sábado, maio 29, 2010

Mentiram-nos este tempo todo?


Quando chegou o 25 de Abril, nós sabíamos que éramos um povo atrasado.

Devíamos à Providência a Graça de sermos pobres, lembram-se? Morávamos ainda em casas de telha vã, chão de terra batida, andávamos quilómetros a pé, no Inverno, com as solas rotas, para chegar à escola: fazíamos a terceira classe e íamos trabalhar.
Desde tempos remotos, os ratinhos e os malteses tinham vindo em ranchos fazer as colheitas e as vindimas, varejar a azeitona ou pescar noutras águas muito para longe das suas terras. Não ganhavam muito, o que amealhavam mal dava para um vestido para a cachopa, um lenço para a velhota, para a onça do tabaco, para o copo de três a festejar o regresso. Outros conseguiam vender uma fazenda ou tinham um parente que os chamava, iam para o Brasil, para a Venezuela.


Tínhamos escapado da II Guerra Mundial, não escapámos aos movimentos de libertação das colónias. Vimos partir o simbólico forte de São João Baptista, depois o Estado da Índia.


A guerra rebentou em três frentes.


Disseram-nos que a Pátria não se discute e que choraríamos os nossos mortos se os vivos não os soubessem merecer.

-

Foi quando descobrimos a Europa, a Europa nos descobriu a nós.

Fomos a salto, os que queriamos fugir da Guerra, os que não aguentávamos esperar por um papel da Emigração.

Trabalhámos duramente, muitas horas por dia, para ganhar aquele pouquinho que, para nós era a fortuna. À noite dormíamos no bidonville.

Os Europeus, por seu lado, descobriram a Civilização do Lazer, descobriram o nosso sol, as nossas praias, a nossa comida de farta-brutos e a nossa ingenuidade meio canhestra, meio interesseira.

Vendemos-lhes cervejas e vinho tinto, trabalhámos no batiment e a servir à mesa, as nossas mulheres fizeram limpezas às Frau-qualquercoisa.

-

Juntámos um dinheirito debaixo dos nossos colchões e logo nos vieram dizer que não era assim: os bancos abriram filiais para captar os nossos pés-de-meia.

Disseram-nos que abríssemos contas, que comprássemos acções, fizéssemos a casa, que comprássemos um carrito a prestações.

A auto-estrada de Lisboa-Porto ia até Vila Franca, sumia-se, depois reaparecia às portas da Invicta.

Tínhamos o Eusébio, mas também tínhamos a maior taxa de analfabetismo da Europa, a menor de estudantes universitários, tínhamos uma censura prévia, a visita de Paulo VI e o Dia da raça.

O que os emigrantes ganhavam, o que os visitantes por cá gastavam, sumia-se nos orçamentos suplementares que reforçavam os gastos do exército. O Algarve ia-se transformando, a pouco e pouco num caos urbanístico.

-
Lisboa já o era.

Bairros inteiros viram demolidas as suas moradias, os prédios mais baixinhos. Em seu lugar surgiam caixotes de linhas mais ou menos direitas, grandes varandas que logo eram fechadas em marquises. As aldeias periféricas, a Amadora, Queluz, o Cacém, Loures, Sacavém e por aí fora, sucumbiram ao cimento armado, ao betão.


A 25 de Novembro de 1967 abateu-se sobre Lisboa uma tempestade. Choveu nessas obras recentes e umas quinhentas pessoas - estimativas oficiais - morreram afogadas, desmoronadas, soterradas.


A polícia modernizou-se para conter as manifestações dos estudantes, dos operários.


-
A 25 de Abril, na sequência de um pronunciamento militar, a população de Lisboa insurgiu-se e, de todos os lados, surgiram as adesões.


Julgava-se, talvez com razão, que a propriedade estava mal distribuída, mal utilizada. Que os monopólios concedidos pelo Estado Novo entravavam o desenvolvimento. Que a especulação imobiliária privava de casa milhares de jovens casais.


Em suma, acreditámos que "o pão que sobrava à riqueza, distribuído pela razão, mataria a fome à pobreza e ainda havia de sobrar pão". Era simples, o programa que quisemos ver realizado e era fácil de o gritar em coro: "a paz, o pão, saúde, educação."


E pintámos essas coisas simples em grandes murais que encheram as paredes nuas.

-

Disseram-nos depois que estávamos errados.

Que das herdades colectivas, das fabriquetas em auto-gestão porque os donos estavam fugidos no Brasil, nada viria senão mais miséria, novas escravaturas.

Falaram-nos nos Gulagues e disseram-nos que o que importava era a liberdade, o direito de escolher e por aí fora.

Que a liberdade de ensino era fundamental e que eram necessárias as universidades privadas.

Que os bancos privados também eram necessários, que a iniciativa privada traria o progresso, que algumas privatizações eram razoáveis.

Em nome da liberdade criaram-se rádios privadas, televisões privadas, permitiu-se a formação de grandes grupos na comunicação.

Trouxeram-nos, do Brazil, de onde regressavam os donos, as telenovelas.

-

A publicidade tornou-se agressiva.

Alguém andou a promover a ideia dos JEEP, quer dizer: jovens empresários de elevado potencial.
Não éramos jeepes?

Não, nós trabalhávamos.

Então não éramos nada. Nada.

Não passávamos férias no clube mediterranée.

Não tínhamos um iate na marina de Belém nem de Vila Moura. As nossas mulheres não vinham na Caras.

Então deixássemos trabalhar quem sabia, quem fazia dinheiro, quem viajava em classe executiva.

Abríssemos caminho porque os gestores, os administradores, os administradores executivos e os administradores delegados tinham mais que fazer.

E que a Europa estava connosco.

-

Aderimos à CEE.

Não à CDE, a comissão democrática eleitoral de antes do 25 de Abril. À CEE, ao mercado comum, à Europa.

Nós que fizéssemos os cursos de actualização, que eles pagavam. Que modernizássemos a nossa frota, que eles pagavam. Que reconvertessemos as nossas metalo-mecânicas e as nossas fiações que eles pagavam.

Pagaram.

Mas disseram-nos que tínhamos de liberalizar a nossa economia que era muito fechada.

Que tínhamos de acabar com os monopólios.

Que tínhamos de emagrecer o estado.

Que tínhamos de deixar morrer a Lisnave e a Sorefame.

Disseram-nos que o crédito era fácil.

Disseram-nos que, finalmente, estávamos a apanhar a Europa.

Disseram-nos que precisávamos de mais auto-estradas e mais uma travessia do Tejo.

Acreditámos e tudo isso foi feito.

E disseram-nos mais: precisávamos de um novo aeroporto, outra travessia do Tejo, de combóios de alta velocidade, de submarinos.

-

Explicaram-nos a seguir que a economia mundial estava em crise e que já não tínhamos crédito.

De nada valeu dizermos que trabalhávamos, que sempre tínhamos pago as nossas contas.

Disseram-nos que não éramos competitivos.

Que a nossa produtividade era fraca.

Que continuávamos analfabetos, sofríamos de iliteracia profunda, que éramos os piores a matemática.

Disseram-nos que o dinheiro que tínhamos descontado toda a vida não chegava e que tínhamos de fazer cortes nas despesas de saúde, subscrever seguros de saúde pagando um pouco mais.

Disseram-nos que tínhamos demasiados velhos, que a população estava envelhecida.

Disseram-nos que éramos dispensáveis e começaram a despedir-nos.

E já nem sequer nos dão explicações.

-

Mentiram-nos este tempo todo?

Estão a mentir-nos agora?

12 comentários:

Marreta disse...

Substituam-se os compêndios de história recente portuguesa por este post! E se possível abatam-se os políticos recentes da história portuguesa.

Saudações do Marreta.

Graza disse...

Bravo Tacci! Bravo! Substituam-se os compêndios.

jad disse...

Caríssimo, Tacci.

É evidente a depressão que transpira do teu texto. Mas, também por isso, ele é excelente. sofremos de uma depressão que, como todas as depressões, se foi insinuando em pequenos sinais e que acaba por nos dominar e, caso não seja tratada com o remédio adequado, acabará por nos prostrar perante a realidade, sem remédio.

Excelentíssima análise, Tacci. E se fosses mais para trás, para o sec.XIX, XVIII, XVII, XVI e mais ainda, a depressão seria ainda maior.

Não sei se nos mentiram porque a mentira exige a consciência do erro intencional e suspeito que se tratou essencialmente de ignorância e boa vontade (nada a ver com a kantiana, claro).

Abraço

ana disse...

eu que sou terra a terra: mentiram-nos? não podemos questionar o que nos dizem?

tacci disse...

Marreta:
Há, concerteza, pessoas mais competentes para escrever a história dos portugueses. Mas nós, que supostamente temos direito de cidade, não teremos o direito de exigir respostas? Ou só podemos ouvir as soezices do senhor primeiro ministro?
Um abraço.

tacci disse...

Graza:
Precisamos primeiro de escrever o novo compêndio, não é?
Eu cá vou dando um contributozinho modesto - mas muito irritado.
E obrigado pela citação no Arroios.

tacci disse...

Jad:

O termo «depressão» assusta-me. É claro que já estive deprimido um bom monte de vezes, umas vezes com razões muito sólidas, outras bastante menos.
Mas creio que agora, do que se trata mesmo, é de uma zanga profunda.
Sou muito céptico acerca da inocência das pessoas, sobretudo a dos militantes da ignorância; sabes a que me refiro?
A do decisor que ignorou o risco que corria a ponte de Entre-Rios, a do que ignorou o risco do sangue contaminado com o HIV, o que não mandou substituir os filtros nos aparelhos de hemodiálise, a do que mandou reduzir as despezas de monitorização de um túnel que foi abaixo, o que escolheu o traçado do IP4, o que decidiu nacionalizar os bancos insolventes...
Onde pararia a lista dos que «ah!, ninguém podia prever! ora uma coisa destas...»?

Um abraço, Zé.

tacci disse...

Claro que podemos, Ana.
O que ainda não conseguimos foi obrigá-los a responder sem ser com nova mentira.

jad disse...

Caríssimo, Tacci.

Não era ao autor que se dirigia o diagnóstico, era ao país de que ele retratou tão bem o seu estado depressivo e, nalguns momentos, neurótico.

Tens razão em todo o caso: não saber não serve de muito quando o efeito da ignorância possa ser pernicioso para outros. Sobretudo naqueles que chamas "militantes da ignorância". Palpita-me, contudo, que mais do que ignorância o que aqui se mostra é o nosso endémico "logo se vê". Isto, claro, partindo do princípio que os decisores desconheciam a determinação causal as suas acções ou omissões.

Tu zangas-te, eu zango-me, eles zangam-se, andamos todos zangados. E todos temos razões para a zanga. Só que habituámo-nos a ter tão pouco que, quando nos dão um amendoim, dobramo-nos até ao chão agradecidos. E lá se vai a zanga.

Abraço, Tacci.

Elenáro disse...

Excelente texto! Fantástico! Que belíssimo resumo da história recente de Portugal.

tacci disse...

Pois é, Jad, temos de deixar de gostar de amendoíns. Ou então, exigir o resto do pacote.
Um abraço.

tacci disse...

Obrigado, Elenário.
Seja bem vindo.