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domingo, agosto 01, 2010
Festa Brava & Companhia
Homenagem à Catalunha
"Ai daquele por quem o escândalo vem!"
Lucas, XVII, 1
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A dor é um escândalo, o escândalo dos escândalos!
Lembram-se do que disse Cristo quando O crucificaram?
«Pai, Pai, porque me abandonaste», não foi?
Que terá Ele dito, horas depois, quando esteve cara a cara com o próprio Pai?
«Pai, perdoo-te»?
-Que dirá um toiro, à chegada ao céu?
«Meu Senhor e meu Deus, perdoo-te»?
Ou não perdoará nunca, num rancor eterno?
- Os apóstolos Mateus, Marcos, Lucas e João legaram-nos muitos dos episódios da vida de Cristo: a mulher adúltera a quem aquele que nunca tivesse pecado atiraria a primeira pedra... Sorte a dela, eram honestos os judeus que não se acharam assim tão impolutos. Se fossem os nossos governantes, pobre mulher!
Narraram também o milagre das bodas de Caná, a água transformada em vinho... não que os mixordeiros aqui da zona não fossem capazes do mesmo: tonéis e tonéis de água, palha, um pouco de açúcar, e pronto: chamava-se vinho a martelo. Vendia-se à tropa, claro, que os magalas bebiam tudo, e às tabernas, os bêbados do costume, preciso era que tivesse álcool.
Nós também o bebíamos, em casotas de fado, ao jarro, um líquido azurrapado, que o dinheiro não chegava para mais. Se desse ressaca, pronto, era como diria o António Variações, é p'rámanhã, deixa lá, não penses já!
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Mas nada de perdermos o fio à meada: há o milagre da multiplicação dos pães e dos peixes - e já que estamos a falar de peixes - há também a pesca milagrosa e o caminhar sobre as águas do lago Tiberíades, e há o Lázaro ressuscitado...
Esqueceram-se os Evangelistas de mostrar o que Cristo pensava dos nossos irmãos mais simples. Claro que havia o jumentinho em que Cristo fez a entrada em Jerusalém, havia o burrinho e a vaca que assistiram ao seu nascimento, mas apenas como humildes figurantes. Foi preciso esperar por São Francisco de Assis, pelo hino ao irmão Sol, pelo irmão Lobo.
É claro que o Lobo também caça. E também mata.
É claro que o gato é cruel, brinca com o rato enquanto a fome não aperta. E a leoa, com as garras a rasgar os quartos traseiros do boi cavalo pode também parecer cruel. Mas, nem o gato, nem a leoa têm opção. O que tem de ser, tem muita força.
E não acarreta culpa.
Ou sim?
Ou sim?
De quem?
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Culpa de um Criador que fez um Mundo para a dor?
Há muito quem não perdoe a Deus por a ter inventado.
É útil, sem dúvida, quando ensina que o fogo queima, que nos entrou uma pedra para o sapato, que cairmos de um ramo mais alto da árvore aleija.
Mas, para lá desta finalidade, digamos, pedagógica, também há a dor inútil: a dor de uma criança com uma doença terminal, por exemplo. Ou a dor que enlouquece, quando se nos parte um dente. Por isso inventámos os analgésicos. Por isso inventámos os cuidados paliativos. Por isso inventámos as anestesias.
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O século XIX foi crucial em muitos aspectos.
Foi quando se aboliu a escravatura, lembram-se?
Foi quando se aboliu a prisão por dívidas, lembram-se?
Foi quando as crianças foram olhadas como seres com identidade própria, com direito a crescer, a educar-se.
Foi quando nasceu Maria Montessori.
Foi quando Anna Sewell publicou Black Beauty, a autobiografia de um Cavalo, traduzida do original equino...
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Os toiros não.
Nenhum best seller se lhes refere senão do ponto de vista da festa brava. Hemmingway, The sun also rises e Death in the afternoon, claro, mas pior ainda: Bataille e Histoire de l'oeil. Se ao primeiro é a luta de morte, a guerra, enfim, o que o fascina, e sobre isso escreverá até ao fim dos seus dias, Bataille o que vê na morte do toiro é a identidade do prazer e da dor. Eros e thanatos, de braço dado no meio do redondel.
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Quando alguém fala dos toiros, daqueles animais pretos, de olhar calmo quando andam pelas lezírias, o palavreado que jorra imediatamente é do mais curioso: começa pela festa que é bravura, valentia, pundunor; é nobreza, é orgulho, é coragem; e é emoção, é arte...
E, quase sempre, é tradição, é patriotismo, os nossos reis também foram toureiros. E fadistas, quando calha.
E depois, as cores quentes: a festa brava é vermelha e amarela, cores do verão, do calor, os trajes são de luces, as mulheres são belas e vestem cores garridas. Os cavalos, que dantes eram esventrados na arena, oferecidos à fúria do toiro em pontas, sangravam, cobriam-se também do vermelho, como sangram às vezes os cavalos de lide, montados por cavaleiros com aguçadas esporas. E como sangram os forcados quando colhidos.
Mas o sangue sacrificial, aquele que é feito jorrar sob o ferro do picador, sob as bandarilhas, o estoque e a choupa, o sangue que faz subir ao rubro toda a praça, esse é o do toiro.
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Dizem-me que as vacas, quando as separam dos vitelos, quando as arrastam para o matadouro, choram.
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Dizem-me que as vacas, quando as separam dos vitelos, quando as arrastam para o matadouro, choram.
Não sei se os toiros na arena o fazem. Não sabemos se, lá do fundo do seu cérebro de bovinos, não estarão a perguntar:
«Pai, pai, porque me abandonaste?»
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O Parlamento da Catalunha, na sequência de uma petição com muitos milhares de assinaturas, decidiu por maioria, como fazem todos os parlamentos, proibir as toiradas. Não os encierros, as largadas, ou pamplonas como por aqui lhes chamamos.
Apenas o costume de espetar ferros num animal sem outra defesa, com barbelas para não caírem e para continuarem a sangrá-lo. Apenas o costume de lhe espetar um estoque para que uma multidão entusiasta grite «olé!»
O Parlamento da Catalunha, na sequência de uma petição com muitos milhares de assinaturas, decidiu por maioria, como fazem todos os parlamentos, proibir as toiradas. Não os encierros, as largadas, ou pamplonas como por aqui lhes chamamos.
Apenas o costume de espetar ferros num animal sem outra defesa, com barbelas para não caírem e para continuarem a sangrá-lo. Apenas o costume de lhe espetar um estoque para que uma multidão entusiasta grite «olé!»
Honra seja ao Parlamento catalão.
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Fernando Savater, um indivíduo que é dito ser «filósofo e escritor», e que mereceu alguma notoriedade pelo seu livrinho Ética para Amador (1991; Amador era o nome do seu filho, jóvem na altura), publicou no El País uma crónica intitulada "Vuelve el Santo Ofício".
Entre outras coisas curiosas, escreve:
"Se deixarmos de lado essa sandice de que o aficionado desfruta com a crueldade e o sofrimento que vê na praça: se o que quisesse fosse ver sofrer, bastar-lhe-ia passear-se pelo matadouro municipal..."
Para ele, pois, o aficcionado não é um sádico, é um esteta; o matadouro é feio. O sofrimento dos animais que são abatidos não tem o charme de uma grande encenação, é inestético. E aqui se situa o cerne desta polémica: o animal de lide, é para ser lidado - o que é uma tautologia, ou melhor ainda: é definir pelo definido - as considerações éticas aqui não têm cabimento.
A ética trata das relações com os nossos semelhantes e não com a Natureza. São Francisco estava errado, os ecologistas estão errados.
Eu estou errado.
Que bom ter um Fernando Savater para me ensinar estas coisas.
Ainda bem que, finalmente, compreendemos que os matadouros - que não são visita aconselhável às crianças - e as praças de touros - que tabém não, supomos nós - têm igual estatuto ético.
Que mais dizer?
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