domingo, fevereiro 17, 2008

Mariazinha em Wiriyamu

Felícia Cabrita, Massacres em África, Lisboa, A esfera dos livros, 2008, pag. 257:
»«
"Ele estava a retirar-se da aldeia quando viu a cabeça do miúdo a sair de entre os corpos. Era inadmissível, no meio daquilo tudo, deixar alguém vivo, e os mortos não sofrem. Voltou atrás. O Alferes Abreu gritou: «Foge daí que isso está muito quente!»
Agora vem-lhe muitas vezes à memória aquela imagem. Não tinha mais de quatro anos. Levantou a cabeça, olhou-o, passou a mão pelo rosto cheio de sangue. Tinha a barriga desfeita. Talvez nem sobrevivesse. Talvez... Ergueu a arma e disparou.
Mas claro que houve cenas engraçadas: uns tipos que iam a fugir e são caçados pelo helicanhão, mãozinha da Força Aérea, e ficaram desfeitos. E mesmo anedóticas, como quando atiraram a dose habitual para dentro de uma palhota e um negro saltou com o tecto. Aterrou vivo e foi a caça ao pombo. Ele desata a correr e José Maria a disparar com os outros. «Aí vai disto. Devia ter vinte anos e demos cabo dele.»
Mas há quem não cante de galo nessa noite. entre os oficiais, Silvestre do Rosário chora: «Eu não sou um assassino, fizeram de mim um assassino.» Há assassinos acidentais e profissionais."

3 comentários:

Gi disse...

Oh caramba Tacci. Que isto é leitura da "pesada". Não sei de quem é a autoria da frase "Mas claro que houve cenas engraçadas" , é tão ... tão ... tão desenquadrado no meio dos relatos que se seguem que quase me atreveria a dizer que saído da mente de um assassino . Dos profissionais !

Beijo Tacci, ainda vou arrepiada

Gi disse...

Tacci, tenho um desafio para si no meu canto. 12 palavrinhas apenas :)

Fico à sua espera. Um beijinho

tacci disse...

Gi, a Felícia Cabrita não põe aspas nestas frases, mas eu julgo que são dos entrevistados. Os depoimentos, sobretudo neste caso de Wiriyamu, são de facto arrepiantes. Talvez eu não acreditasse que havia gente que se cruzava connosco na rua e que se orgulhasse de coisas destas, se não tivesse ouvido eu-próprio, naquela altura, relatos muito semelhantes, de testemunhas em que foi preciso acreditar.
Quem são os portugueses, Gi?
Um beijinho.
PS: vou a correr ver do desafio.