terça-feira, agosto 28, 2007

Concha y Toro, 1981

Confesso aqui a minha mais profunda admiração pelos arqueólogos e sobretudo, pelos técnicos do laboratório que, a partir dos caquinhos quase invisíveis, conseguem reconstituir um vasinho romano completo ou o crânio de um Neandertal. É que eu nem um simples papel molhado consigo.

Mas convém explicar.

Antigamente os rótulos das garrafas descolavam-se facilmente. Punha-se a garrafa dentro de água e passada uma horinha iam-se encontrar flutuando descansadamente, os retângulos impressos e a garrafa, já despida dos seus pergaminhos, podia-se vender ao trapeiro que vinha gritar:

- Há jornai-zó-garrafach... queira-vender!

Ontem, porque queria aqui mostrar uma garrafa em especial e, como não me imaginava a passá-la pelo scanner (e afinal, teve de ser) experimentei descolar o rótulo. Bom, descobri que, se a cola não era solúvel na água, o papel do rótulo, esse era. Os pedacinhos mais minúsculos separavam-se, cheios de boa vontade, da cola subjacente, abandonando os seus irmãos sem quaisquer remorsos.

Tudo o que se aproveitou, paciente e desajeitadamente colado, foi a gravata vermelha e o colarinho.

A garrafa, claro, tinha história.

Um amigo, lá pelos anos oitenta e poucos, numa de «eu estou cá para ver tudo», viajou até à América do Sul e dessas turísticas andanças trouxe-me, generosa lembrança, uma garrafa de vinho tinto chileno, Concha y Toro, Casillero del Diablo de 81.

De esquerda como somos ambos desde que nos entendemos tant bien que mal neste mundo, logo ali combinámos que eu guardaria preciosamente o precioso líquido para o bebermos quando o Pinochas - vulgo, o ditador Augusto Pinochet, é escusado dizer - fosse derrubado com o estrondo devido e labéu de malfeitor.

O mal é que os anos foram passando. O torcionário, obrigado pelos amaricanos que não aguentavam já tanta má-consciência, deixou-se afastar com garantias de impunidades e de contas bancárias bem recheadas.

Não foi derrubado, como o muro de Berlim, não caiu com estrondo; deu um passo ao lado e recolheu-se a uma privacidade vigilante. Não achámos que houvesse motivos para celebrações. A garrafa do Casillero del Diablo lá ficou pacientemente, deitadinha em repouso. Mudou de casa, ao sabor de divórcios e separações, duas vezes.

Os ex-ditadores não confiam nos médicos dos seus países, et pour cause. Sabe-se lá quando é que, num hospital ou numa clínica, o enfermeiro de serviço ou a chefe da equipe médica, têm um pai ou uma mãe, torturados e mortos, para vingar!

O general Pinochas, sentindo-se envelhecer e já com alguma maleita, resolveu ir para Inglaterra tratar-se. A impunidade precedia-o na Loira Albion e tudo se teria passado pelo melhor se, entre os torturados, mortos e desaparecidos não houvesse uns quantos cidadãos espanhóis, pretexto suficiente para que a justiça de Espanha pedisse a sua extradição.

Rejubilámos e pensámos: «G'anda Baltazar, desta vez é que é!»

Eu fui espreitar a garrafa. O vinho mantinha a cor e o aspecto límpido, não parecia ter pé. Agendámos as comemorações.

Hélas! O Governo de Sua Majestade a Raínha Isabel II, por motivos humanitários, imagine-se, não concedeu a extradição e deixou-o voltar para casa à conta de que, pobre velhinho, já tão doentinho, agora já não seria justiça, apenas vingança!

Devíamos ter bebido o vinho nessa altura. Não se deve querer mais do que este baixo mundo tem para dar. O velho tinha sido tratado como devia, como um criminoso. Safara-se graças a um pretexto reles. Devíamos estar contentes, mas não estávamos. Lembravamo-nos de um Presidente, morto no exercício das suas funções. Tinhamos lido o livro da Isabel Allende, De amor e de sombra, os relatórios da Amnistia Internacional.

Mesmo reduzido a criminoso perseguido pela justiça, queríamos só mais um pouco: que fosse mesmo julgado. Que reconhecesse em tribunal umas culpazitas e que, em seu nome, um advogado pedisse misericórdia ao povo chileno na figura do seu Tribunal. A pena que lhe fosse aplicada nem era importante: para um velho como ele seria sempre simbólica. Mas nós, que ainda sonhamos com a Justiça, com maiúscula, acharíamos bem. Um euro de indemnização aos familiares dos desaparecidos, uns anos de prisão domiciliária... tanto fazia.

E a garrafa do tinto chileno continuou, imperturbável na sua pose de Grande Senhora, à espera do dia adequado.

Mas a esperança renascia. O Pinochas, no seu próprio país, com a imunidade levantada ou coisa assim, era acusado, ia ser réu de coisas passadas durante a ditadura.

Agora é que vai ser, pensámos nós.

Qual o quê. Paulatinamente, confortado com os sacramentos da Santa Madre Igreja, o estafermo passou-se. Que terá ele dito ao seu confessor antes de receber a extrema-unção? Já não importa. Escapou, o crime compensa, pelo menos se for apoiado pelos camonas.

Há dias, sem grande entusiasmo, abrimos a celebrativa garrafa de Concha y Toro, tinto de 1981. Como o Pinochas, também ela tinha morrido: deu para provar, fazer uma saúde silenciosa, mas pusemo-la de parte. Esperara demasiado.

- Filho d'uma vaca d'um... - comentou o meu amigo poisando o copo. - Nem a porcaria de um vinho nos deixou beber!


8 comentários:

Anónimo disse...

Pois é, Meu Velho, não há forma de aprendermos.

tacci disse...

Pois. Quem torto nasce, tarde ou nunca se endireita. Que se há-de fazer?
Um abraço.

Gi disse...

Há um tempo para tudo na vida só que esse tempo, por vezes, chega tarde demais. Foi o caso.
Também não rejubilei mas acredite que foi das poucas vezes que desejei acreditar na existência de uma justiça divina. Já que cá em baixo falharam !

Um beijinho

tacci disse...

Gi, seja muito, muito bem-vinda.
Se tivesse outra garrafa de Concha y Toro ia já daqui abrí-la.
Se os Pinochets e os Vidella existem, há outras pessoas para compensar: o Irmão Roger, o Abbé Pierre, o Dr Shweitzer, o Bertrand Russell...
E sei que, aqui, ao alcance de um clic, há alguns mais.
Um beijinho, Gi.

Gi disse...

Volto eu e o meu amigo desaparece?
Não pode ... :)

Beijinhos

tacci disse...

Claro que não desapareço Gi. O que sou é muito preguiçoso. Enfim, hoje lá consegui sacudir-me e trabalhar mais um nadinha na história do Carlinhos. Espero que goste.
Um beijinho, Gi.

Graza disse...

É quando me lembro destes que gostaria mesmo que houvesse Céu e Inferno.

tacci disse...

Meu caro Grazza, o Céu e o Inferno existem; acredite que o Pinochet, neste momento, está nuzinho em pelo, atado a um poste, besuntado de mel e com as vespas, as formigas e as moscas, em cachos, a arrancar-lhe bocadinhos. Creio até que há lacraus a morderem-lhe os dedos dos pés.
Do outro lado, o Zé Afonso, o Adriano e o Marceneiro estão compor uma cantata muito repenicada e riem-se como putos para a Edith Piaff.
Um abraço, Grazza.