quarta-feira, maio 23, 2007

O Cão que jogava xadrez XII

Mal aqui cheguei e a minha Senhorinha pergunta-me, não sem alguma legítima rispidez, por que razões estranhas não tenho dito nada acerca do seu Primo Carlinhos. Aceito a sua censura, minha Gentil interlocutora, como de si aceito tudo, menos, como sabe, que me pague o café e os cigarros quando me vem visitar e o bom tempo nos permite sentar ali a uma das mesas que o Sr. Jerónimo tem a fingir de esplanada.
Claro que não é segredo. Sempre que a enfermeira me diz com aquele ar de quem julga que está a fazer troça «a tua Menina vem para a semana» e acrescenta «agora não vás para a rua pedir esmola, ouviste?», é claro que é isso mesmo o que eu vou fazer.
Passeio acima, passeio abaixo, com o uniforme de presidiário que nos dão aqui no asilo e a pulseira electrónica bem à vista no pulso esquerdo, há sempre quem se condoa de nós e nos dê uma moedita de vinte centavos, raramente de mais, mas ao fim de dois ou três dias já tenho os cinco ou seis eurozitos que são precisos.
Nunca tínhamos falado nisto, bem sei, e nunca o faríamos se não soubesse eu perfeitamente que as enfermeiras, com o seu arzinho maternal, têm um prazer sádico em contar tudo o que é suposto humilhar os pacientes.
Mesmo assim, só menciono este facto porque, como sabe, a lanterna à luz da qual trabalho durante a noite na secretaria ficou sem pilhas.
E de que me havia eu de lembrar?
Há uma loja chinesa ao fundo da calçada, daquelas que é um mundo inteiro de roupinhas pindéricas, brinquedos monstruosos que dão pesadelos às crianças – e a mim – plásticos garridos, detergentes, vassouras e ferramentas de todos os tipos. Teriam pilhas também?
Portando-me bem no refeitório e fingindo que estou a ver atentamente a telenovela, lá acham que eu estou «compensado» e têm-me deixado sair às tardes.
Hoje, já com dez euros e tal, lá entrei na loja e dirigi-me à chinesinha velhinha que estava atrás do balcão, mostrei-lhe a lanterna e perguntei se tinha pilhas.
Pacientemente, a senhora abriu um grosso dicionário, folheou para trás e para diante e perguntou, com voz doce e um sorriso cortês:
- Pila ou pilia?
- Pilha. Pi-lha!- repeti eu.
- Ah! Sim, sim, pilia. - seguiu com o dedinho fino as linhas do dicionário, parou e voltou atrás: -Pilia de empiliar ou pilia de piliar?
Abanei a cabeça, perplexo.
- Desculpe… Não estou a perceber…
Mais dicionário para trás, mais para a frente:
- Hunos piliar Roma ou carregador empiliar pilia de caixote?
- Não, não, desculpe. Não é nada disso. – e já a falar como ela: - Pilia de electricidade. Aqui, oh! Luz? Entende?
- Ah? – procurou de novo e o rosto iluminou-se-lhe: - Lâmpada! Vem, sim?
E partiu à minha frente, passinhos curtos, ao longo dos corredores até à secção das electricidades, à estante onde as lâmpadas opalescentes e de baixo consumo se empilhavam (empiliavam, creio) à mistura com fichas triplas, extensões e muitas mais coisas que não menciono para não enfastiar mais a minha Gentil Senhorinha nem as Respeitáveis Damas e os Cavaleiros que me lêem.
Imagino que estão, neste momento, a ver a minha desilusão: dias e dias para cima e para baixo no passeio, os olhares desdenhosos dos outros pacientes e dos médicos que entram e saem da consulta externa, e tudo para nada.
A senhora Chinesa, com o seu ar doce, aguardava que eu me decidisse e eu não sabia como explicar-lhe que, não, não era nada disso, quando... só posso chamar-lhe assim: o milagre voltou a acontecer. A velhinha inclinou-se para arrumar umas caixinhas com parafusos que estavam fora do lugar e destapou acidentalmente – mas haverá acidentes neste estranho universo? – um estranho engenhoco, pesadote e com um pedal.
Tinha encontrado, se não pilhas novas, ao menos um carregador de baterias por, o preço estava lá bem marcado, nove euros e noventa.
- Carregador de bateria? – perguntou a senhora abismada quando eu, saltitando de felicidade, lhe mostrava a minha escolha: - Não, não, não vende carregador de bateria. Carregador de todas coisas é meu neto, não pode vender …
Mas eu mostrei-lhe o objecto pretendido com muitos «aqui, aqui, carregador isto!» e ela, com o sorriso de novo iluminado, condescendeu em aceitar a nota de dez euros:
- Desculpa. Eu não percebida. Português difícil. Língua muito polissémica, sabe?
E ficámos mais um bocado a trocar ideias: não achava ela o inglês ainda mais polissémico do que as línguas latinas? Não achava eu que o chinês resolvia acertadamente a polissemia recorrendo aos diferentes tons e semitons?
Separámo-nos cordialmente, como velhos confrades.
E, Gentil Senhorinha, como vê pelo facto de estar aqui a falar consigo através da Internet, o carregador, mesmo sem ser neto da velha Senhora, carrega as pilhas perfeitamente.
Só tenho um problema que ainda não consegui resolver: como é que o vou esconder debaixo do colchão durante dias e dias, sem que ninguém note os altos que há-de fazer.

Mas, sejamos optimistas, talvez um novo milagre aconteça e a tempo de a odisseia do Seu Primo Carlinhos e da Magrizela serem contadas. E, quem sabe, até, se um dia destes não aparecerá o Zé Nesgas a dar umas ajudas para que tudo termine em bem?

10 comentários:

mulher disse...

e se a sua senhorinha suspendesse o tricotar do cachecol, que lhe há-de aquecer o pescoço no Inverno, e fizesse uma manta em jacquard (com canitos) para tapar o carregador?

António Pista disse...

Para ver ou rever:

http://aguia-de-ouro.blogspot.com/

Novamente: política e futebol e algo mais ...

Visitem!

Gi disse...

Tacci, a alternativa às pilhas bem que podia ser um frasquinho cheio de pirilampos.

Uma tampinha feita de tule atada com um raminho de alfazema traziam um pedacinho de natureza ao seu quarto e resolviam o problema em 3 tempos :)

Beijinhos Tacci.

tacci disse...

Anita:
Agradeço a sugestão e vou transmiti-la à Gentil Senhorinha. Os carregadores, de facto, disse-me não sei já quem, costumam ser muito friorentos. E como este Maio, por causa do aquecimento global, vai icebérguico... (Que tal o neologismo?)
Um abraço, Anita.

tacci disse...

Tó, já fui espreitar, mesmo se não sou lá grande adepto do futebol.
Um abraço e aparece mais vezes.

tacci disse...

Sabe, Gi?
Já tentei. Mas não era lá muito cómodo, com os pirilampos a acender e a apagar chegaram a confundir-me com uma árvore de Natal. Além disso, os outros doentes, lá na camarata, diziam que não conseguiam dormir por causa do clic-clac dos inerruptores, cada vez que um pirilampo acendia a luz. Eu nunca acreditei, mas sabe como são os enfermeiros aqui no Pavilhão dos Furiosos: disseram que eu é que estava a ficar surdo e arrumaram o assunto. Agora, quando posso escapar-me um bocadinho à noite, no Verão, claro, tenho de os ir visitar ao jardim.
Um beijinho, Gi.

Gi disse...

Até para a semana Tacci, vou descansar uns dias. Penso quenão esteja zangado mas estranho a sua ausência sabe?

Um beijinho

tacci disse...

Gi, eu podia estar zangado com o Mundo inteiro que não me fazia grande diferença. Mas lembra-se daquela pergunta que se fazia nos questionários literários? Se pudesse levar dez livros para uma ilha deserta? Eu costumo fazer essa pergunta a mim mesmo, mas de modo um pouco diferente: se pudesses convidar dez pessoas para irem contigo para uma ilha deserta - ou, como eu gosto mais de pensar, para um convento no alto de uma montanha - quem convidavas?
A Gi, por favor, não sinta nisto qualquer outra conotação. Eu não sei se é coxa ou estrábica, creio que é bonita, mas se não for, não é importante. Pelo que sei de si, pelo "Pequenos Nadas", eu convidava-a sem hesitar. Mas nem sempre estou bem e, mesmo se visito o seu blog praticamente todos os dias, a maior parte das vezes não consigo falar.
Perdoa-me e continua a visitar-me?
Um beijinho, Gi.

tacci disse...

Belinha:
Não consegui votar em coisa nenhuma, mas andei a passear pelos seus blogues e achei-os muito bonitos. Vou juntá-la aos meus favoritos - posso?

Gi disse...

Obrigada Tacci.
Que dizer perante as suas palavras?
Um beijinho grande.