segunda-feira, março 30, 2009

E que temos nós com isso?

O facto em si, tal como o relatava o El País de ontem, não tem grande interesse: Estefania, que nasceu rapariga, transformou o seu corpo de acordo com o género a que desejava pertencer e tornou-se no Rubén.
Até aqui, nada de novo.
Como é próprio dos jovens, o Rubén, apaixonou-se por Esperanza, uma senhora um pouco mais velha e, de casa e pucarinho, decidiram ter um filho, tal e qual como qualquer outro casal que por aí ande.
O invulgar da história é que Esperanza, que é já mãe de dois filhos, não pode ter mais. E bom, como em qualquer casal, quem engravida, é aquele cujos órgãos femininos se encontram funcionais - num casal tradicional é a mulher e pronto, não se fala mais nisso.
No caso vertente, porém, quem tem um útero funcional é o Rubén que, por via da mudança de género, desempenha um papel masculino, ou seja, é um homem.
Não sendo muito usual, no fundo, se pensarmos bem, é lógico.
O que levanta algum problema, são as declarações de um tal Dr. Ballescà, ginecologista e responsável, diz-se, por uma unidade de Andrologia reprodutiva em Barcelona.
"Pelo facto de que esta gravidez seja tecnicamente realizável" diz o médico, "não se segue que seja eticamente aceitável."
E nós concordamos. De "A" ser possível, não se pode concluir o seu valor ético. A bomba atómica é um bom exemplo. E uma menina de doze anos ou mesmo de onze pode «tecnicamente», se a palavra aqui tiver cabimento, engravidar. O que segue é que essa gravidez possível é altamente indesejável e eticamente inaceitável.
Porém, continua o ginecologista: "A intervenção de mudança de sexo deve ser total, o que acarreta a extirpação dos ovários!" E acrescenta: "És una contradiction".
De facto: um homem é um homem e um gato é um bicho. Mãe há só uma e, por definição, um pai não tem ovários.
Ora, neste caso insólito, a figura paternal vai ser a mãe. E o cônjuge da mãe (que costuma ser o pai, mas não sempre) vai ser a figura maternal. É confuso, não é?
Imaginem o pobre conservador do registo civil lá do sítio:
- Mas, então...? E eu escrevo o quê? ... E escrevo aonde?
Se for um daqueles que também por aí andam, há-de deitar as mãos à cabeça e sair pela porta fora aos gritos:
- Contradição! Contradição!
Já não havia estações, chove e faz frio em Agosto; nas estâncias de Inverno, em vez de esqui, tomam-se banhos de sol. Os bancos que costumavam emprestar dinheiro às pessoas e viviam disso, agora pedem dinheiro ao Estado e não se percebe de que é que tencionam viver quando a economia for para as urtigas.
E, para cúmulo, os pais armam-se em mães e decidem ser eles a ter os filhos.
Eu, por mim acho que é um escândalo! O Dr. Ballescà, se calhar também. E o Sr. Papa, mesmo se ainda não se pronunciou, vai uma apostinha em como também vai gritar «contradição, contradição?»
E porquê? Alguém nos deu o direito de nos metermos onde não somos chamados?

domingo, março 22, 2009

Subsídios para o Livro de Aka (XIV)

- O essencial, sabes, continua a ser invisível para os olhos - disse a raposa. - O problema é saber como podemos torná-lo visível.
Aka fez que sim com a cabeça.
- Os cientistas, por vezes, usam os microscópios.
- Pois. Mas encontram essências muito, muito pequeninas.

O Nó cego, o Nó górdio e as cortinas piedosas

Carlos Vale Ferraz,
Nó Cego, 1982
4ª. Ed., Casa das Letras, 2008

-


1.
Nó cego é um romance perturbador.
Desde logo, porque se lê de um fôlego. E depois, porque, caso raro na literatura portuguesa que eu conhço, se trata de uma epopeia a que não falta sequer o episódio da ilha dos amores (Cap. 6, Na ilha do sonho).
N'Os Lusíadas, ensinavam-nos os mestres, o herói, ao contrário da Eneida, é colectivo. (Com as maiúsculas obrigatórias:) é o Povo Português. Em Nó cego, mais discretamente, é apenas uma companhia de Comandos.
Numa linguagem de cuidadosa simplicidade, o que se narra são as aventuras e desventuras daquilo a que se chamará, creio, o seu «espírito de corpo».
Um Capitão, uns quantos Alferes, cento e poucos homens que a uní-los tinham apenas frases: o comando não tem fome nem sede, o comando não deixa os seus para trás, o comando mata em silêncio...
Nem todos eram anjos, decerto, e Carlos Vale Ferraz não o tenta disfarçar. As referências ao passado de jovens milicianos, de soldados provenientes de meios muito diversos, dão-nos o retrato dessa diversidade bastante menos do que inocente.
Uma «puta de companhia!», como a define o próprio Capitão, a consciência do colectivo. «Paneleiros, chulos, ladrões, seminaristas, filhos-de-família, vadios e ando eu a bater-me para manter esta merda junta!» (pag. 311)
Gente normalíssima, no fundo, num país que se pretende de brandos costumes, mas que, deixada à solta, mata velhos e crianças, viola mulheres e tortura prisioneiros antes de os matar também.
Vale Ferraz narra como se foram tornando num bando de criminosos de guerra para quem, a começar pelos oficiais superiores, e a acabar nos soldados, «a Convenção [de Genebra] não passa de uma hitória de fadas», como explica o Capitão a um guerrilheiro capturado: «Para o meu Governo vocês são terroristas, e eu sou o senhor absoluto da tua vida.» (pag. 323)
2.
As epopeias guerreiras costumam ser trágicas: o guerreiro que enfrentou com bravura a morte em combate parte para o Valholl de Odin onde o espera o combate final e o fim do mundo.
Também Nó cego acaba com a morte do herói.
A companhia de comandos é desfeita no fim do romance, os soldados, após o combate pela tomada da Base Gungunhana da Frelimo, estavam «de rastos», já não era possível levá-los «a lado nenhum».
"- Não são peças velhas de um motor que gripou", argumentava o Capitão. "- Ao menos, deixem-nos juntos a jogar às cartas ou à pesca, não nos espalhem cada um por seu lado..." (pag. 345)
Mas eram.
A Companhia foi desmantelada como se não passasse de uma Berliet avariada, reduzida a um esqueleto à beira do aquartelamento. Canibalizaram-se as peças que ainda podiam servir, uma condecoração aqui, uma promoção acolá.
Significativamente, a sua consciência, espírito de corpo ou alma, como se queira, representada pelo seu Capitão, termina num apartamento no Algarve, o paraíso possível para os guerreiros dos nossos tempos. Lá esperarão pelos novos combates porque não há outro destino para eles.
3.
Nó cego é uma parábola incómoda.
Primeiro porque como que nos culpa da morte daquele corpo.
Não importa se o «General K», «comandante-chefe de Moçambique» tinha sido ou não um responsável daquelas guerras. Assumindo que se tratava de Kaulza, um dos homens que denunciou a tentativa de golpe de estado ou de pronunciamento militar, como se queira, de Botelho Moniz, então ele foi um dos grandes responsáveis pelo desencadear de todos aqueles massacres que ficaram por julgar e que Vale Ferraz, discretamente embora, não oculta. «K», no romance representa a sinuosidade do político que usa os seus homens exclusivamente para os seus próprios objectivos extra-militares e que os trai logo que, como um velho motor, deixam de ser manejáveis. Não representará «K», para o autor, a própria Pátria?
E a parábola incomoda ainda, em segundo lugar, pelos valores que apresenta. Nós sabemos que a traição não é bonita; mas a Companhia que foi traída, também não o era.
Para recordar um só exemplo, a pags. 211 e 212, Vale Ferraz narra um episódio provavelmente verdadeiro, porque, com variações ainda menos dignificantes, à altura foi contado por todo o lado, pelos soldados que iam voltando. Trata-se da emboscada do soldado Lopes:
"Atirou-se de faca de mato na mão, «o comando mata silenciosamente», sobre um novelo de gente caída no chão. Exibiu diante dos olhos o punhal com a lâmina vermelha de sangue, «um punhal de comando», voltou a enfiá-lo no corpo de uma negra, depois no «manacho» de quatro ou cinco meses que chorava agarrado à mãe morta.
- Que estás a fazer?
O Lopes fitou, espantado, o capitão. Baixou os olhos para o cabo da faca, ainda espetado nas costas da criança, e respondeu:
- Estou à procura do coração, a mãe está morta e ele berra muito alto, meu capitão."
4.
Aqui, no Portugal, Caramba! somos pacifistas quêbê, anti-militaristas tanto e tão militantemente quanto podemos.
Sabemos que, como diziam as canções de antigamente,
tant qu'il y aura des militaires, soit ton fils, soit le mien,
il y aura jamais sur terre pas grand chose de bien,
pas grand chose de bien ... (1).
Infelizmente, poucos anos depois de composta esta canção, a II Guerra mundial, como ficou a ser conhecida, havia de provar à saciedade que os pacifistas sabiam do que falavam. A Guerra de Espanha, ali mesmo ao lado, com os seus viva la muerte, era um bem triste exemplo.
Infelizmente, ter razão não serve para nada.
A maioria dos anti-militaristas, dos opositores aos planos bélicos quer de um lado, quer do outro, acabou mal. Fuzilados uns, em Belsen ou Dachau outros, podemos supor que bastantes, atirados para a Sibéria e muitos, muitos fugidos, exilados, perseguidos nos empregos, nas suas vidas.
A guerra é o mal absoluto.
Mas há sempre alguém, um militar armado em político, um político que se julga militar, pessoalmente muito boa pessoa até, que finge ignorá-lo. Chorará a necessidade imperiosa, o dever de consciência de a desencadear. E os demónios da guerra serão soltos. Seguir-se-á o habitual cortejo das destruições, da violência gratuita, dos danos colaterais.
Se for o chefe de um país vencido, ou pequeno, ou pobre, poderá ser acusado perante um tribunal qualquer, politicamente correcto que perseguirá Sérvios e esquecerá Bósnios. Se for de um país grande e rico, concederá a imunidade às empresas de segurança que lhe fornecem mercenários, ignorará massacres e desmandos dos seus próprios soldados.
Portugal, que não era grande nem rico, apenas como um capataz defendia riquezas de que não beneficiava, envolveu-se em várias guerras simultâneas, contra os povos de quatro das suas colónias: Angola, Moçambique e, embora com uma frente única na Guiné, os Caboverdeanos também ali lutaram pela sua independência.
Mas ninguém foi julgado.
É ao Capitão da companhia que cabe, uma vez mais, em conversa com o médico, tirar a moral da parábola:
"- O mal é esta ser a guerra do vocês. Ninguém a considera sua. É filha de pai incógnito.
O médico riu-se.
- É uma guerra filha da puta." (pag. 138)
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(1) Não foi exactamente assim que Rosa Holt, poetiza alemã anti-nazi, a escreveu em 1935. Mas foi assim que eu a aprendi trinta anos mais tarde. Como há quem considere uma perda de tempo saber francês, aqui fica uma tradução mais ou menos aproximada:
Enquanto houver militares, seja o teu filho, seja o meu,
Nunca há-de haver na terra coisa alguma de jeito.
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sexta-feira, março 20, 2009

Nuno Bragança, Obra Incompleta

"Ah, tio Nietzsche: a duplicidade profunda e desprezível do «cristianismo» histórico - que tentou, tenta e tentará, meter o Rossio do Sagrado na Betesga do Poder mundano: Canossa abriu caminho aos católicos deicidas. Tio Nietzsche: tu só passaste a certidão de óbito."
(Nuno Bragança, Directa, Obra Completa,
Dom Quixote, 2009, pag. 379)


"O homem experimentou o funcionar do V0lkswagen encarnado fazendo slaloms por entre os outros veículos. Ele sente a cidade a apertá-lo como um polvo. [...] Pensa: «Nasceste sozinho como todo o puto, vais morrer sozinho como todo o homem. Qual é a novidade?»

Ib, p. 354

Não é, visivelmente, a obra completa, mesmo considerando que se restringe aos anos que vão de 69, ano da publicação de A noite e o riso até à morte do Nuno Bragança.

Estou firmemente convencido de que estará para sair um segundo volume, talvez com o restante da obra literária se, por exemplo, no Jornal Encontro, da então Juventude Católica, houver outros textos a pedirem urgentemente para serem recolhidos.

Mas, o Nuno Bragança foi ainda colaborador de jornais, escreveu crónicas, por exemplo, para o Jornal do Fundão. E os textos com que colaborou na revista O Tempo e o Modo, de que foi um dos fundadores? Certamente que merecem publicação aos olhos da renovada Dom Quixote. Não posso crer que a Editora, que pertence agora a um mega-grupo editorial (daqueles de que fala o João Aguiar em O priorado do cifrão?) se limite a aproveitar o que está mais acessível para fazer um lucrozinho fácil.

Se está encommendado estudo sério sobre todas essas escritas e se a Dom Quixote tenciona publicar esse livro - pelo qual nós lhe ficaríamos eternamente gratos - então porque não decidiu a editora escrever honestamente que neste primeiro volume se coligia apenas a obra literária? E porque não se anuncia desde já o adiantamento que leva já esse estudo e, vá lá, uma estimativa do tempo que demorará?

Posto isto: já foi bom que alguém se tenha lembrado de reeditar aquilo que já não era fácil encontrar pelas livrarias e alfarrabistas. O resto, paciência, irmãos: um dia há-de chegar.

quinta-feira, março 19, 2009

sexta-feira, março 06, 2009

Still looking for Aka II

Aka achou engraçada a instalação feita de pequenas peças de mármore, vidro e metais e deu um piparote numa bolinha que partiu pelo tabuleiro fora fazendo vários plins.
- Desculpa ter-te estragado a teia - disse ela à aranha pequenina que fugia espavorida das peças em movimento.

terça-feira, março 03, 2009