano 2000 que havia de paralizar os computadores de todo o mundo.
Há a Sida e o Ébola.
Há o aquecimento global com os ursinhos brancos em equilíbrio precário numa minúscula placa de gêlo fundente, em risco de se afogarem.
E a doença das vacas loucas, lembram-se? Ameaçou sériamente transformar em esponjas informes os miolos de quem comesse bifes do lombo na Trindade ou no Nicola - e na volta, foi isso o que aconteceu ao nossos governantes, muito coisa ficava explicada. Entre isso e a pura ganância, confesso preferir um quadro clínico gravoso à descarada desonestidade. São idosincrasias, como agora se diz.
Mas voltemos à vaca fria.
Bem podem os teólogos vir gritar os seus avisos mais pungentes, «salva a tua alma enquanto é tempo, meu palerma!» Ao vê-los vestidos de palhaços, quem evitará um riso entre o céptico e o tolerante?
Esta analogia, no entanto, para ser devidamente compreendida, necessita de algumas pequenas precisões. A mim, ocorre-me perguntar se são só os paramentos o que maquilha a Igreja Católica e, especialmente, os seus teólogos. E de que estão eles maquilhados?
Sim, de palhaços, segundo Ratzinger.
Mas há mais do que um papel no que se convencionou chamar palhaço, não há? É por isso que as analogias são sempre tão traiçoeiras e, não raro, uma forma desonesta de argumentar.
Quando eu era menino e ia ao circo, era ainda o tempo do Palhaço Rico, vestido de lantejoulas e com um barretinho cónico, e do Palhaço Pobre. O Palhaço Pobre era o que levava os enormes bofetões: vestia-se de trapalhão, calças demasiado largas com vistosos remendos, suspensórios por cima de uma camisola de riscas berrantes e uns enormes sapatorros em que tropeçava frenquentemente. Hospedava-se num hotel tão chique, tão chique que era conhecido pelo Hotel do Chiqueiro. E às refeições, para além das «azeitonas recheadas» - «com o caroço», entenda-se - comiam-se também «batatas salteadas»: era «batata sim, batata não. Batata sim, batata não.»
Tinha graça? Não sei. Sei que era do Palhaço Pobre que nós mais gostávamos.
Receio que, pelos anos 60 do século passado, pelas alturas em que Ratzinger fazia estas conferências, alguns Palhaços Pobres tenham feito a sua irrupção na Teologia.
Havia, para começar, os Padres Operários. E as Comunidades de Base. E havia essas estranhas personagens lá de longe, como Frei Gustavo Gutérrez, que, na América Latina, reflectiam sobre o papel da Igreja, Mãe e Mestra, face ao Mundo. Outros se lhe seguiram.
Leonard Boff, claro, mas também D. Hélder da Câmara, que durante o Concílio Vaticano II, se aliara àqueles que reclamavam uma Igreja como a de outro Palhaço Pobre, S. Francisco de Assis, o Jogral de Deus. Todos eles tiveram problemas com a Curia Romana. E Leonardo Boff, é sabido, foi condenado ao silêncio pelo futuro Papa, o Cardeal Ratzinger à frente da Sagrada Congregação para a Doutrina e a Fé.
E D. Óscar Romero. Esse foi assassinado, está tudo dito.
Ninguém quer uma Igreja dos Pobres, muito menos a Santa Sé.
O Palhaço Pobre só serve para levar os bofetões e para comer no Hotel do Chiqueiro. A Mãe e Mestra (a Mater et Magistra, segundo a Encíclica de João XXIII) recusava esse Mundo dos Pobres que viveu, durante os anos sessenta e setenta do século passado, a Esperança a par com a Fé.
A Caridade, em breve lhe seria retirada.

sexta-feira, janeiro 18, 2008

Joseph Ratzinger II

E outros legítimos Superiores

A Primira Comunhão era por volta dos sete, oito anos. Aprendiam-se uns rudimentos, as orações: Pai Nosso e Avé Maria já todos a trazíamos sabida de casa. Mas aprendíamos o Salvé Raínha, o Credo e o Acto de Contrição, os Dez Mandamentos e as três Virtudes Teologais. A Fé, a Esperança - que ninguém nos explicou o que era - e a Caridade. Esta sim: era dar esmola aos pobres, mas cuidado, não fossem gastar mal o dinheiro, em vinho, por exemplo. E ajudar o ceguinho a atravessar a rua, claro. Sim, e ajudar a velhinha a levar a alcofa das compras. Pois, e salvar o Quim de morrer afogado no pêgo do rio...
- Pronto, meninos! Já chega! - gritava a catequista.
A Fé também não ficou muito claro o que fosse. São Tomé duvidou, ora o palerma, toda a gente sabe que Nosso Senhor ressuscitou. E o que toda a gente sabe não precisa da Fé para nada, pois não? Mas nós, alí sentados em bancos de antigo vinhático, encostados à parede de azulejos do claustro, não nos preocupávamos muito com isso. Havia uma coisa a que chamávamos Espremer Azeite e que podia ser jogada subrepticiamente enquanto a Menina Lília nos ia explicando a diferença entre pecados veniais e pecados mortais.
O banco era corrido e os que se sentavam nas pontas começavam a empurrar para o meio. Claro, todos nós colaborávamos - salvo um ou outro menino bonito - e os dois ou três do centro, mais vigiados pelo olhar do catequista, tentavam resistir sem dar parte de fraco. Chegava o momento em que um mais magrinho ou menos paciente cedia.
- Onde está Deus? - perguntava a Menina Lília.
- No Céu, na Terra e em toda a parte! - respondíamos em côro.
E zás! Um de nós, mais esborrachado, levantava-se de repente fazendo vacilar o banco todo.
- Meninos... - dizia a catequista corada e com olhos desolados.
- Foi ele!
- Ele é que começou...
- Foste tu!
No dia da Comunhão, domingo, mais cedo do que o habitual, lá íamos, um nadinha esmagados pela solenidade, compenetrados da nossa importância: íamos receber Nosso Senhor. Estávamos em jejum natural, desde a meia-noite até à hora de comungar, mas por nada deste mundo confessaríamos que estávamos cheios de fome. Espremer azeite, nesse dia, estava fora de tudo o que era concebível. O que significava exactamente "receber Nosso Senhor" não nos preocupava.
O problema do significado só se viria a tornar agudo muito mais tarde. Por esses tempos, os significados eram um caderninho de linhas, pequenino, dividido ao meio por uma outra linha, vermelha esta.
Do lado esquerdo escrevíamos "prisma". E do lado direito punha-se o que isso queria dizer: "poliedro que tem por base dois polígonos iguais e paralelos." Do lado esquerdo anotávamos "diletante". E lá vinha, na direita: "o que se ocupa de qualquer assunto por gosto e não por obrigação ou ofício". Os Cadernos de Significados, rudimentares e desordenados, foram a nossa primeira abordagem à Semântica.
Já no Liceu, porém, nada era tão garantido. As palavras tornavam-se confusas.
Deus ter sido o Criador ex nihilo do Universo, pouca diferença me fazia. A sério, não é heresia. É que, no Mundo, estamos todos. É óbvio para qualquer infante de onze, doze anos, que, de um modo ou de outro, a Criação existe.
O que me confundia e me fez levantar na aula de Religião & Moral para pôr a questão, era a criação artística. Picasso, de quem eu tinha ouvido falar ao mesmo tempo que via um par de reproduções, era indiscutivelmente um criador, mesmo se eu não o percebesse nada bem.
Ainda hoje vejo nitidamente a expressão do Choninhas a quem tinham cometido o encargo de nos ensinar Moral e de nos abrir os caminhos da Fé.
Com os dois dedinhos da mão direita a desenhar um círculo e os outros abertos em leque, o rosto menineiro apesar da calvície, os olhinhos furiosos por trás das lentes, declarou peremptório que «essas porcarias indecentes não lhe interessavam».
Reduzido à sua insignificância, o aluno sentou-se.
Aprendera que um dos mandamentos que o Senhor dera a Moisés se enunciava assim:
"Honrar Pai e Mãe (abrir parentesis: e outros legítimos Superiores, fecha parentesis)".
Viria, pouco a pouco, a entender que algo ou alguém tinha achado incompletas as ordens do próprio Deus e acrescentara esses "Superiores" ao Pai e à Mãe. E aprenderia que Superiores legítimos eram todos os que tivessem a mais pequenina oportunidade de usar bastões e cassetêtes: Chefes, Directores, Presidentes, Generais e Tios mais velhos.
Mas conhecê-los a todos levaria ainda a vida inteira.




quarta-feira, janeiro 16, 2008

Tribunal de Família


Pão compota,
Pão com palha,
Pão com pulha.
Etc.

terça-feira, janeiro 15, 2008

Joseph Ratzinger

O Papa nunca foi, para mim, uma realidade presente.
Não faço ideia nenhuma de quando me apercebi, pela primeira vez de que a religião na qual me estavam educando, tinha um chefe. Quem mandava nessas coisas era, em primeiro lugar a Menina Lília, a catequista chefe das catequistas e, em segundo lugar, o Padre Paixão que coadjuvava na imensa paróquia onde fui medrando. Havia também o Senhor Prior, mas esse era apenas uma figura simpática que dizia a missa lá à frente e que não ralhava connosco.
A religião Católica, Apostólica, Romana e todas essas coisas era para mim, puto contemplativo que lia os Sandokans e os Júlio Vernes, uma coisa porreira, que dava uns convívios e uns passeios no fim do ano, uns filmes ao sábado à tarde que custavam cinco tostões e onde nos encontrávamos todos.
No domingo, depois do almoço, de quinze em quinze dias, íamos ver jogar o clube da nossa terra: éramos "sócios auxiliares infantis", entrávamos de graça. Encontrávamo-nos com outros sócios como nós, brincávamos bancadas acima, bancadas abaixo, e nem sempre nos interessávamos pelo que acontecia dentro das quatro linhas traçadas no saibro.
Juro não saber ainda hoje porque terei perdido, não digo a minha fé, mas esta capacidade de aceitar tranquilamente os dictames da tradição, a naturalidade do convívio, o gosto por ser um entre os participantes na procissão, com a opa roxa da Irmandade do Senhor dos Passos.
Julgo que o principal factor terá sido o ter deixado de "pertencer".
Aos dez anos mudaram-me para Lisboa e entrei no Liceu. Não conhecia praticamente ninguém, o estatuto de origem não me acompanhou. O pária em Lisboa luta ou morre.
Lutei, muito à minha maneira, claro.
Tive por alcunha o "Filósofo". escrevia histórinhas, fazia bonecos. Chumbava ou passava os anos com uma indiferença sonhadora.
Onde se desvaneceu a religiosidade não sei.
Já muito anteriormente, mesmo antes da mudança para Lisboa, duas coisas me preocupavam. Ou três, mas uma é tão tola que quase me faz rir: quando recebia a hóstia consagrada, o corpo de Deus sabia a farinha. Não sei se me percebem. O Corpo do Senhor «devia» saber a qualquer coisa de Celestial. Ou não?
As outras duas eram mais graves. Antes de ir comungar, coisa que se fazia uma vez por mês, era necessário confessar os nossos pecados. E, antes desse Sacramento, devíamos fazer o exame de consciência. Pois, mas isso é que não era fácil. A consciência dizia-me que tinha bulhado umas vezes, mas que era eu quem tinha tido razão, que tinha disfarçado a verdade um bocadinho, mas era porque não queriam que eu fosse brincar depois da escola... O que é que eu ia dizer ao Senhor Padre? Sem Confissão não havia Absolvição. Sem a Absolvição, não havia Comunhão e sem Comunhão eu não estava «lá». E pronto: não havendo pecados, mas sendo absolutamente necessários à Absolvição, só havia um remédio: inventá-los. Mas mentir na Confissão não era um pecado mortal?
A outra coisa que me perturbava era não ser capaz de prestar atenção na Missa.
Quer dizer: eu estava quietinho e bem comportado, salvo algumas excepções que, de certeza, houve. Mas surpreendia-me a mim mesmo numa completa ausência. Já a Missa ia no Ofertório e eu não dera por nada. Muito mais tarde, quando ia de carro para a faculdade às oito da manhã, acontecia-me perguntar a mim próprio já a meio do trajecto, «mas como é que eu chaguei aqui?»
E esta insegurança que ninguém tranquilizou, deve ter proporcionado a curiosidade insatisfeita e perguntadora com que assediei o Professor de Religião & Moral dos primeiros anos do Liceu. Não seria ali o lugar das perguntas?
Todos os outros Professores respondiam - excepto a filha de uma vaca... pronto, esqueçam (a gaja provocou-me um trauma com a Matemática que só visto: e eu que era excelente em Geometria e que adorava tudo o que fosse Lógico e Abstracto, penei durante anos porque não era suficientemente rápido no cálculo. Oh Deuses, se no meu tempo já se pudesse utilizar máquinas de calcular!) Onde é que eu ia?
Ah! na resposta às dúvidas.
Porque é que ninguém liga às angústias metafísicas da miudagem?
" Ah, isso passa-lhes", é o que nos respondem.
Pode ser que tenham razão, não sei. O que vos garanto é que há pelo menos um a quem nunca passou.
Mas o resto terá de ficar para um próximo post.
Se Deus quiser.

sexta-feira, janeiro 04, 2008

Trolling

Não sei a que mitologia pertencem os Trolhos. Nos livros do Tolkien, trolls são umas criaturas muito grandes, muito pouco inteligentes, que adoram andar à trolha. Assim uma espécie de forcados, como os do grupo saudoso de Salvação Barreto, que, reza a fama, andavam por cabarés e casas de fado a provocar os indígenas. Sempre de noite. O Cais do Sodré talvez ainda recorde as suas façanhas de copo e estaladão, acompanhados à viola e à guitarra como convém. As calçadas recordam-lhes os passos arrastados no fim da noite, a caminho dos últimos sopapos no Cacau da Ribeira. Recolhem aos primeiros alvores, dormem enquanto a noite não volta.
Também os trolhos, os do Tolkien pelo menos, só vivem na obscuridade e, triste maldição, se forem apanhados pela luz solar, transformam-se em calhaus para todo o sempre.
Os nossos, pelo menos os da minha mitologia privada - e, adiante-se, muito pouco caridosa - já são calhaus, por isso nenhuma luz, e muito menos a da Razão, lhes faz mossa.
Que fazer quando os vemos, com um riso gravado nos seus basálticos rostos, a perorar sobre a sua própria magnificência?
Não muito. Desligar-lhes a televisão na cara, ao menos, já é um começo. Aceitam-se propostas para a continuação.

quarta-feira, janeiro 02, 2008