quinta-feira, maio 13, 2010

Subsídios para o Livro de Aka XXIII

O puto aproximava-se num enviezado deslizar,
mansinho como se não fosse dali,
os ténis gastos, num repente pontapearam o pombo
que rolou e logo foi agarrado, pescoço partido num gesto seco.
Aka agarrou-o pela roupa.
- Larga, gritou o puto.
Rolou para fora da t-shirt, mostrando o corpo sujo, de ossinhos miudos, nódoas negras de andar à pancada, correadas de pai, apertos de chui, esfoladelas de tombos.
Aka apanhou o pombo caído, quente, magro também ele, julgou sentir um último estremecimento.
- É meu, gritou ainda o puto, a encurtar o metro de distância, uma pedra bem cerrada na mão esquerda.
- Que mal te fez ele, perguntou Aka ainda zangada, olhos nos olhos corruscantes.
- Que mal te fez a lagosta que tu comeste ontem, ó parvalhona?
- Mas tu não vais comer isto.
- Eu? Não. Eu deito-o fora e tu vais apanhá-lo.
Aka abrandou, estendeu-lhe a t-shirt e o pequeno cadáver.
- Não devias comer pombos das cidades. Estão cheios de doenças. E sabem a esgoto.
- É bom saber, disse o puto com um riso súbito nos olhos.
- O quê?
- Que os esgotos sabem a pombo frito.
- Raspa-te antes que eu me arrependa!
- Heu, que medo!
Dá-me um euro e digo-te uma coisa que tu não sabias.
Aka estendeu-lhe a moeda.
- O quê?
- A tua lagosta. Eu vi uma vez.
Deitaram a gaja para a água a ferver.
Parou um instante como quem recorda alguma coisa preciosa:
- Havias de ouvir os ruídos que ela fez a morrer.
- Puto estafermo! - murmurou Aka.
Mas ele já ia longe, saltitante,
com o seu pombo e o seu euro.
-

6 comentários:

Anónimo disse...

Gostei, e lembrei-me das pessoas sensíveis...e como quem não quer a coisa falta-me um desenho (ou um desejo?)
anita

tacci disse...

Ups!
Não tenho a certeza de ter compreendido, mas hélas!
Um abraço na mesma.

ana disse...

"As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas"

e as saudades do R? e a prenda de anos?

tacci disse...

É verdade.
Deve ser por isso que eu nunca como galinha.
Sabe a pombo frito.

jad disse...

Boa noite, Tacci.

Que saudades da tua Aka!
Que história encantada!
Que risada da tua abstinência galinácea a saber a pombo frito!

Esta história fez-me lembrar os pombos que Hemingway apanhava no inverno no Jardin de Luxemburg,no tempo em que era pobre, para matar a fome e alimentar a escrita.

Abraço.

tacci disse...

Também já tinha saudades da Aka. A história dela, aliás, passa-se tb. no Luxembourg. E aos predadores como o puto romeno (?) e o Ernest, há que perdoar-lhes. Aos outros é que custa mais.
Abraço.