terça-feira, maio 29, 2007

O Cão que jogava xadrez XIII

Se é verdade, Gentil Senhorinha, que os Deuses me protegem, como estou em crer após a sucessão de milagres que me têm acontecido nestes dias, estou em crer também que é mais por causa do seu Primo Carlinhos e da Magrizela.
Que poderiam os Deuses querer deste seu chevalier servant, senão que os leve a bom porto, agora que, ajudados pelos atakadores e por uma tábua com pregos, derrubaram o Gigante Guarda-Mor e libertaram o Deus-dos-Cães?
É certo, Senhorinha, que a gratidão nunca andou bem distribuída, desde o dia da criação. Os cães, pobres deles, ficaram com toda. Deuses, homens, cucos, ratazanas e gaivotas ficaram sem nada que se visse.
O caso foi que, caído lá de cima, depois da estrondosa marradela na mais alta das traves de ferro, o Deus-dos-Cães nem sequer agradeceu:
- Seus paspalhos! - foi o que ele disse: - Tava tudo sob controle!
Levantou-se um pouco de esguelha, apoiado a uma rima de jaulas:
- Que é que vocês tinham de meter o focinho, hem?
Deu mais dois passos cambaleantes e declarou: «Tudo sob contrôle, ouviram seus paspalhões?»
E despenhou-se novamente.
Os cães mais próximos, os que ainda não tinham conseguido fugir das jaulas amachucadas com os trambulhões, protestaram:
- Não durmas ainda, Senhor! Salva-nos, salva-nos agora!
E logo outros das jaulas contíguas, mas que não conseguiam ver o que se passava, juntaram-se ao coro uivando «Salva-nos, salva-nos!»
A Magrizela suspirou.
- Tomem conta dele - pediu. - Vou ali pedir ajuda!
E lá foi, no seu trote coxo, corredor afora.
O seu Primo Carlinhos e o Diabrete a atavam o gigantesco Guarda o melhor possível com uns arames enquanto os atakadores, em delírio, se tinham batido uns com os outros pelas ilhós e estavam num novelo inextricável. Os sapatos, esses jaziam de lado, todos retraçados.
- Vou passar dias a desenredá-los! - choramingava o Diabrete.
- Deixa lá, eu depois ajudo-te. - ofereceu-se o Carlinhos.
- Mas é que tu não sabes. É preciso untá-los com um azeitinho de primeira para ficarem bem soltinhos. Depois tens de mexer suavemente com um garfo, ir juntando mais azeite até formarem uma pasta uniforme. É assim que eles se vão separando, um a um, percebes? Tu agarras nesse com cuidadinho, secas com papel absorvente, passas por açucar em calda e guardas num saco lavado. Depois fazes a mesma coisa até ao último estar arranjadinho e fechas o saco até serem precisos outra vez.
A Magrizela aparecera neste meio tempo.
- Agora não há tempo para isso - ordenou ela. - Temos de levar o Senhor daqui antes que este acorde. Não pensem que ele não parte os arames com uma penada, tão a ouvir?
- Mas eu não posso ir... - gemeu o Diabrete. - São os meus bichinhos de estimação, olha para eles, não os posso levar assim!
- Ai não? - rosnou a Magrizela. - Queres ver que podes? Vocês aí! Já para dentro do saco!
Avançou para o molho dos atakadores com os dentes todos à mostra. Já não eram muitos, mas os atakadores começaram a tremer como geleia .
- Eu conto até três. Depois começo a retraçá-los à dentada que vocês nem sabem de que terra são! Um...
Com guinchinhos de pavor os filamentos começaram a separar-se.
- Tu és uma malvada! - choramingou o Diabrete. - Venham cá, meus pequeninos, venham ao papá...
- Dois...
Os atakadores, literalmente, saltaram para dentro do saquinho que os tinha trazido. Foi tão precipitado, Senhorinha, que o seu Primo Carlinhos só se lembrou do dia em que a Mãe ia abrir um pacote de esparguetes e ele se rompeu por baixo e a sua Tia desatou a chorar. Pois bem, era ao contrário: era como se os esparguetes arrependidos saltassem do chão, de debaixo do fogão, do frigorífico, dos armários de volta para o pacote e as lágrimas trepassem outra vez, rosto acima, até aos olhos da pobre Senhora.
Mas a Magrizela não consentiu em mais demoras:
- Agora toca a andar! Tu vai buscar a padiola e vê se arranjas ajuda. E tu, miúdo, anda depressa comigo. Sabe Deus o que eles vão fazer à Emplumada.
Correram de novo. O Deus-dos-Cães continuava estendido, completamente desacordado ou talvez estivesse só a aproveitar para dormir uma sesta: o certo é que nem se tinha mexido. O pequeno grupo de cães à sua volta, esse, porém, tinha engrossado a olhos vistos e entupia consideravelmente o corredor entre as jaulas.
- Deixem passar, deixem passar
Como, sob o comando firme da Magrizela, se organizou a procissão e o Deus-dos-Cães foi levado de padiola e o que aconteceu a tão estranho cortejo, só posso dizer amanhã ou depois porque já me doi a perna de estar aqui a dar ao pedal do carregador das baterias e, de qualquer modo, a manhã está a chegar.
Por isso, se a minha Gentil Senhorinha, as Nobres Damas que me lêem e os Valorosos Cavaleiros derem licença, vou ver se roubo qualquer coisita na cozinha enquanto as cozinheiras não entram ao serviço e não nos dão o pequeno almoço - que, deve dizer-se, geralmente é mesmo muito pequeno.
Mas, que se há-de fazer quando se está num Rilhafoles como este?
Pois. Eu também não sei.

4 comentários:

Gi disse...

Acredito que tenha dado consigo em maluco, até comigo que já tive que ler os episódios anteriores porque me perdi :) falta de dar ao pedal por certo, esgotei a bateria dos neurónios :)

beijinhos Tacci

tacci disse...

Sabe, Gi? Não faço ideia de como era possível ao Camilo ou ao Dumas escreverem o seu folhetim diário, sem perderem o pé, as personagens e o fio conductor. Eu próprio já me perdi uma data de vezes e só estou a fazer um por semana (mais ou menos).
Um beijinho Gi.

Gi disse...

Passei para ver se havia novo episódio e saber se estava tudo bem. Deixo um beijinho e votos de um bom fim-de-semana.

tacci disse...

Obrigado por ter passado, Gi. Já lá está o novo episódio. Espero que a divirta, mesmo se está um nadinha trágico. Beijinhos e um óptimo fim-de-semana para si também.