Russell entrou nas nossas jovens vidas, quem sabe se pela pior das razões.
O seu livro Porque não sou cristão, lido às escondidas na edição brasileira, não terá tido o impacto que merecia e a razão é simples. Não o lemos como a defesa de um racionalismo coerente e algo radical, mas unicamente como uma contestação aos senhores padres de Religião e Moral, aos nossos pais, ao salazarismo tacanho que atabafava a nossa irreverência sem nada nos dar em troca.
As organizações de juventude estavam severamente controladas: os Escuteiros praticamente nas mãos da Igreja, a Mocidade Portuguesa que nos obrigava a uma preparação militarizante e a saudar de braço estendido, como as juventudes hitlerianas, era obrigatória nas escolas.
Por todo o lado era o discurso patriótico, anti-comunista, contra a dissolução dos costumes e pela virgindade das meninas que eram noivas e irmãs, puras como Nossas Senhoras.
Claro, o episódio da ilha dos amores tinha sido cortado na edição escolar d'Os Lusíadas e nós íamos lê-lo na edição de algum mais afortunado.
E depois começou a guerra.
A fé e o Império, as grandes navegações que fizeram os nossos maiores e, por isso, Angola é nossa e resto também.
Lá foi a nossa juventude, de espingarda às costas, para as colónias, com a benção da Igreja, para defender a civilização cristã e ocidental.
Estávamos fartos das grandes palavras.
-
A literatura «lá de fora», sobretudo a francesa, abriu-nos para outros pensares: lemos tudo, desde a Françoise Sagan ao Sartre, do Roger Martin du Gard até ao Claude Roy.
E o Bertrand Russell conduziu alguns de nós, pelo menos, ao pacifismo; compreendemos que uma civilização, por muito cristã e ocidental que fosse, se assentava a defesa dos seus valores na esquadra americana e nos arsenais nucleares, não valia grande coisa.
Orgulhosos, começámos a usar o emblema do seu movimento contra a bomba atómica. Era um círculo branco sobre fundo preto, com um diâmetro vertical, norte-sul, e as direções sudoeste e sudeste assinaladas a branco também.
Os mais velhos olhavam para nós com alguma melancolia.
Ao ver-me com o vistoso emblema, o Pai de um dos nossos amigos contou uma história dos tempos em que a Espanha estava em Guerra - dita civil porque o exército estava quase todo do lado dos revoltosos e do lado do Governo livremente eleito só estavam os civis. Daqui de Portugal ia todo o apoio para a causa dos generais: o major Botelho Moniz, com os seus viriatos, claro, mas a prisão e a entrega de refugiados na fronteira, a colaboração entre polícias, comida e armas, de todos os modos que o regime em Portugal podia apoiar a revolta.
O seu livro Porque não sou cristão, lido às escondidas na edição brasileira, não terá tido o impacto que merecia e a razão é simples. Não o lemos como a defesa de um racionalismo coerente e algo radical, mas unicamente como uma contestação aos senhores padres de Religião e Moral, aos nossos pais, ao salazarismo tacanho que atabafava a nossa irreverência sem nada nos dar em troca.
As organizações de juventude estavam severamente controladas: os Escuteiros praticamente nas mãos da Igreja, a Mocidade Portuguesa que nos obrigava a uma preparação militarizante e a saudar de braço estendido, como as juventudes hitlerianas, era obrigatória nas escolas.
Por todo o lado era o discurso patriótico, anti-comunista, contra a dissolução dos costumes e pela virgindade das meninas que eram noivas e irmãs, puras como Nossas Senhoras.
Claro, o episódio da ilha dos amores tinha sido cortado na edição escolar d'Os Lusíadas e nós íamos lê-lo na edição de algum mais afortunado.
E depois começou a guerra.
A fé e o Império, as grandes navegações que fizeram os nossos maiores e, por isso, Angola é nossa e resto também.
Lá foi a nossa juventude, de espingarda às costas, para as colónias, com a benção da Igreja, para defender a civilização cristã e ocidental.
Estávamos fartos das grandes palavras.
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A literatura «lá de fora», sobretudo a francesa, abriu-nos para outros pensares: lemos tudo, desde a Françoise Sagan ao Sartre, do Roger Martin du Gard até ao Claude Roy.
E o Bertrand Russell conduziu alguns de nós, pelo menos, ao pacifismo; compreendemos que uma civilização, por muito cristã e ocidental que fosse, se assentava a defesa dos seus valores na esquadra americana e nos arsenais nucleares, não valia grande coisa.
Orgulhosos, começámos a usar o emblema do seu movimento contra a bomba atómica. Era um círculo branco sobre fundo preto, com um diâmetro vertical, norte-sul, e as direções sudoeste e sudeste assinaladas a branco também.
Os mais velhos olhavam para nós com alguma melancolia.
Ao ver-me com o vistoso emblema, o Pai de um dos nossos amigos contou uma história dos tempos em que a Espanha estava em Guerra - dita civil porque o exército estava quase todo do lado dos revoltosos e do lado do Governo livremente eleito só estavam os civis. Daqui de Portugal ia todo o apoio para a causa dos generais: o major Botelho Moniz, com os seus viriatos, claro, mas a prisão e a entrega de refugiados na fronteira, a colaboração entre polícias, comida e armas, de todos os modos que o regime em Portugal podia apoiar a revolta.
Aos anti-franquistas portugueses, platónicos apoiantes da República Espanhola, restava o uso de um emblema da AEG quando o podiam arranjar.
Vale a pena recordar que a AEG era uma enorme multinacional alemã, ligada aos equipamentos eléctricos. Em 1936, quando eclodiu a revolta dos militares em Espanha, de certeza que estava a trabalhar para o Hitler, o mesmo que, de imediato, enviou a «divisão condor» a apoiar Franco.
Parecia contraditório.
Porém, para os iniciados, AEG não significava Allgemeine Elektricitäts-Gesellschaft, mas sim, em portunhol, Arriba Espanha Governamental. Para a polícia política de Salazar, valia o equívoco.
- Mas - concluiu o Pai - nós reconhecíamo-nos uns aos outros.
Muito mais tarde, na Faculdade, para lá das aulas e das orientações ideológicas, deparei-me com a obra de Russell.
O positivismo e depois o positivismo lógico tiveram um importante papel no pensamento filosófico em Portugal, pese embora aos integralistas e saudosistas. Porém, depois de Vieira de Almeida se ter reformado e de o curso de Filosofia em Lisboa ter levado a volta que levou, descobrir a escola de Viena, o empirismo lógico e coisas dessas, era uma lança em África para os alunos.
Conhecia já o livrinho - que de «inho» só tem o tamanho - de 1912, Os problemas da filosofia, editado em Coimbra, com tradução de António Sérgio.
Um dia porém, em 73, meses antes do 25 de Abril, encontrei, sei lá por que milagre, An inquiry on meaning and truth, na edição francesa da Flammarion, discretamente entalado nas estantes da Livraria Universitária, ali ao Campo Grande.
Toda esta época do meu percurso é confusa. Julgo que andava já às voltas com Wittgenstein, quando tentava escrever a tese de licenciatura e lembro-me de ter devorado o ensaio do Russell como um bulímico a engolir pastéis de nata.
Juro-vos que não consegui abarcar nem metade de metade.
Mas ficou-me a saudade de qualquer coisa que não tinha tido e que não poderia vir a ter nunca mais: gostaria de me ter sentado lá atrás, num anfiteatro, talvez em Cambridge, talvez nos States, escudado pelo meu caderno e pelos meus desenhos, a ouvir as aulas de Bertrand Russell.
-
O Guimarães Rosa, num dos contos de Sagarana, creio eu, diz uma coisa interessante, mais ou menos assim:
"Quem sabe se, algures, num país onde eu nunca fui, e onde não irei jamais, existe a mulher ideal, a minha alma gémea..."
E pimba! O narrador desse conto resolve casar-se com a prima.
Eu, modestamente e à minha maneira, confesso que discordo.
Um dos meus maiores pecados, digo eu, pelos quais terei de dar contas um dia, foi nunca ter partido à procura dessas coisas excepcionais, desse quadro, dessa pequena escultura, desse Maio de 68, dessas Brigadas Internacionais em que combateu o Orwell, desse professor que me poderia ter ensinado aquilo de que talvez nem faça a menor ideia.
Não é um verdadeiro desperdício?
Vale a pena recordar que a AEG era uma enorme multinacional alemã, ligada aos equipamentos eléctricos. Em 1936, quando eclodiu a revolta dos militares em Espanha, de certeza que estava a trabalhar para o Hitler, o mesmo que, de imediato, enviou a «divisão condor» a apoiar Franco.
Parecia contraditório.
Porém, para os iniciados, AEG não significava Allgemeine Elektricitäts-Gesellschaft, mas sim, em portunhol, Arriba Espanha Governamental. Para a polícia política de Salazar, valia o equívoco.
- Mas - concluiu o Pai - nós reconhecíamo-nos uns aos outros.
Muito mais tarde, na Faculdade, para lá das aulas e das orientações ideológicas, deparei-me com a obra de Russell.
O positivismo e depois o positivismo lógico tiveram um importante papel no pensamento filosófico em Portugal, pese embora aos integralistas e saudosistas. Porém, depois de Vieira de Almeida se ter reformado e de o curso de Filosofia em Lisboa ter levado a volta que levou, descobrir a escola de Viena, o empirismo lógico e coisas dessas, era uma lança em África para os alunos.
Conhecia já o livrinho - que de «inho» só tem o tamanho - de 1912, Os problemas da filosofia, editado em Coimbra, com tradução de António Sérgio.
Um dia porém, em 73, meses antes do 25 de Abril, encontrei, sei lá por que milagre, An inquiry on meaning and truth, na edição francesa da Flammarion, discretamente entalado nas estantes da Livraria Universitária, ali ao Campo Grande.
Toda esta época do meu percurso é confusa. Julgo que andava já às voltas com Wittgenstein, quando tentava escrever a tese de licenciatura e lembro-me de ter devorado o ensaio do Russell como um bulímico a engolir pastéis de nata.
Juro-vos que não consegui abarcar nem metade de metade.
Mas ficou-me a saudade de qualquer coisa que não tinha tido e que não poderia vir a ter nunca mais: gostaria de me ter sentado lá atrás, num anfiteatro, talvez em Cambridge, talvez nos States, escudado pelo meu caderno e pelos meus desenhos, a ouvir as aulas de Bertrand Russell.
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O Guimarães Rosa, num dos contos de Sagarana, creio eu, diz uma coisa interessante, mais ou menos assim:
"Quem sabe se, algures, num país onde eu nunca fui, e onde não irei jamais, existe a mulher ideal, a minha alma gémea..."
E pimba! O narrador desse conto resolve casar-se com a prima.
Eu, modestamente e à minha maneira, confesso que discordo.
Um dos meus maiores pecados, digo eu, pelos quais terei de dar contas um dia, foi nunca ter partido à procura dessas coisas excepcionais, desse quadro, dessa pequena escultura, desse Maio de 68, dessas Brigadas Internacionais em que combateu o Orwell, desse professor que me poderia ter ensinado aquilo de que talvez nem faça a menor ideia.
Não é um verdadeiro desperdício?
8 comentários:
Que desperdício, sim!No meio de tanto sonho, eu também acabei por casar com o primo!... Eu queria ter conhecido de pertinho a Joan Baez, o Bob Dylan e os outros todos que me encantavam e ainda hoje me encantam...eu queria ter aprendido a dançar com a Pina Bausch...eu queria ter ouvido o Sartre a falar sobre a Liberdade e conversado com a Simone de Beauvoir de mulher para mulher (de preferência no Café Flore!)...eu queria ter vivido em África, continente que sempre me fascinou, e nunca passei de Cabo Verde...
Contudo, dou comigo a ousar mudar a frase do Guimarães Rosa: "Quem sabe se, algures, num país onde eu nunca fui (mas onde talvez ainda vá)existe......a minha alma gémea!
É certo que eu casei com o primo, mas já me descasei!
Obrigada, Tacci, pelo belo texto e pela oportunidade que ele me deu de recordar "tanta vida"!
Beijinhos
Bertrand Russell marcou o final da minha adolescência. É sempre bom revisitar esse tempo, ainda mais pela tua genial pena!
Obrigada e um beijinho.
tá certo, tá certo! mas porquê dar já como terminado o sonho?
beijinhos :)
Boa noite, Tacci.
Venho para dizer duas coisas:
Uma: continuo à volta com o tempo e a impossibilidade de fazer tudo o que ainda há uns mesitos acreditava ser posível fazer;
duas: é uma delícia o que escreves e, fruto disso, é um encanto ler-te.
Abraço.
Beijinhos, Amélia.
Conheces o livro do Vasco de Castro, «Montparnasse mon Village»?
É um belo livro para se ir ler, um dia destes, na esplanada do Flore ou do Le Select: ele estava lá nessa altura e lê-lo é assim como que emendar um bocadinho do nosso passado.
Lelé, não sei se devo agradecer esse «genial» que ainda um dia me faz rebentar para aqui de vaidade, como a rã que queria ser maior do que o boi. Já viste? Ficava aqui com a casa cheia de pedaços de Tacci colados pelas paredes e pelo tecto.
Beijinhos.
Maria
Não vale a pena enganarmo-nos: já não posso ir assistir às aulas do Russel, nem, como diz a Amélia ali em cima, ir conversar com o Sartre no Café Flore.
Ter a noção do desperdício de grande parte do nosso tempo, das nossas vidas deveria levar-nos a perguntar: que podemos fazer para emendar o passado?
Ou, dito de outra maneira que eu sei que a Maria entende e com palavras que talvez não devessem ter caído em desuso: «não adies por mais tempo a salvação da tua alma.»
Seja o que for que entendamos por «alma» e seja qual for o nosso caminho para isso.
Um abraço.
Jad:
Porcaria de falta de tempo que te tem mantido longe.
Mas vai tirando um migalhinho de vez em quando e aparece. Vale?
Um abraço também.
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