Há quanto tempo, Senhorinha, aqui não venho!
Quantos e quantos dias passaram sem que eu me pudesse escapar até à secretaria, o seu Primo Carlinhos e a Magrizela a contas com os crescidos da Alfredo Arroja e eu lá em baixo, numa caverna escura, ausente até de mim, atado à inapelável opinião dos doutores.
Tudo começou com uma simplicidade tão grande e tão simples, num dia gorduroso como tantos outros, com um céu baixo de trovoada, e a enfermeira Rosa, com a sua túnica branca engomada, sem uma mancha, sem uma prega!
Tudo começou com uma simplicidade tão grande e tão simples, num dia gorduroso como tantos outros, com um céu baixo de trovoada, e a enfermeira Rosa, com a sua túnica branca engomada, sem uma mancha, sem uma prega!
Que diferença!
Ela imaculada, cheirando a alfazema, num passo decidido, as sapatilhas com um levíssimo "ssss" a descolar do chão de ladrilho e os copinhos com as nossas drageias a tilintarem no tabuleirinho.
Nós sebosos, suados das noites sem refrigério, barbas por fazer, cabelos empastados, com a consciência dos nossos corpos, machos e imundos, e a enfermeira Rosa, grácil, clestial e perfumada, carinhosa e doce.
- Então - ronronava ela de cama em cama - dormimos bem hoje?
E bajuladores uns, taciturnos outros, lá fomos respondendo, consoante a noite melhor ou pior dormida.
E eu, como a minha Senhorinha talvez já não recorde, andava a dormir muito pouco porque vinha para aqui, no escuro da noite, com a lanterna e o carregador de pilhas o qual, como recorda, não era o neto da idosa senhora da Loja dos Trezentos.
Ao menos através deste teclado, dizia-me eu a mim mesmo, podia estar todos os dias, nem que fosse muito pouco, com a minha gentil Senhorinha.
E nessa fatídica manhã, quando a celestial enfermeira Rosinha se aproximou da minha tarimba, eu, mal acordado, quis levantar-me para tomar os remédios e zás!
O carregador de pilhas que pesava que nem chumbo e eu, no meu cansaço, não disfarçara suficientemente bem, caiu direitinho no pé da enfermeira.
Ainda se fosse uma patorra calçada de Doc Martens! Mas qual! Era um pezinho mimoso, dentro de um sapatinho higiénico de lona branca. O carregador, que era de ferro fundido, com um espigão, uma roda e um pedal, parece que lhe acertou de quina, em cheio no dedo médio do pé direito. O tabuleirinho voou com uma espécie de arco-íris de comprimidos coloridos e ela gritou. Mas gritou mesmo.
Foi um berro rasgado, sem nada da suavidade vaporosa da enfermeira Rosa; pareceu-se mais com o barrido de uma Mãe elefante a quem acabam de roubar o bebé de três toneladas.
E se estes tectos abobadados fazem eco!
A minha Senhorinha e as nobres Damas que eventualmente ainda por aqui passem, adivinham facilmente o que se passou e depois.
Os seguranças apareceram a correr, só depois o Chefe dos Enfermeiros e os Doutores. E toda a gente falava ao mesmo tempo, só nós, os doentes, nem piávamos, paralíticos de medo.
Apenas quando um segurança deitou a mão ao carregador de baterias e eu, delicadamente lhe disse que, com o perdão da minha Senhorinha, nenhum filho de uma hetaíra ia tocar nas minhas coisas e que eu tinha direitos constitucionais e que me queria queixar ao Provedor... Bom! Foi demais para eles.
Saltaram-me em cima como os macacos indianos sobem para o tejadilho dos combóios nas suas migrações anuais. Pareciam um cacho, pendurados uns no meu braço direito, outros na perna esquerda, até que senti no, digamos, glúteo uma picada e gritei:
- Acudam que estão a drogar-me.
Se já viram um rebanho de ovelhas paradas a olhar para o cão que lhes ladra do outro lado da cerca, sabem as nobres Damas e os valorosos Cavalheiros como me olharam os meus irmãos de camarata e de infortúnio.
Em breve me senti paralizado, atirado para o catre e amarrado com as correias de segurança. Não sei o que aconteceu depois.
É uma sensação aterrorizante.
Mil vezes desejei que me tivessem posto uma daquelas camisas de forças, a minha Senhorinha não sabe como é: uma coisa de lona, cheia de correias que nos atam os braços como se estivéssemos a abraçar-nos a nós próprios sem nos deixar livres senão as pernas...
As drogas, essas a mim, pelo menos, deixam-me o espírito livre para querer, para odiar, para a cólera. Mas o corpo, esse não nos obedece. Com um esforço inaudito, o gesto esboça-se, a mão ergue-se para logo tombar exausta, sem querer próprio.
Dizemos: penso, logo existo! Eu sou eu! Mas não é um grande consolo.
Penso, logo existo! Não creio nos meus algozes! Não. Não é um grande consolo para quem, manietado, vê partir a sua lanterna, o carregador de pilhas, todos os pequeninos tesouros que lhe davam acesso à sua Senhorinha. A própria vida.
Se vida se lhe pode chamar.
Mas, se não for isto a vida, que outra coisa poderá ser?
Agora, porém, que todos com sorrisos rasgados me acham muito melhor, a caminho da verdadeira cura desde que não deixe de tomar os comprimidos, vou ter vagares, liberdades, carinhos, favores, tudo.
Sorrio pasmado para todas as coisas, carreiros de formigas, sapos no tanque, figuras de relevo na televisão, baratas nos corredores à noite, osgas a passear pela parede atrás das buganvílias. Como é bom o mundo quando os Doutores e a enfermeira Rosinha tomam conta de nós.
5 comentários:
lembrei-me do Voando Sobre uma Ninho de Nucos
McMurphy: I can't take it no more. I gotta get outta here.
Chief Bromden: I can't. I just can't.
McMurphy: It's easier than you think, Chief
Que noite atribulada essa para a próxima que fizeruma dessas incurssões nocturnas leve uma velinha, ao menos se caíra (e isto colocando de parte o risco de incêndio) não magoa (tanto) um pezinho delicado que se atravesse pelo caminho.
Será assim tão bom quando tratam de nós?!... Parece um pouco o peixinho do aquário da animação que deixei no meu blogue ...
Um beijinho grande
Mesmo sendo um "Ninho de Cucos" e não de "Nucos", a comparação é lisonjeira.
Lembro-me do filme e lembro-me que o Chief Bromden, no final, parte com a alma (ou tão só a recordação) do McMurphy. Para que pradarias partiu ele que não nos deixou a direção? Às vezes podia-nos apetecer seguir-lhe as pegadas.
Um abraço, Anita.
Não, Gi, não é bom que tratem de nós, a menos que nos amem. É a tragédia da velhice, não é? Das doença mentais, da senilidade, da cadeira de rodas. A única velinha que nos pode iluminar esse corredor escuro, creio eu, é a memória. Aconteça o que acontecer, há coisas que nós já vivemos e que são nossas, já ninguém as pode roubar. É a nossa bagagem para a eternidade possível.
Felizmente, a eternidade impossível demora mais tempo.
Um beijinho, Gi.
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