sábado, março 31, 2007

O cão que jogava xadrez (2)



Parece que Deus quis, por isso, senhorinha, cá vai:

O primeiro impulso foi fechar a porta. O Carlinhos sabia que os bichos têm cheiro, a Mãe (e sua Tia, como já sabe) andava sempre a dizer que o gato da vizinha de cima deixava as escadas empestadas, mas, pomba! nunca tinha visto (cheirado) nada como aquilo. Ainda com a mão no ferrolho reflectiu: queria um cão que jogasse xadrez e que não se importasse de ser aspirado para não deixar pelos na alcatifa ou não queria?

Fechou a porta atrás de si e avançou uns passos. As gaiolas feitas de rede iam até lá muito em cima, empilhadas umas nas outras, entaladas num emaranhado de escadas e passadiços que faziam lembrar as histórias do Homem-Aranha e de todos os lados surgiam as pontinhas pretas ou rosadas de focinhos de cães que ganiam, ladravam ou uivavam. nas jaulas que ficavam à altura dos olhos, os canitos pretos, brancos, malhados ou castanhosabanavam furiosamente os rabos e perguntavam:

- Sabes onde é a minha casa?

Ou então:

- Sabes dos meus donos?

Outros ainda, só queriam que ele lhes dissesse como é que se saía dali.

- Tu também vens para cá? - perguntou uma magrizela com o focinho embranquecido, a segurar-se com as unhas à rede da gaiola de baixo, num esforço para o cheirar.

O seu Primo (o Carlinhos, claro) pôs-se de cócoras para a ver melhor.

- A minha dona, logo vem-me buscar - informou da jaula ao lado uma outra, de cauda emplumada quase sem pelo, o nariz empinado.

- Coitada - disse a Magrizela baixando a voz. - Já não está muito boa da cabeça. Há quinze dias que diz a mesma coisa. E tu, afinal, o que é que fazes aqui?

- Sabes jogar xadrez?

- Ná. Não sei jogar coisa nenhuma. E olha, já estou muito velha para aprender. Sabes quantos anos tenho? Catorze. E tu, tu ainda és uma cria. Tu tens o quê, oito meses?

O Carlinhos fez contas de cabeça: sete anos de homem fazem um de cão, portanto já devia ter um ano e coisa. Mas nem teve tempo de dizer fosse o que fosse:

- Não viste lá fora a minha dona? - interrompia a emplumada. - Está a preencher os papéis para me vir bucar.

- Vi - mentiu o Carlinhos. - Mandou dizer que só te pode vir buscar amanhã, mas vem logo de manhâzinha cedo.

Com o indicador (era o que cabia nas malhas da rede) fez uma festa no nariz da Magrizela e acrescentou:

- Esperem um bocadinho. Venho já.

Ergueu-se para continuar pelo corredor.

- É um bom mentiroso - murmurou a Magrizela para si mesma. - Há-de ser pai de muitas ninhadas.

Deitou-se a um canto da sua cela e adormeceu a sentir uma pontinha de calor, como se estivesse de novo deitada ao pé da fogueira.

O Carlinhos, esse, pelo corredor fora via tantos cãezitos e canzarrões que não sabia o que fazer. Perguntara, um a um, para a esquerda e para a direita, de baixo até tão alto quanto os bicos dos pés alcançavam: «Sabes jogar xadrez?» E a resposta era invariavelmente:

- Não chateies, meu. Diz lá, mas é quando é que a gente pode bazar daqui.

O Carlinhos tomou uma decisão. Assim não ia a lado nenhum, havia centos de cãezinhos por ali acima, para lá dos passadiços. O melhor mesmo era, em cada bocado de corredor, gritar com quantas forças tivesse «há aí alguem que saiba jogar xadrez?» e esperar pelas respostas.

Parecia, de facto, a melhor solução, mas não foi. Por dois motivos. Mas, para os ficar a saber, minha gentil senhorinha, terá de esperar pelo próximo capítulo (se Deus quiser, claro).

(continua no próximo número)

sexta-feira, março 30, 2007

O cão que jogava xadrez

Olhe, minha jovem senhorinha, velha era a sua Tia e casou-se.
Mas como, coitadinha, não era maluca, passou a vida a aspirar a mesma alcatifa, com o mesmo aspirador e o seu Tio todos os dias calçava as mesmas pantufas para não a sujar.
Fizeram amor quatorze vezes (embora não muito de seguida) e daí nasceu o seu Primo Carlinhos, pósmaturo com seis quilos e seicentos e um QI de 148. Aos doze anos, contemplando o Pai (o seu Tio por afinidade) que dormia a sesta no sofá forrado com um pano azul, o ventre subindo e descendo com um som assobiado, e a Mãe (a sua venerável Tia) que tirava o fio ao feijão verde com um alguidar cor-de-rosa, decidiu:
- Vou arranjar um cão.
O problema era arranjar um que jogasse xadrez e não se importasse de ser aspirado todos os dias para não espalhar pelos na alcatifa.
Ao sair da escola, esmurrado um mangas que lhe chamara gordo, dirigiu-se ao canil municipal. Teve de bater à porta uma data de vezes até aparecer uma garina muita grande, muita corada, com muita mau-humor, a ajeitar os botões dos jeans e com uma respiração que parecia a do Zé Nesgas quando estava com um ataque de asma.
- Está doente? - condoeu-se o Carlinhos.
- Quéquetuquerezóputo?
- Quero um cão, um que jogue xadrez e que não se importe com o aspirador para não largar pelos pela alcatifa toda! - explicou o Carlinhos.
A garina fungou, uma coisa que a Mãe (a sua Tia, como já referimos anteriormente) dizia sempre que era feio e não se devia fazer. O Carlinhos extraiu do bolso um lenço de papel já usado e perguntou se a senhora precizava.
- Pisga-tó mongas! - disse a garina, ainda com pior humor.
- Mas eu quero um cão que jogue xadrez e não s'importe...
- Tá bem, desampara-m'a loja. Olha aí, pra lá dessa porta, há uma data de corredores com cães e gatos. Quando achares alguma coisa ficas quieto até eu ir lá ver de ti.
O Carlinhos ficou um minuto a olhar para ela que desaparecia à pressa na casota envidraçada onde parecia agitar-se alguma coisa.
- Fogo! - pensou o rapaz - Até parecia a Stora de Inglês quando está c'os sangues!
Encolheu os ombros robustos e abriu a porta. Um cheiro agoniante e um coro de ladridos chegaram-lhe de imediato, vindos das gaiolas de rede que faziam um lado e outro do corredor que se lhe abria na frente.
(continua no próximo número, se Deus quiser)

terça-feira, março 27, 2007

Trop maigre pour être malhonnête



Bien sur, l'argent n'a pas d'odeur,

Mais pas d'odeur nous monte au nez...

terça-feira, março 20, 2007

Ecce Homo


Iesus Christus aka Nazareno aka Rex Iudeorum

sexta-feira, março 16, 2007

quarta-feira, março 07, 2007

"aos cépticos como eu..."





Imitação de morte é esta vida,
nem morte ainda, mas nem vida já,
à força de penosa e corrompida,
em que mais a razão desperta está,
e, porque desperta, mais vencida.
Imitação de vida é esta morte
quotidiana, que nos coube em sorte.


Armindo Rodrigues, Entre o quotidiano e a aventura, VII

quinta-feira, março 01, 2007

Fora da Graça de Deus

Andando eu, Tacci, muito fora da Graça de Deus, por razões que jamais virão ao caso, e não tendo nada de novo para aqui colocar, deixo por substituto uma visão assaz subjectiva de um concerto de jazz ouvido e contemplado no Centro Comercial de Belém.