segunda-feira, julho 25, 2011

Melro-preto comum, ao que dizem.

Turdus merula, v. L. 

O Guerra Junqueiro, não sem alguma soberba, afirmava que o tinha conhecido:
"O Melro, eu conheci-o: era negro, vibrante, luzidio..."
Mais ou menos como se eu chegasse aqui e escrevesse: «uma dia destes, em conversa com o Dalai-Lama...»
Ou mesmo pior: se numa roda de admiradores embasbacados eu atirasse: «Pois ainda o mês passado, a Amy, sim a Winehouse, me dizia: porreiro, pá... e pensar que a pobre rapariga já lá está, a dar contas ao Altíssimo... ah, vocês não sabiam que ela era muito religiosa?»
E pronto: lá ia eu por aí fora, inventando troca de mails, garrafas de Côtes du Rhône partilhadas noites fóra à mistura com risos e confidências.
Também o Guerra Junqueiro não se faz rogado, também ele era íntimo do Melro.
"Assim que o padre-cura abria a porta que dá para o passal" escreve ele, "repicando umas finas ironias, o melro, dentre a horta, dizia-lhe: «Bons dias!» E o velho padre-cura não gostava daquelas cortezias."
Tivesse ele ficado por aqui e, digo-o francamente, seria um soberbo poema, digno de um Alexandre O'Neill ou mesmo de um Mário-Henrique Leiria - e de mim, que não desdenharia de o assinar.
Mas não. Acrescenta-lhe mais uma centena, centena e meia de versos a puxar para o místico-sentimental e estraga tudo.
É como se eu, depois de insinuar uns mails trocados com a dita Winehouse e de acrescentar «mas pronto, coitada, não falemos mais dessas coisas íntimas, há que ter respeito pelos mortos», me pusesse para ali a acrescentar pormenores e historietas e mais pormenores e mais historietas até ninguém me poder ouvir, quanto mais acreditar.
Que eu, a bem dizer, também não acredito que o Guerra Junqueiro tivesse conhecido algum melro na vida. Viu-os a saltitar, ali na casa da Silva Carvalho, a Santa Isabel, que além das paredes e tectos pintados por um mestre francês tinha um frondoso jardim. Viu que era preto, achou que era "luzidio, madrugador, jovial" e pronto.
Sabia o mesmo que eu, que tenho aqui ao lado, numas silvas, uma família deles e os vejo aos pulinhos na erva lá para o fim da tarde.
Mas, ao contrário do poeta que só tinha umas sebentas lá de Coimbra e uns romances comprados em Paris, eu tenho a internet e, portanto, a wikipedia: e lá vou eu ver que o Melro, além de uma vasta parentela, também usa, para efeitos burocráticos, o nome de Turdos Merula.
Nada mau, tomara eu, o nome até tem ressonâncias aristocráticas, imaginem, por exemplo, Dom Rui de Turdos, marquês de Mérola. Os amigos sabedores destas coisa tratavam-me familiarmente por «o Mérola» como poderiam dizer «o Niza» ou «o Ficalho». 
Mas não: lá vêm as letrinhas pequeninas vL, para que não haja enganos. Tal como em Oxford, diz-se, se acrescentava a alguns nomes as abreviaturas s. nob. (sem nobreza, claro) para que nenhum aristocrata duvidasse de que se lhes podia pedir dinheiro emprestado e que não era preciso pagar, as ditas letrinhas querem dizer que o Merlo é um simples comum, que Lineu o considerava «vulgar».
E pronto, cá estou eu mais uma vez a embirrar! Há bocadinho era com o Guerra Junqueiro, agora é com o Lineu, vejam lá, pobres homens já tão falecidos.
Mas, que querem? Se um melro fosse assim tão vulgaris como ele diz, toda a gente os tinha (aos tais melros merula, claro), não era só a Ana Bacalhau dos Deolinda lá no quarto dela.
E sobre melros é tudo quanto eu quero dizer, excepto mais uma coisinha: mesmo snobe, mesmo sem Dom, acreditem, não me importava nada de ser um.

8 comentários:

Anónimo disse...

E és! És um turdus que "é um prodígio"...Beijinhos

jad disse...

Boa noite, Dom Rui de Turdos, marquês de Mérola. É sempre um imenso prazer ler a ironia que tens sempre saltitante no sorriso espreitando atrás do bigode.

Abraço

tacci disse...

Merci, anónima.
Beijinhos para ti também.

tacci disse...

Zé, há que tempos não aparecias.
A tua falta foi muito sentida por estas bandas.
Um grande abraço.

jad disse...

Eu próprio tenho sentido a minha falta por estas e outras bandas!

Abraço

jad disse...

Também eu tenho sentido muito a minha falta por estas (e outras) bandas!

Abraço

jad disse...

Houve ali acima qualquer coisa que correu mal na minha mensagem!
Mil desculpas.
Abraço

tacci disse...

Se não é indiscrição: o que aconteceu para andares a fazer falta a ti mesmo?
Escreve-me um mail um destes dias.
Ok?
Um grande abraço.