sexta-feira, março 23, 2018

CATARINA E OS SAPATOS BRANCOS


          


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          “Os paradoxos são coisas engraçadas porque vai tudo muito certinho, tudo muito lógico e quando chegamos ao fim estamos a contradizer o que dissemos no princípio.
“Por exemplo, o Hempel escreveu uma coisa sobre os melros serem todos pretos.”
- Os melros não são todos pretos, Pai. Têm aquele biquinho que é amarelo.
- Desculpa. Às vezes a nossa maneira de falar torna as coisas confusas, é como a história dos reflexos.
“Tirando o bico que é amarelo, como tu disseste, todos eles devem ser pretos, foi o que a gente viu sempre. Mas bem, o mundo é muito grande e tem muitos cantinhos, silvas, canaviais, sítios desses onde os melros podem esconder o ninho. Pode ser que haja, num outro lugar qualquer onde a gente nunca foi, um melro ou mesmo uma data deles que não sejam pretos. Se fores à procura e encontrares pelo menos um desses, então ficas a saber que não é verdade que todos os melros sejam pretos. Percebeste?
- Não sei, Pai. É mentira?
- Mais ou menos. Se a Anabela te vier dizer que todos os cães são cães de caça como o do Pai dela, tu mostras-lhe a nossa Janeca e pronto. Provaste que não era verdade. Com os melros é a mesma coisa. Se arranjares um que seja encarnado às riscas, fica provado que é mentira que os todos os melros sejam pretos.
- E depois?
          - Depois, a lógica é uma coisa engraçada. Em lógica tanto faz dizer que todos os melros são pretos, como dizer que tudo o que não for preto, não é melro. Ou se quiseres, «todos os não-pretos são não-melros», é assim que se diz em lógica, quando não queremos baralhar tudo. Ou então, também podes dizer que nenhum elemento que pertença ao conjunto dos não- pretos pode pertencer ao conjunto dos melros. Vai dar ao mesmo.
            “Então repara: nenhum pomba branca é preta, pois não? Por isso, em vez de procurares melros que não sejam pretos, também podes procurar pombas brancas que sejam melros. Parece um disparate, mas a cada pomba branca que tu encontrares e que não seja um melro, estás a ter a confirmação de que, afinal, todos os melros são pretos.
            “Às vezes tenho receio de que os estudiosos e os cientistas andem todos à procura de pombinhas brancas …”
            - São parvos, Pai?
            - Não, claro, claro que não. Mas quando se anda à procura, nem sempre se tem a noção exacta do que queremos encontrar. Além disso, acho que o Hempel estava a falava era de corvos pretos e sapatos brancos. Não tenho certeza de que se aplique igualmente aos melros e às pombas.
            - Porquê, Pai? Ele não gostava dos melros?
            - Devia gostar. Mas ele era alemão; viver na Alemanha no tempo do Hitler era muito difícil. Teve de fugir para a América. Talvez a ideia dos corvos o perseguisse. Sabes, os corvos têm muito má fama porque comem carne dos animais mortos. Talvez os nazis lhe parecessem bandos de corvos negros, a perseguir os judeus.
            - Pai, o que é ser judeu?
            - Não sei bem. Tem a ver com a religião deles, creio, embora eu não tenha a certeza de que todos vão à sinagoga.