sexta-feira, dezembro 30, 2011

Melindres de Pedagogo e glórias de General

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Sérgio de Sousa, que tem colaborado com este blog, bem mais esporadicamente do que nós gostaríamos, acabou de publicar o seu Diário Póstumo de um Paraescritor (Anáfora, 2011).
Como afirma no Prefácio, "além do incontornável autor, mais quatro pessoas, pela assiduidade com que intervêm ao longo do Diário, tornaram-se também personagens dele."
São essas quatro, em primeiro lugar o seu editor, logo o seu filho mais velho, o Eugénio e o seu amigo Raúl Hestnes Ferreira, conhecido arquitecto, autor entre outras obras, do edifício da Escola Secundária de Benfica ou a Casa da Cultura e da Juventude de Beja.
Dado que a quarta personagem a intervir nesta narrativa diarística é Rui Costa Lopes, que também, conforme calha melhor, se assina como Tacci ou João Bessa, ou Bento Sequeira, ou qualquer outra coisa que venha a jeito, e como se dá o caso de ser o principal redactor deste blog, achámos conveniente apresentar o livro de Sérgio de Sousa com o devido destaque.
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De Rui Costa Lopes se diz, ainda no prefácio:
"Penso que o Rui assumiu o papel daqueles escravos a quem incumbia seguir atrás dos generais nos desfiles da consagração das vitórias, para lhes lembrar que não deviam deslumbrar-se consigo próprios. Só que", acrescenta o autor, "felizmente, nem o Rui, apesar de pedagogo, é escravo, nem eu sou, nem me pretendo, general vitorioso." (pag. XV)
De facto, como diz mais tarde, numa entrada do seu Diário de 8 de Julho de 2003, Rui Costa Lopes cumpriu de forma cabal o papel que nesta narrativa lhe foi distribuído.
"De tudo quanto publiquei", escreve o autor, "o Rui não achou o primeiro livro aquilo a que se costuma chamar promissor, embora na altura lhe tenha encontrado um pormenor interessante. Digamos", continua, "que não quis logo demolir-me. Do resto, apenas ressalva de Na senda dos utopistas três textos, «A Tríade», a que se recusa chamar-lhe assim, nomeia-o «Palimpsesto» - enfim, não será exactamente, mas com boa vontade admito que pudesse ter esse título -, e de que diz não fazer a mínima ideia do que eu quis dizer com o texto, mas o que quer que fosse, está dito, literariamente dito, são palavras suas, «A crónica inventada no Portugal contemporâneo», porque acha piada à figura da protagonista, e o texto «Na senda dos utopistas», porque nele «se abordam algumas ideias», sic. O mais são trouvailles, sem realização literária.
"Claro que o Rui faz o favor de continuar a ser meu amigo, apesar de eu não escrever nada de jeito, e por isso me aconselha a que deveria não ser apressado na escrita, deveria cuidar do literário.
"Ora reconheço que tento escrever nos poucos intervalos de tempo de que disponho, e isso imprime à minha escrita um cariz provavelmente diferente do que teria se dispusesse de uma estabilidade material que me permitisse estar tranquilamente num local aprazível a ocupar-me quase exclusivamente de escrever.
"Mas também procuro uma escrita incisiva e não contemplativamente espraiada. Aprecio noutros virtudes de linguagem, para mim chega-me que a prosa resulte inteligível.
"O Rui acha que se não me disponho - por preguiça, precipitação, falta de domínio de eventuais capacidades - a escrever melhor, então não deveria publicar. Enfim, eu farei o que quiser, acrescenta. "Quanto a ele, o de eu não sair de uma pequena editora, significa que o que escrevo não tem qualidade e ando a ser explorado. [Se o que escrevi não presta," pergunta o autor entre parêntesis rectos a indicar que se trata de um comentário contemporâneo da preparação desta edição e não do Diário propriamente dito, "porque havia de ser bem remunerado?]
"O Rui vinca que quer dizer-me as coisas sem me magoar, paternalistamente.
"Eu sei que os meus escritos não têm a qualidade literária dos dos escritores. Mas serão tão maus que não devam ser publicados?
"Outros ecos de leitura dos últimos não me chegam, talvez só uns escassos e daqui a meses. Poderiam eventualmente ajudar-me.
"Estávamos já na esquina da minha rua, o Rui e eu, para nos separarmos, quando apareceu o Edgar, e o Rui apenas teve ainda tempo para simpaticamente me consolar, que não me ralasse, livros que não prestassem, era o que mais havia."
E conclui a anotação do dia: "É a opinião dele, provavelmente acertada, sinceramente expressa, do modo menos ferino que consegue." (Pags. 528, 529 e 530)
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O escravizado pedagogo, pelo que se leu, cumpriu o dever de advertir o general dos riscos de se deixar levar pela ufania.
Mas, como todos os escravos em tais circunstâncias, com a coroa de louros erguida na mão e as frases a soltarem-se, «lembra-te César de que és pó e que ao pó hás-de tornar, lembra-te César: nasceste nu e a riqueza que conquistaste não te seguirá atá à cova... Lembra-te de que a plebe hoje te aclama e amanhã te condenará à morte» e por aí fora, bastante deve ter irritado o General que se sentiu amesquinhado no seu triunfo.
Não nos custa imaginar que, um tanto fora de si, tenha desatado a dar pontapés e bofetões no pobre escravo:
- Cala-te, imbecil! Cala-te ou levas mais.
E bem imagino o pobre pedagogo atirado da quadriga abaixo, a populaça a rir do escravo caído em desgraça.
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Foi, cremos, o que aconteceu à personagem Rui Costa Lopes na saga de Sérgio de Sousa. De vez em quando, zás, lá vem um estaladão, a propósito de qualquer coisa: «lá estava o Rui, com o pobre cão, o Rover fechado no jipe à espera» (pag. 512), por exemplo.
Pobre cão? Quererá Sérgio de Sousa sugerir que a sua personagem tratava mal o boxer que há longos anos lhe faz a melhor das companhias? O carro estava estacionado à sombra, claro, com as duas janelas da frente ligeiramente abertas. O Rover, como era seu costume, ocupara o lugar do dono mal ele saíra e sentara-se, muito direito, no banco atrás do volante, a olhar vigilante quem passava. A personagem, casualmente, lembra-se muito bem desse dia porque veio várias vezes com outros amigos e copos variados, cá fora para lhes apresentar o Rover.
O pobre cão é ainda motivo de outra entrada, essa escrita em Pedrógão, em plena serra D'Aire, num mês de Agosto.
"O Rui veio almoçar aqui trazendo o Rover, para quem cozi um osso com macarrão." (pag. 638)
Foi uma gentilíssima ideia do Sérgio: o Rover alambazou-se com o macarrão de que aproveitou até as migalhas que se espalhavam pelo chão de cimento e depois, de barriga mais do que cheia, deitou-se à sombra a roer o magnífico osso. E eu pude beneficiar de um lautíssimo banquete cozinhado pela Mãe do Sérgio - uma Senhora carinhosa na sua impecável hospitalidade.
O mal foi que, a seguir a esse almoço e à bica tomada no café, ao Sérgio lhe apeteceu um passeio digestivo - coisa aliás, natural num citadino como ele.
"Tentei levá-los depois à serra," escreve ele na continuação, "mas o Rover não aguentou nem o começo da subida. Obviamente o culpado é o dono, que lhe passou a «calaceirice».
O dono, claro, assumirá todas as culpas que pudessem caber ao «pobre cão», mas, efectivamente não terá sido responsável pela temperatura do ar, bem acima dos trinta graus, nem pela falta de água - não se preveniu por não saber que «íam à serra»: é claro que, pedindo muitas desculpas por ter estragado o passeio, optou por não deixar o Rover rebentar de sede.
Este tema «calaceirice» da personagem Rui Costa Lopes é glosada bastantes vezes. Por exemplo, na página 562 diz-se: "Não compreendo, falta-me o ânimo para fazer o que quer que seja.
"Engonho.
"À noite dei uma saltada a casa do Rui, que preguiçava."
É certo que o Rui não é nenhum hiperactivo; como se diz a páginas 406 "... se não se desse o caso de o meu Amigo ser um preguiçoso, que sempre se limitou ao que o obrigaram a fazer" e como se explicita na página 108, "Inteligente e frugal (ups, aqui ele tem de agradecer) o Rui não se esfalfa atrás do que não elegeu como essencial. Ele é filósofo, contempla, discorre e compraz-se."
E também: "O Rui, embora bem refastelado na vida, defende que só a Ideia o interessa. Um clerc, como escreve António Pedro Pita (quem será?), pretendendo que o seu reino não é deste mundo e, acrescento eu, que tudo quanto é social lhe é alheio, pior, o enfastia, pretende, o irrita, de facto."(a quem? ao António Pedro?)
Esta preguiça contemplativa acarreta, como se viu, uma outra característica talvez não muito invejável: a falta de sentido das realidades.
Sérgio de Sousa comenta: "é o cúmulo da falta de realismo!" a propósito de uma brincadeira acerca da nossa mania de pintarlucar umas telas pequeninas. Eu, com os acrílicos e as aguarelas, sou um tosco. E, de facto, o que eu estava nesse dia a sugerir era que ele devia arranjar um escritório, uma vez que passava a vida a dizer que em casa, por motivos que não compete ao pedagogo de serviço na quadriga dizer, não conseguia trabalhar.
Também, quando a Câmara Municipal de Sintra me premiou a novela A Siberiana, Sérgio de Sousa anota que assistiu à "cerimónia de comunicação da atribuição, não ainda da entrega, do prémio Ferreira de Castro de 1996, Literatura, ao Rui."
E conclui o seu relato: "O Rui pagou o jantar, dele e quatro acompanhantes, no Café de Paris, logo a gastar o valor do prémio que ficaram de lhe mandar." (pag. 68)
Que falta do sentido das realidades, de facto.
Mas mais:
"Reli há poucos dias A Siberiana, do Rui, agora editada em livro. [...] Gosto e desgosto desigualmente do livro. Acho-o literário, isto é, com o encanto de um arquétipo, sem reflexo na realidade." (pag. 190)
E antes, já tinha comentado que achava o "romance bem construído, socorrendo-se de uma estrutura policial" e que o Rui o tinha apurado "bastante." Porém, imagine-se, "Ele diz que não, e esta será mais uma das desavenças numa amizade de quase quarenta anos, como escreveu na dedicatória do exemplar que me ofereceu."
A entrada era de 1999 e a amizade, no fim de 2011 já vai nos cinquenta.
Talvez por isso Sérgio de Sousa se permite publicar agora um comentário de Março de 2000 em que diz o seguinte:
"Ao fim da tarde passo por casa do Rui, ocupado a rever a tese de mestrado - em que procura imputar determinado ideário filosófico a Eça de Queiroz - que a Imprensa Nacional publicará este ano, centenário da morte do escritor." (pag. 277)
O escravo que acompanha o General no seu triunfo tem de dizer que «imputar» não é uma palavra que lhe agrade neste contexto e que a toma por mais um empurrão para se ver livre da incómoda personagem que passa a vida a irromper pelo seu Diário.
Creio que lhe devo fazer a vontade e acabar de vez com essas desagradáveis desavenças.
Não convém a General nenhum, aspirante a um lugar entre os notáveis, que com eles constantemente se encontra e conversa, ter um chato de um amigo que não gosta da maioria das coisas que ele escreve, e que lhe aponta a dedo estendido o que de bom ele realmente tem escrito como um modelo que poderia seguir se escutasse os seus leitores, os seus amigos: «Tríade» (e não Palimpsesto, peço desculpa), por exemplo, «A Dona do Cachorro», «Nas férias», «Na senda dos utopistas», «Dr. Virgolino e as suas amigas» e pronto, coisas assim, a que se podia agarrar e desenvolver... se quisesse ou se tivesse tempo.
O Rui que o seguia na quadriga e lhe moderava as fanfarronices, apeou-se, atirou com a coroa de louros ao caraças e foi-se embora.
Deseja muitos sucessos e muito boa sorte ao Senhor General.
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segunda-feira, novembro 28, 2011

De amor e de sombra

- Mulher, queres ver que nos roubaram o nosso país?
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De amor e de sombra
Isabel Allende
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Comprar outra vez um livro que já se tivemos e que se perdeu, é como tropeçar um velho amigo. Ou melhor, reencontrar alguém que já fomos.
Nem imagino qual seria a minha surpresa se, um dia destes, acabadinho de acordar, a caminho da casa de banho, eu lançasse um olhar maquinal ao espelho e descobrisse o meu próprio rosto com vinte anos.
E, um pouco em choque pela surpresa, havia de perguntar, pela voz que me pareceria vir do espelho:
- Pá! Ainda és assim?
- Assim como? - respondia eu, a fingr-me desentendido.
O jovem de espelho abriria o De amor e de sombra.
- Lembras-te das últimas frases do livro? - e, sem esperar pela resposta lia: - «Sentiam-se pequenos, sós e vulneráveis, dois navegantes desolados num mar de cumes e núvens, num silêncio lunar...» Queres que continui?
- Hum-hum.
- «... mas sentiam também que o amor tinha ganho uma nova e formidável dimensão e seria a única fonte de ânimo e vigor no exílio. À luz dourada do amanhecer, pararam para ver a terra que era sua pela última vez. - Esqueceremos?, murmurou Irene. - Esqueceremos - respondeu Francisco.»
Ficaríamos em silêncio, a olhar uma para o outro. 
- Não é essa a palavra que está no livro - diria eu, por fim.
- Ainda te lembras?
- Lembro: o que lá está é «voltaremos? - murmurou Irene.» E o namorado responde: «voltaremos».
- Tive medo de que te tivesses esquecido.
- Enganaste-te - responderia eu.
Mas havia de sair da casa de banho assobiando em surdina uma passagem do Bolero, do Ravel: sinal, penso eu, de que não me estaria a sentir demasiado confortável. 
Felizmente têm estado uns dias de sol.

quinta-feira, novembro 24, 2011

o CADERNO de MAYA, ou os crimes da AVÓ Allende

 
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o CADERNO de MAYA
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Não é um grande livro.
Não que eu alguma vez soubesse o que quer dizer a expressão «grande livro».
De A Montanha Mágica, de Thomas Mann, as coisas mais importantes que recordo são os espantosos discursos de Mynheer Peeperkorn:
- Minha filha - disse ele. - Vai tudo bem. Mas que acha?... Por favor, não me interprete mal. A vida é breve, a nossa capacidade de satisfazer-lhe as exigências... É assim que... São factos, minha filha. Leis. Inexoráveis. Em resumo, minha filha, em resumo, perfeitamente.
E é tudo, julgo, do prémio Nobel de 1929.
De Isabel Allende tenho presentes muito mais coisas: primeiro que tudo, as suas espantosas avós, os seus espantosos avôs.
As diversas voragens das vidas que vamos sofrendo fizeram-me perder, de há muito, livros como A casa dos espíritos, De amor e de sombra, ou Eva Luna (que hei-de voltar a comprar: é o que mais vontade tenho de reler neste momento, pelo menos.) 
Mas julgo recordar uma longa fila de avós sempre presentes, nem sempre de forma discreta, mas acolhedoras, como o ninho a que é bom regressar quando se tem a asa ferida.
Desde a céptica Avó Cold d' A Cidade dos Deuses Selvagens até esta absurda avó Nini que criou Maya na confiança de que os milagres estão lá para nos salvar quando tudo o mais nos abandona, os avôs são os espíritos benfazejos que pairam à nossa volta.
Gunther Grass, em O tambor, também fala de uma avó acolhedora, debaixo de cujas saias o anãozinho Óscar se refugia. Mas trata-se de avós como as de antigamente: velhotas ainda enérgicas, mas tão só isso.
As avós de Isabel Allende são (quase todas) sexuadas e é por pouco que não as vemos de mini-saia.  Os avôs desejam-nas, mimam-nas, protegem-nas, como amam e protegem as netas.
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A segunda coisa que logo se me apresenta, quando penso Isabel Allende, é a amizade. A amizade fiel, eterna e desinteressada.
Maya, mesmo na mais negra miséria, encharcada em drogas, Maya tem um amigo, o subnutrido Freddy que lhe salva a vida por duas vezes - e o seu avatar, Juanito, outra. Eva Luna tem um fiel amigo transexual, a heroína de De amor e de sombra, faz amizade com um padre que a acompanha na desesperada busca pelos desaparecidos do regime de Pinochet.
Não há uma grande variedade nas personagens de Isabel Allende: vão-se parecendo umas com as outras, mas nós gostamos de as reencontrar, como gostávamos de reencontrar o Júlio, a Ana, a Zé e o David quando líamos os Famous Five. São humanas, são falíveis, pecadoras e aventureiras, mas há nelas, salvo quando lhes está destinado o papel de maus da fita, uma generosidade que escasseia, cada vez mais, nos nossos horizontes.
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Uma nota final: este livro é, de algum modo o reencontro de Isabel Allende com o Chile - mesmo se quase como se fosse uma mera turista na ilha Chiloé - e com as memórias do golpe vibrado por Kissinger nas esperanças dos anos sessenta: um mundo onde a felicidade era possível.
Cito apenas uma pequena passagem para não roubar a surpreza a quem quiser ler o livro:
"Aquela violência era tão inimaginável no Chile, orgulhoso da sua democracia e das suas instituições, que Manuel foi incapaz de avaliar a gravidade do que sucedera [...]. Levaram-no de olhos vendados até ao Estádio Nacional, que estava transformado em centro de detenção. Ali se encontravam pessoas que haviam sido presas durante aqueles dois dias, maltratadas e famintas, que dormiam deitadas no chão de cimento e passavam o dia sentadas nas bancadas, rezando em silêncio para não incluídas entre os desafortunados que conduzidos à enfermaria para interrogatório. Ouviam-se os gritos das vítimas e, à noite, os tiros das execuções."
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quinta-feira, outubro 06, 2011

Quinto aniversário

Faz hoje cinco anos que o «Portugal, Caramba!» por aqui apareceu.
Não primou sempre por uma linha de orientação demasiado coerente, mas quase nunca marcou presença apenas para cumprir calendário.
Há que desculpá-lo: divertiu-se sempre, indignou-se em algumas ocasiões, fez troça noutras.
Uma vez por outra mereceu parabéns.
E, volta e meia, mesmo se é pecado, sente-se um nadinha orgulhoso  de si mesmo.


terça-feira, setembro 27, 2011

Paradoxo, ou nem isso...


- Não, avô.
O Mundo está cada vez mais vasto e as coisas estão cada vez mais perto.
Não vejo o que queres dizer com essa coisa do paradoxo.

sexta-feira, setembro 16, 2011

Não gosto

Não gosto. Não gosto e não gosto.
Não gosto. E não gosto mesmo.
Também não gosto e tenho raiva a quem gosta.
Disse.

terça-feira, agosto 23, 2011

Jejum contra a corrupção

Anna Hazare
(em fundo:página do jornal Público)
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"Juntar a mais firme das resistências ao mal
com a maior benevolência para com o malfeitor:
não há mais maneira nenhuma de purificar o Mundo",
disse Gandhi.
E depois mataram-no.
Dá que pensar, não dá?

segunda-feira, agosto 08, 2011

Domínio público, Mil e uma noites frágeis e O homem do turbante verde

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1.
Quem visse assim, sem mais, o título deste post, havia de achar que se tratava do início de um conto do Jarry, ou, no mínimo, de um apontamento deixado por um desses poetas que dantes publicavam nas páginas literárias.
Mas não: são os títulos dos três livros que mais recentemente por aqui andaram, curiosamente, a velocidades muito desiguais.
Explicando: 
Como toda a gente já reparou, as pessoas que lêem, não importa se são amantes de música pimba ou se reviram os olhos a ouvir Kodály, lêem de maneiras diferente.
Umas são grandes leitoras, levam um livro de duzentas e vinte páginas debaixo do braço quando vão para o emprego de manhã. À hora do almoço já se passeiam meditativamente pela Bertrand ou pela Fnac, petisca aqui, petisca ali, e, ao fim do dia, durante a viagem de combóio para Mem Martins, devorado o último capítulo, só lhes resta espreitar o jornal do vizinho.
Há também os que preferem as leituras saboreadas, reflectidas. O Stig Larsen, nos seus três tomos volumosos, dá-lhes para um ano e meio e ainda sobra; um Gonçalo Tavares, para um semestre.
Outros ainda, arrastam o livro pela mesa de cabeceira, levam-no para o restaurante e para as esplanadas em fim de tarde; acabam por o perder sem a vista lhes ter alcançado mais do que alguns parágrafos.
Esquecê-lo no Metro, foi uma bem-vinda arrelia, um inconfessado alívio.
Nós aqui no Portugal, Caramba! acumulamos esses três modos de ler e ainda lhes juntamos mais alguns que agora não nos ocorrem. Ou sim: os livros da má consciência, já ouviram falar?
Compramo-los, às vezes só por dever, mas arrastam-se por aí; passamos por eles da cozinha para a sala de estar e fazemos vista grossa não vá ele gritar-nos «então? fale à gente e guarde o seu dinheiro!»
2. 
O Domínio Público, do Paulo Castilho (LeYa, D. Quixote, 2011), foi um exemplo do primeiro caso.
Note-se que se trata de um dos nossos autores favoritos, portanto, é um daqueles que nos fazem precipitar-nos para a livraria mal nos damos conta de que um novo livro saiu do prelo. Infelizmente não é muito célere a informação: já o Domínio Público andava pelos escaparates desde Junho e eu só no fim de Julho me dei conta disso. A Leya não deve ter investido muito na exposição do livro porque, mesmo à procura dele, não foi fácil encontrá-lo, escondido como estava entre os que o tempo já obscureceu.
Enfim: tardou, mas arrecadou!
Domínio Público, como todos os livros de Paulo Castilho, lê-se de um trago.
Primeiro porque voltamos a encontrar a Rita e o Filipe, gente que conhecemos novinhos em Por outras palavras. Tínhamos já reencontrado o Filipe em Letra e Música,  agora vêmo-lo novamente reunido com a Rita.
Paulo Castilho, ele que nos perdoe, tem em comum com a Enid Blyton uma tendência para a série: Novas aventuras de Rita e Filipe, Rita e Filipe partem para outra, etc., seriam títulos bem-vindos a seguir ao Domínio Público se os editores fossem todos como o Honorato - outra das personagens reincidentes de Paulo Castilho. 
O Honorato é o sarcástico - e cínico q. b. - editor do Filipe com quem, de longe, vai dialogando, regra geral por mail. Nunca, que nos lembremos, aparece nas histórias, senão por interposta correspondência, toda no estilo "gosto muito de intelectuais obscuros. Alguns dos meus amigos são intelectuais obscuros. Mas o problema dos intelectuais obscuros é que só outros intelectuais obscuros fingem que os lêem." (Letra e música, p. 22)
Também a Rita é reincidente, mas quem sabe se não está ali para representar um tipo quando a própria aceita definir-se pelas palavras do seu ex-namorado Filipe?
"... Só quero o teu bem," diz ela, "portanto, conselho gratuito da Rita, arranja uma menina boazinha, é mais o teu género. Eu não estou disponível e, além disso, achas que sou difícil e imprevisível e cansativa e não se pode contar comigo - como tiveste em tempos a amabilidade de me explicar, mas felizmente nunca me chateio." (Domínio Público, pp. 66, 67)
A personagem aparecia-nos já esboçada na Patrícia de Sinais exteriores, por exemplo, e desdobra-se neste Domínio Público. A Sofia e a Filomena ["Na minha sala vive-se e portanto estão lá os objectos com que eu vivo. Não estão desarrumados. Estão a viver comigo." (D.P. p. 81)]  são variações de um mesmo espírito improvisador e desarrumado, que, aliás, partilham com muitas das personagens masculinas, como se, para Paulo Castilho, Portugal fosse esta desarrumação indolente em que um ou outro rasgo acaba às vezes por emergir, para nos salvar da banalidade.
Enquanto esse rasgo vem e não vem, a família da Sofia, da Filomena e do Tiago - que namora a nossa conhecida Rita - projecta uma Fundação que perpetue a memória e o legado do avô Póvoa - mas com o dinheiro que ele tinha herdado do sogro e depois do cunhado. Infelizmente, tudo irá soçobrar em mais improvisações: habituada a gastar até à delapidação do património, com o àvontade de quem não depende do seu próprio trabalho, a Família Póvoa (também dita Alves) recorre a um corretor da Wall Steet e a investimentos ilegais para ir mantendo o rendimento anterior. Acaba, azares da vida, por cair nas malhas da justiça americana: computadores apreendidos, acções confiscadas, multas.
O resultado está à vista: verdadeira imagem do nosso país, a supérflua Fundação é a primeira coisa a desaparecer no urgente downsizing da família.
A Rita e o Filipe perdem o emprego e, num final digno da corrida no Aterro, dos Maias, decidem que vão emigrar para a Irlanda, para a Bélgica; entram numa pastelaria; ela come uma brisa, ele um pastel de nata.  
"Isto é que me reconcilia com a vida", remata a Rita.
E sim, se o Domínio Público não nos reconcilia com a vida, pelo menos faz-nos sorrir à custa dela.
Se estivessemos em Inglaterra, havia a possibilidade de uma BBC agarrar nesta novela e fazer uma série, quatro episódios de quarenta e cinco minutos cada, já imaginaram? Com actores escolhidos a dedo, cenários de encanto e o argumento devidamente trabalhado para não se saber ao certo, até ao último momento, quem era o responsável pelo descalabro económico da Fundação.
Talvez os maus fossem castigados para se salvar a moral, mas isso, está bem de ver, só acontece na televisão. Não propriamente na realidade e ainda menos nos romances de Paulo Castilho.  
3.
Outro livro dos que queríamos falar custou-nos a ler, mas não pensem que a culpa foi nossa; nem, diga-se desde já, da novela Mil e uma noites frágeis de Beatrriz Lamas de Oliveira (LuLu, 2010).
Mas acontece que nem tudo dá jeito a toda a gente.
O telemóvel sim, normalmente, mas se quisermos andar por aí no mais severo anonimato, o melhor é deixá-lo em casa, desligado e escondido com o cartão de crédito, na mais funda das gavetas, debaixo das camisolas de inverno. As portagens na auto-estrada também se pagam com umas moedinhas - foi para isso que o dinheiro foi inventado, muito antes da Via Verde, lembram-se? E telefonar, só das cabines públicas. 
A nós, no entanto, o que mais nos encanita nesta coisa das tecnologias novas são os livros.
Habituámo-nos, defeitos de educação, a ler na cama, nem que seja umas linhas, antes de nos rendermos ao sono.
Sabemos que faz mal à vista, que incomoda as nossas companheiras, não só porque mantemos a luz acesa quando elas querem dormir, mas até porque, sem dar por isso, adormecemos, o calhamaço desprende-se-nos das mãos e tomba fragorosamente! Acordam elas com a disposição que se imagina, o pobre cão que dormia pacificamente no tapete apanha com a lombada em cima e desperta ele também com um salto e um ganido: cena completa!
Quando o livro nos chega pela net, em formato PDF, então os problemas tornam-se graves. Para o ler tem de se ficar sentado aqui a esta secretária, com o ecrã na frente, a tecla do PgDn em vez do tranquilo molhar com cuspo o indicador e voltar a página. Nem pensar em levar o portátil para o quarto. Já imaginaram o estrondo que o pobre aparelho fazia se nos caísse das mãos? E em que estado ficaria o pobre cachorro, que olhar de espanto e censura não nos deitaria?
Havia outros recursos, claro. 
Uma tablet, por exemplo. Ou a impressora.
Mas a tablet pesa pelo menos meio quilo e não se recomenda deixá-la cair muitas vezes.
Imprimir as cento e quarenta e três páginas da novela da Beatriz Lamas de Oliveira, isso sim, era uma alternativa, mesmo se o formato A4 não é nada cómodo e também obriga a um peso nada despiciendo.
Aqui há tempos quisemos ler a tese de mestrado de uma amiga e, catástrofe: pesava um quilo e tresentos, as páginas desataram a soltar-se umas das outras, pareciam loucas a enfiar-se para baixo dos móveis. 
- Que Diabo? - praguejámos. - Porque não hão-de os editores exercer as funções a que Deus os destinou e não imprimem eles  próprios - por interposto tipógrafo, está bem de ver - aquelas coisas que nós gostamos de ler?
4.
Mas, adiante!
Temos estado a ler, em PDF, é certo, o livro de Beatriz Lemas de Oliveira que já referimos, Mil e uma noites frágeis, e por mais de uma vez tivemos de interromper a leitura, desligar o computador, com grave prejuízo das nossas pequenas manias: sublinhar, voltar atrás, rabiscar um comentário nas margens, levá-lo connosco para o consultório do dentista, ler umas linhas enquanto se espera que abra a passagem de nível ou mude o sinal vermelho. 
Da autora, já tínhamos lido O Insecto Imperfeito, publicado em 1999 pela a Gradiva, editora que desperdiçou a oportunidade de publicar também esta segunda novela.
Insecto Imperfeito retratava-nos a relação entre uma mulher jovem, da classe média-superior e um «estranjeiro», "amputado de ressonância interna, curto-circuitado entre o desejar e acto imediato de cumprir o desejo na pele, na boca, nas mãos, no sexo, quase sempre hirto." (p. 19) O estranjeiro, cuja única habilidade parece ser um desporto radical - a pentacolada - cola-se económica e sentimentalmente à sua nova conquista e permite-se chamar "estupidezes" às tarefas domésticas (e não só) que tornam possível o viver comum.
Não é um livro ameno, mesmo se a dor da protagonista quase se não deixa surpreender.
Em Mil e uma noites frágeis, pelo contrário, é ela o tema dominante, primeiro como tristeza, luto por um amor trágico, só depois como aceitação de si própria, abertura para a possibilidade de um renovado êxtase.
Na narrativa, misturam-se, aparentemente ao acaso, o percurso interior da narradora, Teresa de seu nome, com os episódios de uma excursão à Tunísia em que ela se inscreveu como quem compra um parentesis no tempo.
Viaja tão anónima quanto possível, escondendo a sua identidade de médica psiquiatra e fazendo-se passar por uma menos comprometedora assistente de consultório: evita estabelecer laços com os companheiros de viagem, absorve-se na leitura de si mesma, do diário que escreveu em tempos de crise emocional.
As rotinas destas excursões, as pausas para o espanto ou para a gula, os momentos livres que se abrem ao convívio e aos namoricos mais ou menos inconsequentes, os longos percursos entre cidades e monumentos, horas em autocarros com ar condicionado, tudo isso permite um recolher-se a si mesmo, uma fuga ao seu eu habitual, à sua história, num sentido muito amplo, ao seu currículo. 
Também a alienígena narradora de  O insecto imperfeito recorria a um inner-space, "uma vastidão de silêncio onde nos podemos recolher sempre que o espaço exterior seja sentido como desagradável ou opressivo." (O Insecto..., p. 6)
De modo semelhante, Teresa descreve-se como recolhida nesse inner-space, mas numa longa espera: 
"Eu, é um pouco como se estivesse há muito, muito tempo, com a mala tão cheia e pesada, uma mala cheia de perplexidade, procurando a estação, a estação do ano, da camioneta, do metro, do combóio, do navio, onde há-de estar escrito o lugar do meu destino." (Mil e uma noites frágeis, p. 81)
Esta espera, este longo arrastar de perplexidades é, primeiramente, a zona de refúgio, de recusa, como era o inner-space para a alienígena de O Insecto:
"Vi-lhe o brilho de triunfo no olhar quando [...] o deixei avançar para os botões da minha blusa.
Fechei os olhos e comecei a recuar para o meu silencioso inner-space. Lá fora, Uriel, triunfante, exercia uma imaginária, mas milenar, exibição de poder masculino." (O Insecto..., p. 36)
Mas esse refúgio, que pode ser apenas o banco da retaguarda de um autocarro onde se vai fumar um transgressor cigarro,  é também a zona da espera e do acolhimento.
"Enamoro-me" escrevera Teresao, a narradora  de As mil e uma noites, no seu diário, "quando no outro pressinto (ou imagino?) a igualdade no uso de sinais e de símbolos que permitem o acesso ao meu mundo interno."
E conclui:
"Entrego-me num desejo de absoluto e de fusão. A fragilidade da entrega reside na lucidez de a saber impossível." (Mil e uma noites..., pp. 82, 83)
Mas, como a novela irá mostrar, ao menos por momentos, a fusão acontece.
5. 
Em vez de lermos os livro de fio a pavio, como nos aconteceu com Guerra e Paz ou com  A Montanha mágica, agora pegamos e largamos meia dúzia deles ao mesmo tempo: sacrifica-se a Anna Arendt ao Irmão Cadfael, e este abandona-se a favor do Afonso Cruz - de quem, um destes dias, em Deus querendo, se há-de falar neste blog.
São os sinais do tempo, da velhice que já vai espreitando ou, se calhar, apenas da fartura: quando o dinheirinho, o vil metal era ainda mais escasso nos nossos jovens bolsos, comprava-se com sacrifício um volumezito da Coleção Miniatura ou da Argonauta, e quinze tostões de uma bica e três e quinhentos de um maço de Porto davam para uma tarde inteira, as aulas que se lixassem.
O livro acabava-se enquanto o diabo esfrega um olho e, no resto do mês, se um amigo não tivesse a generosidade de nos emprestar a Ana Karenina ou A Mãe do Gorki, só restava reler o que lá por casa houvesse.
A ilha do tesouro, por exemplo, pela quarta ou pela vigésima vez.
Agora vai-se ao supermercado e, à mistura com a alface e os camarões congelados, compra-se um Joseph Ratzinger ou um Miguel Sousa Tavares, assim reduzidos à dimensão das hortaliças.
Não foi o caso do Mário de Carvalho, mas quase.
Não demos por este O homem do turbante verde (Caminho, 2011) senão quando, ainda a digerir A arte de morrer longe (Caminho, 2010), deparámos com ele num centro comercial.
Lemos os dois primeiros contos, «O homem do turbante verde» e «Na terra dos Makalueles» e, francamente, o entusiasmo não foi grande. Admitimos perfeitamente que o Mário de Carvalho se divertiu a escrevê-los. Os mais sagrados deveres de um escritor, cremos, são para consigo mesmo e divertir-se, em calhando não é o menor.
Mas só com «A rua dos Remolares» ou «A secção de campo», para começar, nos sentimos a aderir - mesmo se com um travozinho a castigar-nos o riso.
E, entre o divertimento de «O celacanto» e o tal travo amargo de «A longa marcha», a decisão impôs-se: O homem do turbante verde é um livro para andar por aí, por cima das mesas, para pegar e ler umas páginas sempre que os discursos ministeriais ou o último Dan Brown nos agoniarem um pouco para além do costume.
6.
E pronto: ata est.
Nunca um post foi tão comprido neste blog. Safa!

quinta-feira, julho 28, 2011

Medidas de austeridade

Para agilizar a economia e emagrecer o Estado, o Governo decidiu privatizar as mulheres públicas.
-
- Concordo plenamente!
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segunda-feira, julho 25, 2011

Melro-preto comum, ao que dizem.

Turdus merula, v. L. 

O Guerra Junqueiro, não sem alguma soberba, afirmava que o tinha conhecido:
"O Melro, eu conheci-o: era negro, vibrante, luzidio..."
Mais ou menos como se eu chegasse aqui e escrevesse: «uma dia destes, em conversa com o Dalai-Lama...»
Ou mesmo pior: se numa roda de admiradores embasbacados eu atirasse: «Pois ainda o mês passado, a Amy, sim a Winehouse, me dizia: porreiro, pá... e pensar que a pobre rapariga já lá está, a dar contas ao Altíssimo... ah, vocês não sabiam que ela era muito religiosa?»
E pronto: lá ia eu por aí fora, inventando troca de mails, garrafas de Côtes du Rhône partilhadas noites fóra à mistura com risos e confidências.
Também o Guerra Junqueiro não se faz rogado, também ele era íntimo do Melro.
"Assim que o padre-cura abria a porta que dá para o passal" escreve ele, "repicando umas finas ironias, o melro, dentre a horta, dizia-lhe: «Bons dias!» E o velho padre-cura não gostava daquelas cortezias."
Tivesse ele ficado por aqui e, digo-o francamente, seria um soberbo poema, digno de um Alexandre O'Neill ou mesmo de um Mário-Henrique Leiria - e de mim, que não desdenharia de o assinar.
Mas não. Acrescenta-lhe mais uma centena, centena e meia de versos a puxar para o místico-sentimental e estraga tudo.
É como se eu, depois de insinuar uns mails trocados com a dita Winehouse e de acrescentar «mas pronto, coitada, não falemos mais dessas coisas íntimas, há que ter respeito pelos mortos», me pusesse para ali a acrescentar pormenores e historietas e mais pormenores e mais historietas até ninguém me poder ouvir, quanto mais acreditar.
Que eu, a bem dizer, também não acredito que o Guerra Junqueiro tivesse conhecido algum melro na vida. Viu-os a saltitar, ali na casa da Silva Carvalho, a Santa Isabel, que além das paredes e tectos pintados por um mestre francês tinha um frondoso jardim. Viu que era preto, achou que era "luzidio, madrugador, jovial" e pronto.
Sabia o mesmo que eu, que tenho aqui ao lado, numas silvas, uma família deles e os vejo aos pulinhos na erva lá para o fim da tarde.
Mas, ao contrário do poeta que só tinha umas sebentas lá de Coimbra e uns romances comprados em Paris, eu tenho a internet e, portanto, a wikipedia: e lá vou eu ver que o Melro, além de uma vasta parentela, também usa, para efeitos burocráticos, o nome de Turdos Merula.
Nada mau, tomara eu, o nome até tem ressonâncias aristocráticas, imaginem, por exemplo, Dom Rui de Turdos, marquês de Mérola. Os amigos sabedores destas coisa tratavam-me familiarmente por «o Mérola» como poderiam dizer «o Niza» ou «o Ficalho». 
Mas não: lá vêm as letrinhas pequeninas vL, para que não haja enganos. Tal como em Oxford, diz-se, se acrescentava a alguns nomes as abreviaturas s. nob. (sem nobreza, claro) para que nenhum aristocrata duvidasse de que se lhes podia pedir dinheiro emprestado e que não era preciso pagar, as ditas letrinhas querem dizer que o Merlo é um simples comum, que Lineu o considerava «vulgar».
E pronto, cá estou eu mais uma vez a embirrar! Há bocadinho era com o Guerra Junqueiro, agora é com o Lineu, vejam lá, pobres homens já tão falecidos.
Mas, que querem? Se um melro fosse assim tão vulgaris como ele diz, toda a gente os tinha (aos tais melros merula, claro), não era só a Ana Bacalhau dos Deolinda lá no quarto dela.
E sobre melros é tudo quanto eu quero dizer, excepto mais uma coisinha: mesmo snobe, mesmo sem Dom, acreditem, não me importava nada de ser um.

sábado, julho 16, 2011

Rui Tavares

Não é segredo nenhum que tenho sido eleitor do Bloco de Esquerda desde que ele apareceu.
Anos atrás já tinha contribuído para eleger um deputado, o primeiro que entrou em São Bento com o meu voto no bolso: chamava-se Acácio Barreiros e representava a União Democrática Popular.
A UDP, para os que não viveram estes eventos da pequena história (e, portanto, não conhecem as pequeninas histórias do que, na altura, eram os eventos) agregava um certo número de organizações políticas que se tinham tornado grupusculares.
Eram comunistas, claro, mas reivindicavam diferenças insanáveis com o PC de Álvaro Cunhal: acrescentavam às siglas dos seus partidos as letras M-L, regra geral entre parêntesis. Tipo, imaginem os mais jovens que não tiveram a dita de viver estas glórias, PPD-PSD (ML) ou mesmo o CDS-PP (M-L).
M-L queria dizer, naquelas cartilhas, «marxista-leninista», mesmo se nunca nos explicavam lá muito bem o que isto queria dizer. Ao que creio, rejeitavam as transformações por que passava a sociedade soviética na era que se seguiu à morte do Estaline. As suas bandeiras ostentavam orgulhosamente as efígies de Marx, Lenine, Estaline e Mao-Tsé-Tung e tomavam como modelo, já não a revolução russa, mas a chinesa.
Depois, as coisas vieram mudando, paulatinamente umas vezes, com estrondo outras.
Não sei se os tempos evoluiram, se involuiram, se a humanidade deu um passo em frente, se dois atrás.
O grande timoneiro da barca chinesa que já envelhecia muito retirado, morreu.
Em seu nome tinham-se feito coisas muito questináveis, e depois, contra ele fizeram-se outras.
Sem estes últimos grandes ideólogos, as nossas esquerdas vacilaram: caía o muro de Berlim, os Estados Unidos nomeavam um tal Boris Yeltsin para o Kremlin e Fukuyama achou que agora sim, o fim da História (coisa que se discutia desde o Hegel e do Marx) estava à vista.
Não houve cão nem gato que não declarasse mortas as ideologias.
Não sei se já por efeitos dessas orfandades, a UDP em que eu tinha votado fez um acordo com o PSR e com o Política XXI e formaram o Bloco de Esquerda.
Senti-me mais contente: esqueciam-se diferenças um tanto mesquinhas, eu sou marxista-leninista e grito vivas ao Estaline e tu levaste com uma picareta no toutiço porque és trotskista e por aí adiante...
Eu voltava a ter deputados.
Confesso: não esperava que eles representassem os meus ideais, porque tenho poucos e muitos simples e eles não têm de ser nenhuns Sãos Franciscos. Mas defendiam algumas coisas com que eu concordava, outras que não tanto, mas enfim, no mínimo mereciam que eu lhes confiasse o meu voto de protesto. E logo em 1999, com o século prestes a acabar, eu e, creio, muitos outros como eu, lá elegemos, pela primeira vez, o Luís Fazenda e o Francisco Louçã.
O resto do percurso é conhecido.
Chegámos a juntarmo-nos muitos e a ter dezasseis deputados. Agora alguns de nós optaram de modo diferente, só elegemos oito.
Não estou desiludido com o Bloco.
Esperava dele coisas acertadas, claro, mas também uma asneira por outra, a franca burrice de vez em quando. Foi o que aconteceu, obviamente.
Se algum de vocês pertence a um partido que sempre fez as coisas certinhas, que nunca errou e que, em calhando, nem dúvidas tem, então que lhe atire a primeira pedra.
Eu que não pertenço (nem pertenci, diga-se) a partido nenhum recuso-me a atirar nem que seja a última.
Não esperava, que estas minhas opções me conferissem quaisquer direitos.
Mas ando francamente intrigado.
Regressámos ao tempo do Estalinismo e das purgas internas?
Eu tinha um deputado de estimação no Parlamento Europeu. Não me importava que ele fosse independente porque, para mim e de mim, todos o são.
Leio com atenção o que escreve no Público e no seu blog. Considero sugestivas as suas propostas e gostava de as poder discutir uma vez por outra. Era activo, dava-nos parte do que ia fazendo, das pequeninas alianças em que entrava e por aí fora.
- Cá está, dizia eu para mim mesmo. - Um deputado assim é que eu gosto.
Li, já lá vai um mês pelo menos, que se desligara do Bloco em que eu costumava votar. E esperava que ao menos um dos seu dirigentes viesse a lume explicar-me, a mim, eleitor, que diabo se tinha passado:
Foi apanhado a conspirar para a compra de mais submarinos, a receber chorudos envelopes por baixo da mesa e, envergonhado, pediu a demissão?
Alguma jovem, tipo coelhinha do Playboy, inspirada pelos casos Dassange e Strauss-Kahn, apresentou queixas contra ele no Tribunal Internacional dos Direitos do Homem (das meninas, neste caso)?
Ou, caso muito mais grave ainda, esqueceu-se de alguma das obrigatórias vénias aos sacrossantos dirigentes e fundadores do Bloco?

segunda-feira, junho 20, 2011

Eram 137 irmãzinhas, todas vestidas de bronse...


- Está tudo parvo? A minha filha copiou o quê?




Palavra: se eu fosse o Pai de alguma das jovens estudantes no curso lá do Centro de Estudos Judiciários, já estava de advogado em punho a apresentar queixa por difamação, atentado ao bom nome, o que fosse.

Confesso: não é a possibilidade de uns quantos abusadores poderem virem a ser juízes o que mais me choca.

De há muito que estamos habituados a essa tolerância secretamente orgulhosa perante o «gajo que se desenrascou».

O que me choca é o desrespeito com que alguém estaria a tratar a minha filha.

Contra quem teria de apresentar queixa, logo se via, mas, por exemplo, contra o Expresso, que escrevia on line a seguinte coisa: "A Direcção do Centro de Estudos Judiciários atribuiu nota 10 aos 137 Auditores de Justiça que foram apanhados a copiar..."

"Aos 137 que foram apanhados", reparem.

Dir-se-ia, «tá bem, pá, é só uma notícia, que é que tem?»

Pois tem.

Se a minha filha estivesse entre eses 137 alegados auditores a fazer o exame, o meu advogado estaria a exigir ao Centro de Estudos a prova de que tinham sido exactamenete todos os 137 que realizaram o seu teste, nem menos um, a serem apanhados a copiar.

De facto, estarão os pedagogos do centro em condições de afirmar que não houve ao menos um que tivesse realizado honestamente o seu teste?

Não parece muito: fala-se em "copianço generalizado" - com uma impropriedade de termos realmente chocante vinda de quem vem - e afirma-se que a decisão foi tomada perante a "existência de respostas coincidentes em vários grupos". Noutro lado qualquer podia ler-se a espantosa declaração atribuída, erradamente, espero eu, a um tal Bravo Serra que, no mínimo mereceria o tratamento por Sr.: "desconhece-se ainda", terá ele declarado, "de que forma é que os alunos copiaram, se dentro ou fora da sala de aula..."

Dir-se-ia que o corpo docente daquela escola não sabe realmente grande coisa. Mas, pertencendo ao Ministério da Justiça, desgosta-me pensar que, sem provas, sem indícios fortes de que a minha filha tivesse de facto cometido essa indignidade, partissem logo para a afirmação peremptória de que "os alunos" copiaram. Em lógica nós aprendemos que «os alunos» é = «todos os alunos»; quando se quer dizer talvez não sejam todos - o que era uma dúvida, no mínimo, saudável - pode usar-se a expressão «pelo menos um», «uns» ou «alguns».

Ora eu não leio nada disso nos jornais.

Leio "os 137".

A minha filha, se lá estivesse, estaria irremediavelmente acusada de desonestidade, de ter cometido uma fraude num exame.

Alguém havia de a indemnizar: o CEJ, o Expresso, toda imprensa que cegamente escreveu «os 137».

Um euro simbólico para ela e para a família.

E um milhão que lhes ficasse de emenda a favor do Banco Alimentar Contra a Fome, por exemplo.

-


Nota:

Para que conste: não tenho filha nenhuma a estudar no CEJ. Não tenho mesmo, está bem?

terça-feira, junho 14, 2011

A inveja dos Deuses


Eu sei que não é bonito contar estas coisas, mas eu e o meu computador, vivendo em união de facto, tínhamos a relação quase perfeita.

Trabalhávamos juntos horas a fio, divertíamo-nos com coisas tolas inventando variações aos jogos do Windows, bisbilhotando a wikipedia, pulando de blog em blog.

Fazíamos um belo par de jarras, o meu portátil e eu.

Porque é que não se casavam, pergunta-me toda a gente.

Não sei, se calhar foi por causa da lei portuguesa que ainda discrimina este tipo de casos.

Ou então, quem sabe, apenas porque não havia sexo entre nós: questões de pudor, ele era um jovem notebook, cheio de vigor e de capacidade; e eu insisto em admitir, até para mim mesmo, no segredo dos meus pensamentos mais recônditos, que já vou tendo a minha idade. Nada nos proibia de irmos juntos àqueles sites, vocês sabem a que é que eu me refiro, e, enfim... mas não. Não tínhamos segredos um para o outro, mas, confesso, não conseguia rever-me na imagem com que ele iria ficar, por muito verdadeira que se tivesse tornado. O homem tem destas contradições, não é?

Os gregos, porém, tinham razão quando nos preveniam contra a inveja dos Deuses.

A minha relação com o pequeno portátil era demasiado perfeita e o que tinha de acontecer, pois aconteceu.

Estávamos a trabalhar juntos, já nem sei em quê, não queríamos fazer uma pausa sequer para o almoço e zás: a imprudência ocorreu. Um sandes para aqui, uma cerveja para ali, começámos a ficar um nadinha entornados - sobretudo a garrafa que essa se lhe entorntornou completamente por cima do teclado.

Não vos conto da aflição, do pânico; o meu companheiro com um último estremecimento escreveu umas coisas sem sentido e entrou em coma alcoólico e eu corri como um desesperado para a clinica dos PCs mais próxima. Leveram um mês a constatar o óbito.

Como qualquer companheiro sobrevivo nestas coisas, passei as longas noites do luto a recuperar, a pouco e pouco, os seus desenhos, os seus programas, os escritos que só ele guardava.

Agora para aqui estou, com um novo companheiro, mas há-de passar muito tempo até que seja a mesma coisa.

Acreditem.

quinta-feira, abril 21, 2011

Galinhas gordas


(Praça da Alegria, Lisboa)


-


A memória prega-nos belas partidas, sobretudo quando já levamos uns anos de vida vivida.


Lembro-me de ter lido algures nos jornais da época qualquer coisa acerca de uma série de pequenas fraudes que se tornavam possíveis com a cumplicidade do sistema bancário ou, pelo menos, de algum gerente mais distraído.
Chamavam-lhe, se a memória me não falha, a rotação dos cheques.
A ideia era a de que um fabiano na vila A podia efectuar pagamentos com um cheque dos balcões da vila B. Dado que tudo isto levava algum tempo, o cheque que aguardava boa cobrança era coberto por um terceiro, este por um quarto e quinto e por aí fora. As dívidas e os desfalques iam sendo escondidos desta hábil maneira.
Toda a gente lucrava.


O tomador do empréstimo, o devedor em vias de incumprimento, o contabilista habilidoso, todos mostravam uma actividade bancária notável, muitos pagamentos, muitos levantamentos, grande capacidade empresarial o que lhes abria a possibilidade de novos empréstimos. As filiaias dos bancos, os seus balcões mostravam também grande volume de negócios. As quotas que os administradores, directores e sub-directores, gente dessa, impunham eram ultrapassadas, os gerentes podiam sonhar com promoções que deixariam os problemas de eventuais créditos mal-parados para quem os viesse substituir.


A coisa só se complicava quando o novo gerente com mau-feitio, resolvia desconfiar, quando alguém parava o cheque não aceitando a duvidosa cobertura.


Vista assim, sem as subtilezas que financeiros e advogados certamente inventaram, parece uma fraude grosseira.
Mas grosseiro pareceu também o caso da Dona Branca, lembram-se, depois do escândalo já rebentado. E, mais ao alcance da memória dos distraídos, quer pela dimensão, quer por ter vindo da mítica Wall Street, as do espantoso Bernie Madoff.


Por muito grosseiras que sejam as fraudes, como o bilhete premiado da lotaria, há sempre gente que cai, há sempre gente que as aceita porque tem vergonha da sua própria parvoíce.
- Não, garantem eles, até no tribunal se preciso fôr. - O investimento era bom. Correu mal, foi o que foi.


Outras calam-se: sempre souberam que os montes de dinheiro que iam recebendo enquanto durou, provinham das poupanças de outros.


Um nosso conhecido, para dar um exemplo, investidor da Dona Branca que «perdeu» dois mil contos - era dinheiro, nessa altura - contou numa roda de amigos que, só em juros já tinha tirado três mil e tal quando a velha senhora faliu.
- Vendo bem, acrescentava, descontando o dinheiro que lá ficou, ganhei mais de cinquenta por cento ao ano.
- E sabias que a Dona Branca tinha de ser aldrabice, pá? - perguntámos nós.
Ele hesitou.
- O meu Tio - acabou por dizer - trabalhou toda a vida, comprou, vendeu, ganhou bastante dinheiro. Mas uma das coisas que ele dizia é que não há galinhas gordas por pouco dinheiro. Se ta quiserem vender, é roubada. Lembrei-me dele montes de vezes, pá. Dez por cento ao mês, que era o que a velhota pagava, nem que ela tivesse uma máquina a imprimir notas de mil toda a noite.


Percebemos.


E percebemos também que estes esquemas funcionam na política... ou naquilo que passa por sê-lo.


A maioria dos eleitores dos partidos do governo detestam ter de admitir que foram levados pela simpatia ou pelo ar austero dos primeiros ministros. Os dos partidos da oposição, que se deixaram levar pelas promessas, pelas suas próprias esperanças. Os outros, mesmo reconhecendo a qualidade ranhosa das governações, defendem-nas porque, afinal, pessoalmente foram tirando bons proveito disso. E a má consciência fá-los proclamar alto e bom som que a política é mesmo assim, que é tudo uma choldra e que, «meu filho, a democracia e essas coisas, é tudo muito bonito, mas se não fores tu a safar-te, ninguém te safa.»


E o esquema da rotação dos cheques aí está.


Os bancos vivem dos empréstimos, o Estado, da obra feita. Os bancos emprestam ao Estado, assumem riscos que o Estado garante, o Estado vai inventando novas Otas, aeródromos, auto-estradas, o dinheiro gira, conta uma vez como dívida, outra como pagamentos, os cidadãos que receberam os seus dinheiritos fazem por sua vez dívidas, os pequenos empreiteiros a quem o Estado ainda não pagou fazem mais dívidas, a contabilidade de tudo isto é impressionante, o dinheiro parece jorrar.


Confesso: mesmo não percebendo nada de finanças nem de economia, dá para perceber que tudo isto assenta na palavra dos governantes e dos governadores. Os primeiros afirmam nas televisões que o país cresce, os segundos afirmam que os seus bancos estão florescentemente sólidos, o Estado garante a solidez das dívidas, a banca distribui lucros aos accionistas, prémios aos seus funcionários. Toda a gente está feliz, o utilizador das SCUT porque, enfim, tem uma estrada de jeito, o funcionário do banco troca de carro, a boutique vende mais um vestido, um jovem casal compra um T2 em prestações que lhe vão levar metade do que ganham.


É claro, nem tudo serão rosas: a gasolina aumenta. O IVA sobe. O IRS vai tendo cada vez menos descontos. As prestações sociais vão deminuindo, porque quem cabritos vende e cabras não tem, de algures lhe vem.


E de onde senão do bolso do contribuínte? O tostãozinho do pobre é pouco, mas quem o perde é louco, pensam os ministros das Finanças.


E se alguém, por exemplo, a falência da Enron, do Lehman Brothers, uma crise internacional, uma coisa dessas, de repente parar esta cadeia de cheques sem cobertura?


A crise do petróleo, em 73, derrubou Marcello Caetano e o Estado Novo. Esta agora, sabe Deus o que fará.


Pois: mas são tudo coisas que se não podem prever.

terça-feira, abril 12, 2011

Info-excluído

Um dia destes conto as minhas aventuras com um PC presumivelmente alcoolizado, prometo. Agora... ainda não consigo.

quinta-feira, março 31, 2011

II centenário de Kleist


Pensar, reflectir

- o que lhe queiramos chamar quando,

partindo de imagens e esquemas,

perseguimos os conceitos -

é um hábito que tem tanto de absolutamente necessário

como de pernicioso.

(Eu, em dia não)

-

Transcrevo, com a vossa licença, de um caderno já muito antigo:


"Ouvido durante a conferência do [Professor Doutor] Carmo Ferreira no D. João de Castro:

1810 (1) - o sucídio de Kleist. Motivo: Não há verdades absolutas, só há verdades condicionadas à nossa intuição sensível.

A Metafísica como uma amante arisca para Kant.


A paixão move-nos para ela, não podemos viver sem a Metafísica e, no entanto, ela não nos gratifica, comporta-se como uma ingrata. A Metafísica é a ciência dos limites da Razão e, ao apaixonarmo-nos por ela, apaixonamo-nos pela fronteira do não-mais-além.


A Razão kanteana é, assim, sentimento.

Sente a carência de totalidade, capta a insuficiência, o interesse move-a, é a razão da razão que, no entanto, como uma outra traição, apenas se interessa por si própria. O interesse (ou a paixão, ou o sentimento) e, no entanto, o único acesso para o outro, para a alteridade. A razão reduz o outro a objecto submisso às condições a priori, ao espaço, ao tempo, às categorias, ao mundo, irremediavelmente aquilo fenoménico, númeno inatingível. O interesse, no entanto, instância última e fundamento, lugar do não-recuo, sentimento prático, leva-nos ao outro, indivíduo, identidade, gozo enquanto conhecimento e acção.

E a Metafísica? É a decepção, tripla decepção porque nada nos diz e nos reenvia à fé, porque a lei moral não é eficaz por si mesma e, enfim, porque o máximo que a Metafísica nos diz é que tudo se passa como se...

De onde a morte decepcionada de Kleist.

-

Que devemos então esperar?

A resposta é tautológica: devemos esperar a esperança, que é agir, arriscar.

A recompensa para isto é parca, respondeu Kleist. Para Kant, a recompensa, a plenitude, vem do Belo. E Belo, verdadeiramente Belo, é o rosto do outro quando age livremente."




(1) De facto em 1811. Erro meu, decerto, ao tomar os apontamentos.

sexta-feira, março 25, 2011

Um quê?

Pois. É um caucus, ao que dizem. Ainda não sabemos muito, só o que vamos lendo.

Por exemplo, aqui.

terça-feira, março 22, 2011

O Burro de Buridan ou Os preços dos combustíveis!


Vocês conhecem esses mails tremendistas que circulam na net, uns a dizer mal do Governo, outros com vistas de Paraty?
As vistas de Paraty é como o outro.
Pronto, a gente apaga logo se está com muita pressa. Se não, até passa uns minutos entretido - sem pensar que foi um tempo gasto sem grande proveito.
A dizer mal do Governo ou «desta choldra», isso já pode merecer uma atenção mais cuidada.
Hoje, por exeplo, recebi dois que me mereceram uns momentos de reflexão, não sei se inteiramente pela positiva...
-
Um deles era sobre a candidatura à carreira judicial de um réu no processo da Casa Pia de Lisboa.
Os crimes por que estes réus todos estão a responder é particularmente repugnante, talvez porque tudo o que envolve maus tratos às crianças incomoda particularmente quem é mãe ou pai, avó ou avô.
Eu próprio devo dizer aqui já: detesto pedófilos.
Mas reconheço: é um defeito meu porque sei que se trata de uma patologia de dificílimo contrôlo, tanto pelo próprio doente como pela sociedade. Que fazer com um pedófilo? Condená-lo à morte? Nunca, claro. Recuso uma sociedade que se arroga o direito de matar, seja em que caso for, não que o criminoso não o merecesse eventualmente: mas nós, cidadãos vulgares, ou eu, pelo menos, recusamo-nos a matar de volta.
À prisão perpétua?
Castrá-los quimicamente?
Há dados que permitam fazer a avaliação das consequências de cada uma destas opções? Duvido muito.
Dito isto, o que me espantou no dito mail foi o tom exaltado com que se condenava o Centro de Estudos Judiciais ou o que fosse, por admitir um desses réus no curso de formação para a carreira judicial.
Note-se, e o próprio mail o dizia, o dito réu, por ter um doutoramento reconhecido pelo estado português, tinha acesso automático ao dito curso de formação sem passar pelas provas de admissão que, de costume, são bem severas.
Que desejava o autor do mail que se fizesse?
Que se impedisse um cidadão que tem a sua candidatura de acordo com a exigências legais de ser admitido? Com base em quê?
A pedofilia - uma condenação moral fortíssima, concordo - não está ainda, de modo algum, estabelecida. Não há ainda, tanto quanto julgo, uma sentença definitiva. Até ao momento da condenação, com trânsito em julgado - ou coisa que se lhe assemelhe em linguagem de advogado - até à altura em que, já sem possibilidade de recurso, ou não o tendo exercido, o réu é declarado culpado, ele é um cidadão como outro qualquer, um presumível inocente.
E com que direito o Centro de Estudos Judiciários eliminaria um cidadão inocente dos seus concursos? Nenhum, não é?
Ou então, prescindiremos do Direito.
Provavelmente, o autor do exaltado mail é como o burro de Buridan: está indeciso.
Por um lado, a sua exaltada moral.
Por outro, o seu desejo de viver numa sociedade que não permita que ele próprio, um dia destes, seja condenado seja a que for com base em simples suspeitas ou até mesmo sem elas.
Ou não será assim?
-
O outro mail era igualmente interessante.
Todos nós estamos fartos de refilar por causa do preço dos combustíveis. E, quando o dito mail nos chama a atenção para os preços do gasóleo, por exemplo, no Egipto (14 cêntimos) ou na Arábia Saudita (7 cêntimos), sinceramente, eu fico impressionado.
Mas, logo reparo que, por exemplo, que no Brasil, segundo o mesmo mail, o mesmo gasóleo já custa 54 cêntimos e que na China, outro país dito emergente, a gasolina anda pelos 45, mais ou menos a par com os Estados Unidos.
Reparo também que não são os países mais famosos pelos seus mecanismos de protecção social, quem tem os preços mais baratos: veja-se a Swazilandia, por exemplo, onde se vende a super a 10 cêntimos, ou a própria Líbia onde, antes destas revoltas, supõe-se, o diesel custava 8 cêntimos: tudo informações do próprio mail, é claro.
Por cá, há algumas diferenças a considerar.
A Europa do pós guerra de 1939-45 apostou fortemente nas reformas dos trabalhadores, nos hospitais, na assistência na doença e no desemprego.
Foi uma opção que nós, portugueses, não só imitámos a partir do 25 de Abril, como temos validado em todas as eleições, desde que o pudémos fazer.
E a manifestação do dia 12 deste mês, lembram-se?
Mais coisa, menos coisa, foram 300.000 pessoas na rua, em apoio dessa opção.
Fica-nos a dúvida: que queriam provar os autores do dito mail?
Que preferiam eles?
O gasóleo ao preço da uva mijona e os nossos velhos a morrerem ao abandono? As nossas crianças sem escola? Os doentes à porta de um hospital que os não recebe porque não têm dinheiro?
Duvido.
São, também eles, como o burro do Buridan. Entre duas coisas igualmente boas, também não conseguem escolher.
Ou conseguem e, afinal, não passa de mais um ataquezinho sôfrego ao Estado Social?

terça-feira, março 15, 2011

E Almaraz aqui tão perto!

- Começo a perceber porque é que eles diziam que small is beautiful...



sexta-feira, março 11, 2011

Pois, tem razão...

O Portugal, caramba! compreende que nem toda a gente tem vontade de ir amanhã à manif, mas que não deixa de sentir um certo peso na consciência por causa disso.
Como não quer ver ninguém sofrer, decidiu oferecer aqui, de borla e sem necessitar de citar a fonte, quatro desculpas já prontas a usar.
Que as aproveitem e que gozem o seu sábado com saúde é o que o nosso blog lhes deseja.

quinta-feira, março 10, 2011

terça-feira, março 08, 2011

Dias internacionais...

- Como?


- Dia Internacional de quê?


- Meu. Nosso.
Só desejo às mais jovens que não percam nada do que a minha geração conquistou.
E que obtenham mais qualquer coisa, pelo menos.
A alegria, por exemplo...

quarta-feira, março 02, 2011

Kadaffi


Não tenho qualquer simpatia pelo Kadafi, confesso. Mas confirma-se: «quando o cão é danado, todos lhe atiram pedras».

terça-feira, fevereiro 22, 2011

Bertrand Russell

Russell entrou nas nossas jovens vidas, quem sabe se pela pior das razões.
O seu livro Porque não sou cristão, lido às escondidas na edição brasileira, não terá tido o impacto que merecia e a razão é simples. Não o lemos como a defesa de um racionalismo coerente e algo radical, mas unicamente como uma contestação aos senhores padres de Religião e Moral, aos nossos pais, ao salazarismo tacanho que atabafava a nossa irreverência sem nada nos dar em troca.
As organizações de juventude estavam severamente controladas: os Escuteiros praticamente nas mãos da Igreja, a Mocidade Portuguesa que nos obrigava a uma preparação militarizante e a saudar de braço estendido, como as juventudes hitlerianas, era obrigatória nas escolas.
Por todo o lado era o discurso patriótico, anti-comunista, contra a dissolução dos costumes e pela virgindade das meninas que eram noivas e irmãs, puras como Nossas Senhoras.
Claro, o episódio da ilha dos amores tinha sido cortado na edição escolar d'Os Lusíadas e nós íamos lê-lo na edição de algum mais afortunado.
E depois começou a guerra.
A fé e o Império, as grandes navegações que fizeram os nossos maiores e, por isso, Angola é nossa e resto também.
Lá foi a nossa juventude, de espingarda às costas, para as colónias, com a benção da Igreja, para defender a civilização cristã e ocidental.
Estávamos fartos das grandes palavras.
-
A literatura «lá de fora», sobretudo a francesa, abriu-nos para outros pensares: lemos tudo, desde a Françoise Sagan ao Sartre, do Roger Martin du Gard até ao Claude Roy.
E o Bertrand Russell conduziu alguns de nós, pelo menos, ao pacifismo; compreendemos que uma civilização, por muito cristã e ocidental que fosse, se assentava a defesa dos seus valores na esquadra americana e nos arsenais nucleares, não valia grande coisa.
Orgulhosos, começámos a usar o emblema do seu movimento contra a bomba atómica. Era um círculo branco sobre fundo preto, com um diâmetro vertical, norte-sul, e as direções sudoeste e sudeste assinaladas a branco também.
Os mais velhos olhavam para nós com alguma melancolia.
Ao ver-me com o vistoso emblema, o Pai de um dos nossos amigos contou uma história dos tempos em que a Espanha estava em Guerra - dita civil porque o exército estava quase todo do lado dos revoltosos e do lado do Governo livremente eleito só estavam os civis. Daqui de Portugal ia todo o apoio para a causa dos generais: o major Botelho Moniz, com os seus viriatos, claro, mas a prisão e a entrega de refugiados na fronteira, a colaboração entre polícias, comida e armas, de todos os modos que o regime em Portugal podia apoiar a revolta.
Aos anti-franquistas portugueses, platónicos apoiantes da República Espanhola, restava o uso de um emblema da AEG quando o podiam arranjar.
Vale a pena recordar que a AEG era uma enorme multinacional alemã, ligada aos equipamentos eléctricos. Em 1936, quando eclodiu a revolta dos militares em Espanha, de certeza que estava a trabalhar para o Hitler, o mesmo que, de imediato, enviou a «divisão condor» a apoiar Franco.
Parecia contraditório.
Porém, para os iniciados, AEG não significava Allgemeine Elektricitäts-Gesellschaft, mas sim, em portunhol, Arriba Espanha Governamental. Para a polícia política de Salazar, valia o equívoco.
- Mas - concluiu o Pai - nós reconhecíamo-nos uns aos outros.



Muito mais tarde, na Faculdade, para lá das aulas e das orientações ideológicas, deparei-me com a obra de Russell.
O positivismo e depois o positivismo lógico tiveram um importante papel no pensamento filosófico em Portugal, pese embora aos integralistas e saudosistas. Porém, depois de Vieira de Almeida se ter reformado e de o curso de Filosofia em Lisboa ter levado a volta que levou, descobrir a escola de Viena, o empirismo lógico e coisas dessas, era uma lança em África para os alunos.
Conhecia já o livrinho - que de «inho» só tem o tamanho - de 1912, Os problemas da filosofia, editado em Coimbra, com tradução de António Sérgio.
Um dia porém, em 73, meses antes do 25 de Abril, encontrei, sei lá por que milagre, An inquiry on meaning and truth, na edição francesa da Flammarion, discretamente entalado nas estantes da Livraria Universitária, ali ao Campo Grande.
Toda esta época do meu percurso é confusa. Julgo que andava já às voltas com Wittgenstein, quando tentava escrever a tese de licenciatura e lembro-me de ter devorado o ensaio do Russell como um bulímico a engolir pastéis de nata.
Juro-vos que não consegui abarcar nem metade de metade.
Mas ficou-me a saudade de qualquer coisa que não tinha tido e que não poderia vir a ter nunca mais: gostaria de me ter sentado lá atrás, num anfiteatro, talvez em Cambridge, talvez nos States, escudado pelo meu caderno e pelos meus desenhos, a ouvir as aulas de Bertrand Russell.
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O Guimarães Rosa, num dos contos de Sagarana, creio eu, diz uma coisa interessante, mais ou menos assim:
"Quem sabe se, algures, num país onde eu nunca fui, e onde não irei jamais, existe a mulher ideal, a minha alma gémea..."
E pimba! O narrador desse conto resolve casar-se com a prima.
Eu, modestamente e à minha maneira, confesso que discordo.
Um dos meus maiores pecados, digo eu, pelos quais terei de dar contas um dia, foi nunca ter partido à procura dessas coisas excepcionais, desse quadro, dessa pequena escultura, desse Maio de 68, dessas Brigadas Internacionais em que combateu o Orwell, desse professor que me poderia ter ensinado aquilo de que talvez nem faça a menor ideia.
Não é um verdadeiro desperdício?

sábado, fevereiro 19, 2011

sexta-feira, fevereiro 18, 2011

segunda-feira, fevereiro 07, 2011

Que parvos que somos


Há quanto tempo não tínhamos assim uma canção de protesto, daquelas que vão direitas à mouche, quer dizer, canções que, de repente assumem o sentir colectivo?
Dantes iam surgindo umas que a gente cantava sentados nos degraus da faculdade, tipo:
«Canta, canta, amigo canta, vem cantar a tua canção, tu sozinho não és nada, juntos temos o mundo na mão...»
Ou então, acontecia, perguntarmos «ao vento que passa, notícias do meu país. E o vento cala a desgraça e o vento nada me diz...»

Agora que estamos entregues a
comentadores-mais-ou-menos-comendadores, à sua comenda e bebenda assentados, até corremos o risco de acreditar que a política do pleno emprego e a da educação universal foi errada e que num país de mão de obra escrava os escravos refilam tanto menos quanto menos estudarem e assim deve ser.

Sim, a culpa é dos Robertos Carneiros e dos Marçal Grilo - vá lá que são estes - alegadamente por esquecerem que a educação vai a par com os estudos de mercado.

Tomem lá, que a canção dos Deolinda é "a resposta, e uma boa resposta" à vossa "'prioridade das prioridades'" (VPV, em 5/2 dixit).

Ah, comendadores, comendadores!

Que parvos que somos...