- Mulher, queres ver que nos roubaram o nosso país?
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De amor e de sombra
Isabel Allende
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Comprar outra vez um livro que já se tivemos e que se perdeu, é como tropeçar um velho amigo. Ou melhor, reencontrar alguém que já fomos.
Nem imagino qual seria a minha surpresa se, um dia destes, acabadinho de acordar, a caminho da casa de banho, eu lançasse um olhar maquinal ao espelho e descobrisse o meu próprio rosto com vinte anos.
E, um pouco em choque pela surpresa, havia de perguntar, pela voz que me pareceria vir do espelho:
- Pá! Ainda és assim?
- Assim como? - respondia eu, a fingr-me desentendido.
O jovem de espelho abriria o De amor e de sombra.
- Lembras-te das últimas frases do livro? - e, sem esperar pela resposta lia: - «Sentiam-se pequenos, sós e vulneráveis, dois navegantes desolados num mar de cumes e núvens, num silêncio lunar...» Queres que continui?
- Hum-hum.
- «... mas sentiam também que o amor tinha ganho uma nova e formidável dimensão e seria a única fonte de ânimo e vigor no exílio. À luz dourada do amanhecer, pararam para ver a terra que era sua pela última vez. - Esqueceremos?, murmurou Irene. - Esqueceremos - respondeu Francisco.»
Ficaríamos em silêncio, a olhar uma para o outro.
- Não é essa a palavra que está no livro - diria eu, por fim.
- Ainda te lembras?
- Lembro: o que lá está é «voltaremos? - murmurou Irene.» E o namorado responde: «voltaremos».
- Tive medo de que te tivesses esquecido.
- Enganaste-te - responderia eu.
Mas havia de sair da casa de banho assobiando em surdina uma passagem do Bolero, do Ravel: sinal, penso eu, de que não me estaria a sentir demasiado confortável.
Felizmente têm estado uns dias de sol.
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