terça-feira, outubro 17, 2017

Paulo Varela Gomes, Hotel.

Em Todas as Direcções se contempla o Vazio

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Acabei de ler Hotel, de Paulo Varela Gomes (Tinta da China, 2014) e iniciei o seu Passos Perdidos (da mesma editora, 2016).
Nos intervalos, entre páginas fui desenhando uns bonecos (um mau costume que me ajuda a pensar) enquanto maldizia a quase invencível relutância que sinto perante a ficção de pessoas amigas, ou que, em dada altura conheci de perto. 
Erros meus, má fortuna que  me impediram de me encontrar mais cedo com a obra do Paulo Varela Gomes. Quando o conheci, muito antes de «ser cristão», era ele um jovem guerreiro que atravessava a vida a passos largos e convictos. Que mais dizer, passados tantos anos, se não que estou a gostar de o voltar a conhecer na sua maturidade?
Sobretudo por coisas destas que ele escreveu algures:
"Às vezes são crianças pedintes, outras vezes cães abandonados ou vadios. [...] As raparigas trazem quase sempre uma criança mais pequena ao colo e têm já a indiferença magoada de quem foi condenado a uma pena perpétua. Os cães passam, aquele desesperado para aqui e para ali à procura do dono que fugiu talvez há muito tempo, e outro, vagaroso, cheio de dores, em busca de um sítio onde morrer em silêncio, olham através de nós para uma vida que nunca tiveram." (Ouro e Cinza, crónicas, Tinta da China, 2016, p. 23).
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Rui da Costa Lopes  

             

sexta-feira, agosto 18, 2017

terça-feira, agosto 08, 2017

SALA DE ESPERA

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La cour des miracles.

quarta-feira, junho 14, 2017

Santinhos (I)

Santo António de Pádua,
 o Doutor Evangélico, Primeiro Leitor de Teologia da ordem dos Franciscanos
e grande pregador contra a heresia de Albi. 
E o mesmo, mas de Lisboa, mais dado a quebrar as bilhas às raparigas
e a concertá-las depois casando as noivinhas. 
É claro, é o Santo a quem se deve rezar quando se quer recuperar uma coisa que se perdeu 
- reza-se para que o noivo seja honrado - ou que, sendo outro, não dê por nada.
A vida é feita destas pequenas artimanhas a que nem os Santos escapam.

 São Francisco Marto,
 trabalhador infantil como se usava 
naqueles tempos de extrema pobreza. 
Deram-lhe um cajado, uma navalhita, símbolos da masculinidade, 
disseram-lhe que já era um homem e vá, toca a fazer pela vida, que viver não é de graça. 
Os tempos aborrecidos, enquanto as ovelhas cuidavam das suas vidas sempre iguais, 
entretinham-se como se podia: a fazer brinquedos talhando figurinhas a canivete, em pedaços de pau, porque era o que faziam os gaiatos antes de lá chegar a escola e a mestra com a sua palmatória. E mesmo depois, porque faltar à escola para ajudar os pais, era o que se fazia, que remédio? 
Não sabemos nada dos seus talentos musicais,
mas, em calhando, fazia nu-nús de cana,
mesmo pequenas flautas de sons doces - e desafinados. 

Santa Jacinta
Era uma menina de sete anos aquando das aparições. 
Só depois foi à escola.
Até então ia com o rebanho até ao pasto, mais uma cabritinha à guarda do irmão Francisco e da prima Lúcia, que menina já de sete anos não fica em casa sem fazer nada.
Se calhar, entretinha os dias longos a jogar às cinco pedrinhas que era jogo de meninas, 
com a Prima Lúcia, ou talvez sozinha.
Tem-se o que se pode. Sonha-se com o resto.

quinta-feira, maio 25, 2017

O LIVRO DE AKA


O destino das ruas é ser caminhadas, claro,
e aquelas por onde Aka andava não eram excepção
mesmo se corrê-las todas fosse impossível
porque umas levam às outras e as outras a outras,
como as palavras num dicionário labiríntico
 onde nunca fosse preciso voltar atrás.
Por isso, e porque a temperatura descera
e a neve pisada se tornava negra e escorregadia
deixou   o Chemin Vert, que afinal era uma rua como as outras,
entrou um pouco ao acaso pelo Boulevard Beaumarchais, 
à procura da Rue de Tournelles
e reconheceu que já não sabia para que lado andar.
Havia, claro, o gps e o infatigável Mahamoud a sinalizar as coordenadas
 de cada um dos passos andados
 - pensou Aka pela centésima vez, 
já sem o prazer de antigamente por ser personagem numa história de série B
- ninjas vestidos de negro, armados até aos dentes
e logo um helicóptero a descer, mesmo na rua mais estreita, 
para a resgatar do perigo, 
gato assanhado, Rottweiler mal disposto,
bêbado incomodativo, enamorado persistente
- se, por troça dos djin, 
tal lhe fosse autorizado ao menos uma vez, 
foi o que ela pensou -
e descobriu que Mahamoud não estava à vista.
Por momentos sentiu-se liberta
apeteceu-lhe saltar ao pé-coxinho, jogar seksek 
(il gioco del mondo, la marelle)
nos desenhos que as pedras do passeio faziam
onde a neve derretera.
- Vem, disse uma pequenina voz junto do joelho dela, suave mas insistente
a puxar-lhe a ponta do nikab
uma criança a olhá-la lá baixo com um rosto de velho.
- És o meu djin?
- Que te importa? Anda.
- Onde?
O pequeno ser começou andar num passo miúdo,
do tamanho das pernas miúdas,
como se estivesse certo de ser seguido.
Aka olhou de novo em volta,
o lugar de Mahamoud estava quase vazio,
preenchido apenas pelo vulto diminuto da criança velha que se afastava.
- Porque não? Pode ser que neste mundo haja mais mundos
e de uns se passe para os outros como na Wikipedia
e neste aqui tudo seja ao contrário dos que eu uso
- pensou ela enquanto tomava uma decisão -
bem precisava de alguns contrários 
por exemplo, dava-me jeito passar a ser homem
uma vez por outra.
Mas, e se nenhum dos meus mil nomes
servisse para uma eu masculina?
Acrescentava
Harun-al-Rachid?
Hercule Poirot?
Riu-se e deixou a questão para mais tarde
(se mais tarde chegasse a chegar ao lugar dos agora)
e saltitou ao pé-coxinho
na esteira do seu diminuto guia.
Um portão de ferro tosco abriu-lhes a porta de homem,
Aka entrou com uma ponta de medo,
na sua frente a larga passagem dava acesso a um pátio:
- Voilà, disse a criança velha, tu es à la goguette des nains.
Um braseiro era a única iluminação à volta da qual,
num passo balançado,
se moviam sombras.
O som fanhoso de um bigofone soava mais longe
misturando-se com os protestos de uma galinha que alguém agarrara.
- Bom vinda à corte dos milagres. - disse um dos vultos. - Ceias connosco?
- Hoje é dia de festa - riu-se outro - precisamos de uma boa fogueira.
 Foram-se chegando, um gordo que parecia um barril de palmo e meio
com um braçado de livros
que foi mostrando antes de os atirar para o braseiro,
- Espinosa, leu Aka.
- Montaigne - ajuntou o gordo - e o Divino Marquês...
um segundo com
um com a ave já degolada
atirava para o lume punhados de penas
que erguiam no ar gelado nuvens de fumo pestilento.
- Estamos quase no fim dos livros.
A seguir temos de passar para os quadros,
explicou a criança com rosto de velho.
Tinha ido buscar um velho tambor de lata
e batucava o que parecia uma marcha fúnebre.
- Petit a petit, toute la France y passera, cantarolou ele,
enquanto o bigofone soltava gemidos a compasso.
- Já sei, exclamou Aka.
Tu és o Óscar.
- Je dis pas non, cantarolou o anãozinho.
E os outros entoaram em coro:
- Il dit pas non, il dit pas non...
Começava a cheirar a galinha assada
Aka sentiu água a crescer-lhe na boca.

quinta-feira, maio 04, 2017

terça-feira, maio 02, 2017

O DIABO NÃO ESTÁ SEMPRE ATRÁS DA PORTA


- Mas, às vezes, estou mesmo!