segunda-feira, fevereiro 25, 2008

Doze palavras ditas e não retornadas... 2

A segunda é a da balança.
Qual é?
Se já descobriu, pronto.
A caixinha dos comentários espera por si.

Xarope Peitoral de James, caramba!

Este blog chama-se Portugal, Caramba! por uma razão simples. Quem leu A ilustre casa de Ramires há-de lembrar-se da simpática figura do «Castanheiro Patriotinheiro» que, ainda estudante em Coímbra, "fundara um semanário, a Pátria - com o alevantado intento", diz Eça de Queiroz, "de despertar [...] em todo o País, do cabo Sileiro ao cabo de Santa Maria, o amor tão arrefecido das belezas, das grandezas e das glórias de Portugal!»
Três números depois, como acontece com as revistas dos estudantes, a Pátria suspendia a circulação. Mas a vocação do Castanheiro, o seu pequeno degrau para o sucesso, não ficava esquecido.

E é este mesmo Castanheiro quem, anos mais tarde, no Rossio, Gonçalo Mendes Ramires volta a encontrar, com um grosso in folio debaixo do braço, ocupado de novo com o ressurgimento da Pátria:
«Sim, amiguinho! Organizar, com estrondo, o reclamo de Portugal, de modo que todos o conheçam - ao menos como se conhece o Xarope Peitoral de James, hem? E que todos o adoptem - ao menos como se adoptou o sabão do Congo, hem? [...] Como? Reatando a tradição, caramba!»

Um século mais tarde (mais coisa, menos coisa), onde está esse Portugal que deveria ser propagandeado, gritado aos quatro ventos, tão conhecido, digamos, não já como o sabão do Congo, mas, ao menos, como a Floribela?

A tal «tradição» do Castanheiro, a «tradição, caramba!», foi reatada.

É em seu nome que gloriosos estudantes universitários, dizem eles, fazem ressurgir a Pátria: à humilhação dos seus colegas recém chegados chamam praxe. Obriga-se o caloiro a tarefas impossíveis, castiga-se o caloiro, besunta-se com esterco, obrigam-no a embebedar-se, a simular o acto sexual sabe Deus com quem.

Os bons exemplos não faltam:

Uma aluna declara que "foi obrigada a colocar-se de joelhos e que foi barrada com escrementos de porco (cara, pescoço, peito, costas, barriga, cabelo) por um grupo de caloiros que agiram sob ordens (...) Diz ainda que chorou, sentiu náuseas, foi humilhada, que se declarou anti-praxe. Mas que, regressada à escola, outro aluno ordenou que a agarrassem pelas pernas e lhe mergulhassem a cabeça num bacio com excrementos." (Público, 15 de Fevereiro)

"Obrigaram-me a colocar na posição de 'Elefante Pensador' (de joelhos, cabeça no chão e as mãos debaixo dos joelhos com as palmas viradas para cima)", diz a mesma aluna.

É uma posição "bastante dolorosa", garante outra caloira. (Idem, 13 de Fevereiro)

Depois, foi esfregada com esterco: "camada sobre camada, esfregaram-me a cara, pescoço, peito, costas, barriga, cabelo."

E tudo, decerto, em nome da tradição. Dessa tradição tão portuguesa que dá novos mundos ao Mundo. Se os camonas de Abu-Garib julgavam que tinham inventado alguma coisa, bem se enganavam. Os jovens tradicionalistas portugueses dão lições seja a quem for, em qualquer dia da semana.

As autoridades Académicas, os antigos Alunos, a própria Polícia, toda a gente se mostra tolerante:

«Pá! Sempre foi assim», diz um mais velho que passou por Coimbra em tempos já muito idos.

«Também passámos por isso e não morremos», garante outro.

E, com um sorriso constrangido, o Senhor Director da Faculdade, quiçá mesmo o Magnífico Reitor, fala em «rapaziadas» e em «espírito Académico».

"É um cúmlice", juraria o Portugal, Caramba. "Não foi à vinha, mas ficou à espreita."

Em privado, descontraído no sofá de orelhas, com o whisky numa mão, o «havano» na outra, o Magnífico encolhe os ombros, "pá, que é que tu queres? se aperto as regras, os gajos piram-se! É a concorrência! E depois? Quem é que nos pagava os ordenados?"

Em público, com o prestígio da sua escola em jogo, às vezes perde a cabeça. Precipita-se. Convoca o mais depressa que pode a conferência de imprensa e denuncia ele-próprio as mazelas que, se pensasse bem, havia de esconder.

Um funcionário não discriminado - professor, contínuo, escriturário, sabe Deus! - terá saltado para as intimidades de uma aluna e, oh azar! Engravidou-a; melhor, a gravidez surgiu, porque ninguém engravida ninguém sozinho.

Nada de novo.

Já ouvi esta hitória mais de cem vezes. O velho profe, o burocrata-chefe, a meio caminho da caquexia, deixam-se tentar pelo corpinho ágil e vibrante de animalzinho jovem: a aluna. Ela, por sua vez, deslumbrada pelo saber, pela posição social de poder, abre-se! Alma, coração, corpo.

Depois, tudo falha. O funcionário não quer outro filho, não quer tomar conta de uma gajinha que só lhe interessava por causa da cueca - se nos perdoarem o plebeísmo.

Só, ao fim de cinco meses de gravidez, a rapariga toma dez comprimidos abortivos.

Que faz o Magnífico Reitor?

Protege-a, como aos torcionários da praxe Académica?

Nem pensar.

É a honra da sua Instituição que está em causa.

Convoca jornalistas. Desvenda em público, para os media, segredos que não lhe pertencem e declara: «esta água porca não é do meu capote!»

Sem cuidar de que está a invadir publicamente a privacidade de uma pessoa. De que está a usar o privilégio a que se dá o nome de locus parentis para se arvorar em denunciante. Para salvar a própria pele de educador conforme à lei e á moral.

Como disse Jorge revoltado n'O primo Basílio:

- ... Isto só em Portugal!...»

O conselheiro disse:

- A autoridade devia intervir decerto... - Acrecentou com bonomia: - São rapazes (...)"

Há cem anos. Cento e quarenta, mais coisa, menos coisa.

É Portugal, caramba!

Se me permitem um pequeno momento, vou ali adiante pôr uma bomba e venho já.

domingo, fevereiro 24, 2008

As doze palavras ditas e não retornadas do Portugal, caramba!

Pictcionário (1)

Doze palavras para adivinhar, só pelo tosco boneco aqui ao lado.
E a primeira é a do sinal de trânsito: já sabe qual é?
A caixa dos comentários, fachavor!
____________________
(1) Detesto desafios. Sobretudo porque não sou capaz de os ignorar. E é por isso que os adoro. Contraditório? Claro. É assim, mas a culpa foi da Gi a da Ana. Depois venham-me dizer que não há conspirações.

domingo, fevereiro 17, 2008

Mariazinha em Wiriyamu

Felícia Cabrita, Massacres em África, Lisboa, A esfera dos livros, 2008, pag. 257:
»«
"Ele estava a retirar-se da aldeia quando viu a cabeça do miúdo a sair de entre os corpos. Era inadmissível, no meio daquilo tudo, deixar alguém vivo, e os mortos não sofrem. Voltou atrás. O Alferes Abreu gritou: «Foge daí que isso está muito quente!»
Agora vem-lhe muitas vezes à memória aquela imagem. Não tinha mais de quatro anos. Levantou a cabeça, olhou-o, passou a mão pelo rosto cheio de sangue. Tinha a barriga desfeita. Talvez nem sobrevivesse. Talvez... Ergueu a arma e disparou.
Mas claro que houve cenas engraçadas: uns tipos que iam a fugir e são caçados pelo helicanhão, mãozinha da Força Aérea, e ficaram desfeitos. E mesmo anedóticas, como quando atiraram a dose habitual para dentro de uma palhota e um negro saltou com o tecto. Aterrou vivo e foi a caça ao pombo. Ele desata a correr e José Maria a disparar com os outros. «Aí vai disto. Devia ter vinte anos e demos cabo dele.»
Mas há quem não cante de galo nessa noite. entre os oficiais, Silvestre do Rosário chora: «Eu não sou um assassino, fizeram de mim um assassino.» Há assassinos acidentais e profissionais."

terça-feira, fevereiro 12, 2008

O Cão que jogava xadrês XXI


Quando hoje de manhã me avistou, sentado na borda do passeio, não esperava que a minha Senhorinha reparasse neste seu fiel chevalier servant, quanto mais que me reconhecesse e, despida de vaidades, se viesse sentar no chão, a meu lado.

A minha comoção foi tal que ainda gaguejo, aqui diante destas teclas.

Não foi culpa minha se deixámos de nos ver.

E menos ainda que a narrativa dos extrordinárias ocorrências do Canil Municipal, SA, tivesse de ser suspensa.

Eu sei que passaram dias e dias, semanas, meses sem dar notícias e que a minha Senhorinha me procurou em vão.

Mas, o inimaginável aconteceu: estou curado. Eu.

Deram-me um papel carimbado, uma mão cheia de receitas para aviar numa farmácia qualquer e pronto: apontaram-me o caminho da porta.

Não que eu, ao fim de quinze anos de internato, não o soubesse. Mas, que havia de fazer?

Fingi-me atarantado, deambulei pelo átrio, com o saco a arrastar atrás de mim e á hora do almoço aproveitei a distracção dos seguranças que estavam a preencher o euro-milhões e esgueirei-me para o refeitório.

A chefe é Dona Carolina, uma gorducha de rabo empinado que anda a atirar os pés para fora e por isso, a gente chama-lhe a Pinguína. Deixou-me comer a sopa, a ela, se calhar tanto fazia, mas a Segurança mais o Médico de turno e a Assistente Social, chegaram todos ainda antes da massa guisada.

Que eu tinha família, que tinham sido avisados, dizia um, que vinham aí buscar-me acrescentava outro. E perguntaram-me se eu tinha dinheiro e onde estavam os meus documentos.

Família? Dinheiro? Documentos?

E os doentes mentais somos nós?

A Assistente, a abanar a cabeça para o Médico, como se a culpa fosse minha, escreveu imensa coisa num impresso que eu tive de assinar. A título de «põe-t'àndar-e-não-arranjes-mais-chatices» deu-me dez euros emprestados que eu teria de devolver no prazo de oito dias úteis.

Os seguranças, irritados por terem sido fintados por mais um débil mental e por me verem a sacar uns trocos, ainda por cima, acartaram comigo para a rua e ficaram a ver se eu não dava a volta e entrava de novo. Eu, bem que tentei. Mas não há nada mais cruel do que uma instituição quando tem de apertar os cordões à bolsa.

Que havia eu de fazer?

Fui tomar um café com dois pacotes de açúcar porque ainda estava a sentir fome.

A partir de agora ia ser assim.

Mas, pronto, não quis apoquentar a minha Senhorinha com as misérias deste mundo, nem quero agora incomodar as Gentis Damas e os Cavaleiros que ainda se derem ao trabalho de me ler.

Claro que, uma vez a viver na rua, com o resto de dez euros no bolso, não foi pêra doce aceder à internet. Quando se dorme nas portadas, em vãos de escada, embrulhado em jornais, sujeito, manhã atrás de manhã, a ser expulso pelo primeiro condómino que deixa o quentinho do lar, a caridade bem ordenada começa com o pequeno almoço se a tanto a sorte ajudar. Remédios, meias lavadas e acesso aos bens culturais, tudo se vai paulatinamente tornando num secundaríssimo luxo.

Basta, porém, de desculpas.

Não vim incomodar a Minha Senhorinha para me queixar e muito menos para pedinchar fosse o que fosse.

Lembra-se de que o Deus-dos-Cães (aka, ou melhor, aliás, como dizemos nós, Anúbis, aliás, o Deus-Chacal) tinha abandonado a Magrizela, o Carlinhos e o Zé Nesgas no meio da rua. Um salto prodigioso dos que só ele sabia dar levou-o ao telhado da Junta de Freguesia, onde um ruído de telhas partidas anunciou uma aterragem acidentada.

-Fosga-se, man! - exclamou o Zé Nesgas de boca aberta. - Aquilo era o Wolverine, ou era o quê?

Ninguém lhe respondeu. A Magrizela, agarrara de novo no blusão do Carlinhos e saracoteava-se com ele sem conseguir enfiar as mãos pelas mangas. Tinha já tentado enfiar um pé no bolso, mas verificara que não estava a ser muito bem sucedida. E o proprietário do dito blusão, além de tactear devagarinho a cara num sítio que enegrecia rápidamente, apercebera-se, se calhar pela primeira vez, da camisa de onze varas em que estava metido.

Levar para casa uma cadela, mesmo velha e sarnenta, era uma coisa.

Outra bem diferente era aparecer com uma chavala desavergonhadamente nua, que se agachava para fazer os necessários na borda do passeio e que insistia em lamber o focinho... perdão: o nariz dos seus novos amigos.

«Mas bem», pensou ele, «o que tem de ser tem muita força!»

Pelo menos, era o que dizia o Pai quando não acontecia nada do que ele esperava.

E lá convenceu a Magrizela a seguí-lo - para o que, diga-se, teve de puxar a corda com alguma insistência. Houvesse uma alternativa, nem que fosse fugir para o Nepal, e o seu Primo nem hesitaria. Mas o Zé Nesgas, consultado, não apresentou sugestões: hipnotizado pelo corpinho da Magrizela, estava mesmo sem préstimo nenhum.

A nossa casa, quando não se consegue pensar em mais nada e por pequenina que seja, mero tugúrio no em prédio degradado ou barraca de zinco na encosta do monte, é o nosso castelo apalaçado, a fortaleza de cujas muralhas resistimos a castelhanos e americanos, governantes e banqueiros e aos grande da Alfredo Arroja.
«É», diria a Stoura Laura, se por acaso andasse por alí, «o próprio devir histórico», fosse o que fosse que isso quisesse dizer.

Mesmo não sendo longe, o acesso ao lar não se realizou sem algumas dificuldades. A Mãe do Carlinhos e distinta Tia da minha Senhorinha, só para dar um exemplo, começou logo a ralhar:

- De onde é que o menino vem a uma hora destas? E olhe-me para essas calças! Onde é que as estragou dessa maneira, diga lá! Andou à briga outra vez lá na escola, já estou a ver! Já tirar essa roupa e tomar um banho!

O ar feroz da sua Tia era o menos. O Carlinhos estava habituado e se a Mãe julgava que as palmadas lhe faziam mossa, ora bem, desde que o Zé Nesgas conseguisse fazer entrar a Magrizela pelas trazeiras até ao quarto! O Carlinhos achou por bem fazer uma gritaria à laia de manobra de diversão:

- Aiai, Mãezinha, não me bata, aiai! - e marchou para a casa de banho seguido da Senhora sua Tia.

O seu Tio, esse, regressado do bar onde a doce Svetlhana lhe ouvira as queixas e os projectos e lhe ia renovando as taças do suave «Guy Fawlkes blue» a doze euros cada uma, começava a sentir um par de dores fininhas, de cabeça uma, de remorso, a outra.

Não poude por isso impedir-se de berrar como um paquiderme em trabalho de parto: «Gaita que não há sossego nesta casa!»; «Deixa lá o rapaz, irra! Já tem idade para se desenrascar sozinho!»; «Se não tiver, não tem, canudo! E o jantar, onde é que está? Não se janta hoje, está-se a ver!»

A sua Tia, lá do fundo e ainda a empurrar o seu Primo Carlinhos, retorquiu que, «se queria intervir na educação do seu filho, tivesse vindo a horas. E que, quem tarde viesse, comesse do que trouxesse, nunca tinha ouvido?»

O Carlinhos, um pouco mais animado porque a trovoada lhe passava por cima da cabeça e ia chover noutras planícies, entrou rápido para o duche enquanto o tom da troca de ideias entre os progenitores subia vários decibéis. A Mãe, de um lado, clamava por respeito. O Pai, do outro, também. E o Carlinhos, embrulhado no toalhão, aproveitou para se esgueirar para o quarto.

A Magrizela, tapada com o edredon no meio do tapete enrodilhado, dormia com um ar pacifíco enquanto o Zé Nesgas, agarrado ao teclado do computador, dava tiros aos extra-terrestres azuis que surgiam aos cantos do monitor.

- Man - disse ele sem desviar os olhos de um monstro castanho que emergia de uma bilha. - Essa garina é esquisita com'á porra! Mal entrou, começou às voltas no tapete e ferrou-se a dormir.

Interrompeu-se para disparar uma saraivada de balas contra o inimigo que se desfez em geleia.

- Assim em pelota e tudo. - continuou ele depois de gritar «g'anda tiro, viste?» - Tive de a tapar, com o teu edredon. Ond'é que tu arranjaste este embrulho? A minha irmã também não é grande coisa, mas esta bate-a aos pontos todos os dias da semana!

O seu Primo ofendeu-se e agarrou-o por um braço:

- Como é que tu sabes? - contrpôs ele. - Só hoje é que a viste!

- Eu sou ceguinho, não?... - interrompeu-se com um sobressalto e um berro: - Porra, man! Perdi por tua culpa!
O Game Over aparecia de facto no monitor que piscava triunfante. Os uofâres enchiam o quarto de acordes fúnebres.
De cenho franzido, o Zé Nesgas libertou-se da mão do Carlinhos.
- E quando é que ela se veste? - perguntou ele; e acrescentou escusadamente: - Não pode andar assim.
- Julgas que eu não sei? Mas onde é que eu vou arranjar-lhe roupa? E quem é que lhe ensina... hum... haaa... man, a gente tem de ter cuecas, tás a ver! E tem de as baixar, tás a ver, quando for á casa de banho e isso.
E, perante o esgar céptico do Zé Nesgas, o seu Primo lançou as mãos à cabeça:
- Fosga-se! Não tinha pensado nisso! O papel higiénico! A gaja não sabe usar o papel higiénico!
- És tótó ou tás a disfarçar? Com aquela idade e não havia de saber tudo isso e mais que tu?
- Não, não sabe. Ou achas que os cães precisam de saber essas coisas?
- Cães? Quais cães, meu? Os gajos da Arroja amachucaram-te os miolos! De certeza.
O Carlinhos esbravejou:
- Cães, sim, cães. Não vês a coleira dela? E não viste o salto do Deus-dos-Cães que partiu o telhado todo?
Sabe Deus, Gentil Senhorinha, onde teria levado a discussão se a sua Tia não tivesse batido à porta e chamado:
- Carlinhos! Já se vestiu? Convide o seu amigo e venha comer que já passa da hora. E não demore. Já hoje me fez perder a paciência!
Refiro-me, claro, ao nosso Deus. O tal Anúbis, esse desaparecera como se a sua missão na vida estivesse cumprida.
Mas, a razão pela qual eu a vim procurar, Gentil Senhorinha, terá de ficar para outro dia.
São quase horas de chegar a casa, vinda do seu trabalho, e eu não quero que sinta outra vez essa piedade funda que leio nos seus olhos.
Levo-lhe aquele pão pequeno, se me perdoa mais este abuso. Às vezes, à noite, quando o frio aperta, é bom ter uma côdea para ir rilhando.
Bem haja.

Atenção: Obras

Este blog está em reparação.
Pedimos desculpa pelo incómodo.
Prometemos ser breves (1)

(1) Esta piada já foi usada demasiadas vezes, mas, de momento, não nos ocorreu mais nenhuma. As nossas desculpas.


sábado, fevereiro 09, 2008

Blogues que não nos saem da cabeça

A Gi, autora do Pequenos Nadas (que figura aqui à direita como Enormes Tudos) voltou a distinguir o Portugal, Caramba. Como agradecer-lhe? É uma questão a suscitar um estudo aprofundado. No entretanto, vamos ter de inventar também uma lista de

blogues que não nos saiam da cabeça:

O da própria Gi que seja o primeiro;

Seja o segundo o Blogue Sem Nome;




Também gosto muito de passar pel'O Mundo Perfeito e pelo Hole Horror;


O Arroios e o Ladrões de Bicicletas podem vir a seguir.


E, finalmente, porque não o Beppe Grillo?


Ainda faltam, não faltam? Pois faltam. Mas, a seu tempo nos lembraremos de outros. Pode ser?

domingo, fevereiro 03, 2008

Joseph Ratzinger IV

Imagens de Deus

Durante muitos anos não pensei em Deus.

Não era uma questão arrumada, por muito que tenha parecido.Os rituais do culto em que eu tinha sido educado, porém, tornavam-se vazios, como se fossem, tão-só, prolongamentos daquele autoritarismo que eu detectava nos alunos mais velhos, sempre prontos a usar a força condescendente para submeter o caloiro, o irmão mais novo, o aluno menos cordato. Se alguma vez senti o completo sigificado da palavra «absurdo», tão sublinhada pelos autores existencialistas que eu começava a ler, foi essa.

E anunciei à família a minha decisão de não voltar à Missa.
«Vais, sim senhor!», decretava a minha Avó.

Era uma mulher de convicções, salazarista até à medula, viúva desde muito nova, habituada a comandar e a ser obedecida, a manobrar a barca sem a deixar encalhar. Mal acomparada, reconheço-lhe traços em certas novelas da Agostina. Mas não foi ela quem venceu a minha decisão.
A minha Mãe, com a consternação e o desgosto estampados no rosto, foi muito mais eficaz:

«Vá! Anda lá...», pediu ela.
Fui. Mas, no caminho, comprava o Camarada, o jornalzinho da Mocidade Portuguesa que publicava, suponho que pela primeira vez em Portugal, as histórias de Spirou e Fantásio. Na Igreja, ficava o mais longe que podia, escondido por um pilar e deitando olhadelas disfarçadas às histórias em quadradinhos. O tempo custava a passar. Os padres desse tempo ainda liam a Missa em latim, a prédica alongava-se sobre as virtudes de Nossa Senhora, sobre o peixe que os Apóstolos tinham pescado no Lago Tiberíades, sobre Paulo de Tarso, derrubado do cavalo:
«Paulo, Paulo, porque me persegues?»
Não me lembro de alguma vez ter ouvido um Padre a falar do Sermão da Montanha, no púlpito ou fora dele. Nem me lembro de ter alguma vez ouvido um Padre falar do «Povorello» e menos ainda de Santa Clara.
Alguém se admira da perversidade adolescente?
No Liceu correu o boato de que eu ia para a Missa de propósito, para estar a ler «de costas para o altar-mor». Não era verdade, a minha intenção nada tinha de provocatório, antes pelo contrário.
Mas, claro, não fiz nada para desfazer o equívoco.
Também me vestia de campónio, com velhas camisas de quadrados da Nazaré e grandes botins. Também não era nem provocação, nem sequer uma atitude: era simplesmente porque era pobre e raramente tinha dinheiro para voos mais altos. Como o pintor de Somerseth Maugham, eu passava melhor sem comer do que sem cigarros e sem cigarros do que sem os meus cadernos lisos e uma esferográfica preta.
Os meus colegas acharam que eu tinha pinta de beatnick muito antes de essa moda cá chegar. E os camaradas, esses que eram tão convencionais no seu colarinho branco e gravata encarnada, achavam «pouco consciente» o meu pendor boémio, os meus amoricos adolescentes, o meu gosto pela literatura. Declaram-me um «outsider».
Também não desfiz o equívoco. Nunca nos devemos explicar seja a quem fôr. Perdi namoradas, perdi amigos por isso. O que fosse, teria de estar à vista de todos, dizia eu a mim próprio, esquecendo-me dos ensinamentos da Menina Lília: o Orgulho é um dos Sete Pecados Mortais.

Havia os não-religiosos, de um dos lados. Eram marxistas ateus com o culto do jazz, maoistas-albaneses para quem mais de três palavras seguidas era metafísica.
Do outro, havia os membros das Juventudes Católicas, em escasso número, aliás, e uma multidão de indiferentes, analfabetos da alma que se preocupavam apenas com os copos e as miúdas. Entre estes dois grupos, eu sentia-me sufocado.
Todo o companheirismo que então vim a encontrar, situou-se nessa terra de ninguém habitada pelos que decidiram cegamente escrever, pintar, compôr. Pelos que sentem que a centelha do génio, mesmo se mau, é uma maldição que se arrasta connosco até à demência senil.
O tempo passou, a Faculdade também, Abril chegou e também passou. Mudei de empregos, andei de terra em terra com livros às costas.
Se me perguntassem, diria que era agnóstico.
Mas, pouco a pouco, surpreendi em mim próprio, uma estranha compulsão que me levava a falar com os objectos, com as formigas, com as árvores, cães, gatos, aranhas...
E com o meu carro, uma Dyanne 6 que não passava de um estuporzinho temperamental. Ofendia-se com os meus maus humores, alegrava-se com os dias de sol, quando eu lhe abria a capota e tinha uma paciência infinita para crianças. A vinte à hora, chegou a levar nove miúdos a caminho da praia. Uns sentados, outros em pé agarrados ao varão central e todos a gritar muito «vrrrrrroooooaaaaaaahhh» porque «agora éramos um carro de corridas e íamos muita depressa!»
- Mais depressa! Mais depressa!
E o barulheira aumentava.
Mesmo quando estava sozinho, dava comigo a falar com um meu amigo imaginário: o São Pedro.
Se a chuva me apanhasse longe de casa, eu pedia-lhe que me mandasse um taxi. E refilava:
- Então? Não há taxis hoje?
Mais tarde ou mais cedo, o taxi aparecia. Eu entrava, dava os bons dias ou as boas tardes, dizia a morada. E passado um bocado, acontecia-me reparar que nem sequer tinha agradecido; «desculpa lá, São Pedro! esqueci-me de dizer obrigado...»
- Como? - perguntava o motorista.
- Não, não é nada.
Mas era.
É um dado da sociologia que muita gente joga este tipo de jogos. «Se passarem três carros encarnados antes de eu atravessar a rua, a Fernanda vai logo à noita ao bar! ... Bolas! Esta não valeu, o sinal abriu antes de tempo. Agora á que é: se passar um Renault antes de...»
Podemos chamar-lhe como quisermos, superstição, por exemplo. É a convicção de que tudo se relaciona com tudo, portanto, de um conjunto de sinais aparentemente neutros pode deduzir-se consequências desejáveis ou funestas. Certos outros, quando manipulados como deve ser, conjuram a sorte ou esconjuram o azar. Perguntem a damas e cavalheiros à volta da mesa num casino.
E onde passa a fronteira entre estas preces envergonhadas pela luz do dia e a autêntica oração? Em parte alguma. São territórios contíguos, sai-se de um, entra-se no outro, volta-se atrás... Muita da religião popular situa-se simultanemaente dos dois lados.
Sabiam que a Santíssima Trindade é Nossa Senhora, o Menino Jesús e Deus Pai?Só muito tarde assumi esta liberdade.
Uma religião, com os seus mitos e a sua teologia própria, não era terreno proibido. Em que valia a minha menos do que qualquer outra?
Portanto, decidi: Deus é um Cavalheiro muito bem educado, anfitrião cortez.
De idade, claro, que a eternidade já dura há muito tempo. Mas vigoroso, bom garfo, apreciador das melhores colheitas das vinhas celestes, estagiadas em talhas de bom barro.
Pelas manhãs frias, gosta de dar grandes passeios a pé, mãos nos bolsos, com o seu rafeirito e um corvo preto, esvoaçante e gralhento, que falaria pelos cotovelos se os tivesse. Pela tarde, rodeado pelos seus cães e pássaros favoritos, senta-se a fumar o cachimbo favorito e a conversar na sala Gaudi.
Deixem-me dizer-vos, aqui num parêntesis que não quero ir para um Céu onde não caibam os canitos maltratados, baleias e golfinhos assassinadas por pescadores. Nem, já agora, mea culpa, as vaquinhas e os porquinhos cujos bifes eu comi... E não me venham com argumentos, a dizer que os animais não podem ir para o Céu porque não têm alma. Têm, pois têm, mesmo que não saibam vendê-la ao Diabo como os humanos.

Parêntesis fechado, o Céu é onde Deus, a par com a bicharada, recebe as «personalidades que valem a pena», com quem é bom sentar-se a conversar. Lá estão o Einstein e a Maria Curie, o Conde Bertrand, a Audray Hepburn e o sapateiro Berenval. O Jaques Brel, o José Afonso e a Edith Piaff compõem uma música nova. O Albert Camus e as Simones, Signoret e de Beauvoir, conversam, o Chagall faz rabiscos num pedaço de papel. O Taï-Yo-Lunn e o João César discutem, o Tio Adriano tenta acalmá-los com boas palavras. A Maria Callas faz vocalizos e o João Sebastião acompanha-a ao piano. E tantas, tantos, tão diferentes, que só a eternidade chegaria para nomear a todos.
E sabem? Como Deus é bom - e se fôr mau, nada disto tem sentido - então o Inferno não pode existir. Como permitiria Ele que um qualquer antecessor do Pinochet mantivesse um lugar de tortura por toda a eternidade?
Mas, e o mal? Não tem castigo?
Não, para quê? O mau, o pérfido, o cruel, já morreram, não morreram?
O que imagino é que Deus, quando chegamos, mortinhos da Silva, olha para nós, encolhe os celestiais ombros e pensa lá para consigo:
- Bah! Este não saiu lá grande coisa... nem para aparar a relva serve.
E pode mandar-nos para reciclagem.
Lá viremos outra vez cá para baixo até fazer alguma coisa de jeito que mereça ser guardado.
Ou então, como o Hitler, o Nixon e o Béria, a Carlota Joaquina e o Salazar, tantos outros que eu não nomeio para não ser desagradável e mais aqueles todos de que nem ouvi falar, podemos ir
simplesmente para o lixo e acabou-se.
Não tínhamos nada que valesse a pena aproveitar.
A moral, digam os neo-liberais o que disserem, é simples e transparente: é fazer todos os
possíveis para que Deus nos ache «aproveitáveis».
E o bom Ratzinger nisto tudo?
Não sei.
Mas se for ele quem tem razão, então dá-me a ideia de que, Deus me perdoe, o seu Deus não é o meu Deus. É o Deus retratado pelo Mezieres no album Les foudres d'Hypsis (Dargaud, pag. 44). O Deus de George Bush.