quarta-feira, maio 09, 2007

O Cão que jogava xadrez XI

Para que serve uma tábua, mesmo com pregos, pergunto eu, ainda por cima ferrugentos? Contra um Gigante, daqueles mesmo grandes, que podem com um Deus debaixo do braço?
Quão pouco, Gentil Senhorinha, tem este seu chevalier servant para tirar o Carlinhos da sua perigosa situação!
É certo que mesmo atrás do seu Primo ia aos gritos o Diabrete:
- Ó balofo! Toma lá isto, pá! Tázóvir, ó coiso?
Mas, como o Carlinhos não parava, o Diabrete continuou a correr, aos gritos, e estou em crer que a massa de que se fazem os heróis é mesmo assim, um galope perdido, ninguém a ouvir ninguém, e o que tiver de acontecer, olha, aconteceu!
E digo-lhe, Senhorinha, e às benévolas Leitoras também, aos nobres Cavaleiros se se dignarem a escutar-me estes instantes: quando o Calinhos desembocou lá ao fundo, já o Gigante apanhado a Magrizela pelo cachaço.
Não havia lugar a hesitações e não hesitou. Trás! Foi direito à perna mais próxima e descarregou a paulada como pôde, um pouco acima do joelho, que mais alto não chegava.
Talvez tivesse sido um prego da tábua que se lhe cravou em sítio crítico, ou tão só a surpresa, quem sabe?
O gigantesco Guarda-Mor soltou um uivo disforme e tentou fazer tudo ao mesmo tempo. Dar dois saltos, tentar tirar a tábua ao Carlinhos com a mão que segurava a Magrizela e sem largar, do outro lado, o Deus-dos-Cães, era obra!
Quis meter a cadelita no bolso mas, como ela esperneava e tinha os poucos dentes que lhe restavam ferrados na manga do seu captor, o bolso rasgou-se.
Tentou dar um pontapé no Carlinhos e acertou com toda a força numa pilha de jaulas que desabou fragorosa por entre ganidos de susto, de dor dos canitos que caíram mais de cima e se aleijaram.
Foi nessa altura que o Diabrete que, se a Minha Senhorinha se recorda ainda, vinha a correr atrás do seu Primo, se decidiu a lançar a sua arma terrífica: os Atakadores.
Os sapatos das Gentis leitoras, regra geral não têm necessidade desse artifício, mas não há nenhuma que não conheça os efeitos deletérios desses seres abomináveis, parecidos com finíssimas enguias e, como elas, difíceis de agarrar.

Os Atakadores, dizem os cientistas, vivem obcecados pelas ilhós. Uma só não lhes chega para perpetuarem os seu genes, no mínimo querem sempre um par, o ideal são quatro ou cinco pares. Satisfeita, porém, a sua concupiscência, logo desatam à procura de novas ilhós, desfazem os laços, rojam-se pelo chão a cheirar os rastos e, mal encontram um rival atacam-no ferozmente, emaranham-se nele e, não raro acabam os dois por morrer, cortados ao meio pelos puxões um do outro.
Era essa a arma secreta do Diabrete.
Aproveitando o momento em que o Guarda-Mor desferia um segundo pontapé na direcção do Carlinhos – que já ia longe, a gritar «nha-nha-nhããã» – o Diabrete abriu o saquinho: os Atakadores precipitaram-se serpenteantes, instantaneamente apaixonados, para os sapatos do inimigo.
A Gentil Senhorinha perdoará a minha falta de talento se eu não conseguir mostrar em toda a sua extensão o efeito catastrófico de um ataque de atakadores no meio de um Canil Municipal, SA, onde todos os cães ladram, gatos, mais ao longe, miam desesperados, até um papagaio egresso de um destino culinário e a viver escondido lá por cima no telhado, gritava «Valha-me Deus, valha-me Deus!» num entusiasmo incontido.

O que aconteceu foi que os Atakadores descobriram as ilhós já ocupadas e não acharam graça nenhuma: engalfinharam-se numa luta de vida e de morte, e quando quis dar o passo seguinte na corrida para apanhar o Carlinhos, o gigantesco Guarda estatelou-se, a Magrizela voou pelos ares com um pedaço de manga nos dentes e só parou em cima do pobre Diabrete que berrava por socorro.

E o Deus-dos-Cães, esse achou maneira de se torcer na queda e aterrar na barriga do Gigante onde ressaltou a pés juntos como se fosse uma bola de ténis ou um acrobata em saltos de mesa alemã. Voou graciosamente num passo artístico, falhou por mais de um metro o passadiço e as Gentis Leitoras e os respeitáveis Cavaleiros nem imaginam o estrondo quando bateu com a cabeça numa viga de ferro mais lá em cima.

Ficarieis admirados se vos dissesse, Gentis Meninas e Minhas Senhoras, que e viga oscilou, que alguns tijolos na parede abriram fendas e que o Deus-dos-Cães tombou como uma pedra no meio de um dos corredores, ressaltou no chão de cimento, alguma coisa fez crrrrac como se se tivesse partido e ficou completamente imóvel.

Quer dizer, imóvel até ao momento em que a Magrizela, ainda muito combalida do trambolhão, veio a coxear dar-lhe uma lambidela no nariz que é o que se faz aos cachorrinhos constipados. Só nessa altura, quando o Deus-dos-Cães espirrou e disse «tira-te daqui, ó parvalhona!» a Magrizela que era mais para o agnóstica, acreditou que ele era de facto um Deus: só podia ser, com uma cabeça dura daquelas!

E o que aconteceu depois também foi interessante, mas a lanterna está a ficar sem pilhas e só dá uma luzinha de nada, por isso terão de me perdoar se tiver de deixar a continuação para amanhã. Para amanhã, claro, se o chinês ao fundo da rua tiver pilhas e se eu conseguir uns eurozitos que dêem para as comprar e, já agora, para um macito de cigarros, que a vida não pode ser assim tão virtuosa sem se tornar numa chatice.



7 comentários:

mulher disse...

Magnífico!

Gi disse...

Olá Tacci :)

Hoje trago-lhe aqui uma lembrança que espero seja do seu agrado. Meia dúzia de pilhas novinhas em folha para que a sua lanterna . Não quero que lhe falte nada :).

Sabe que mais? Estava aqui a imaginar a luta dos atakadores (deliciosa por sinal) e a pensar que ainda bem só muito esporadicamente faço uso de sapatos com tão horríveis criatura. Está explicado o porquê de em garota andar sempre a caír. Afinal eu não era cabeça no ar, eram eles de certeza que me pregavam rasteiras :)

Beijinho tacci, noite feliz

tacci disse...

Obrigado, Anita. Os teus comentários também são magníficos para o meu ego.
Um abraço muito apertado.

tacci disse...

Gi, as suas lembranças são sempre úteis: dos bichinhos pretos e só com gengivas acabaram por surgir os abomináveis atakadores (sem dentes mas igualmente perigosos.
Que acha de um carregador de pilhas a pedais vendido por um chinês que fala português pelo dicionário?
Um beijinho, Gi e uma semana feliz.

Gi disse...

LOL, acho muito interessante essa ideia Tacci :)

beijinho e noite feliz

Gi disse...

Está tudo bem com o meu amigo? A história deu consigo em maluco? :)

Habituamo-nos e depois estranhamos as ausências ... desculpe a intromissão mas penso ... e depois pronto :)

beijinhos

tacci disse...

Gi, obrigado pelo seu interesse. Se a vida fosse linear, era muito mais simples, mas se calhar não era possível contar a história dos Carlinhos. O nosso narrador, como já pode ver, lá arranjou o carregador de baterias e a história, esperemos, agora aparecer em ritmo mais regular.
Um beijinho Gi.