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o CADERNO de MAYA
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Não é um grande livro.
Não que eu alguma vez soubesse o que quer dizer a expressão «grande livro».
De A Montanha Mágica, de Thomas Mann, as coisas mais importantes que recordo são os espantosos discursos de Mynheer Peeperkorn:
- Minha filha - disse ele. - Vai tudo bem. Mas que acha?... Por favor, não me interprete mal. A vida é breve, a nossa capacidade de satisfazer-lhe as exigências... É assim que... São factos, minha filha. Leis. Inexoráveis. Em resumo, minha filha, em resumo, perfeitamente.
E é tudo, julgo, do prémio Nobel de 1929.
De Isabel Allende tenho presentes muito mais coisas: primeiro que tudo, as suas espantosas avós, os seus espantosos avôs.
As diversas voragens das vidas que vamos sofrendo fizeram-me perder, de há muito, livros como A casa dos espíritos, De amor e de sombra, ou Eva Luna (que hei-de voltar a comprar: é o que mais vontade tenho de reler neste momento, pelo menos.)
Mas julgo recordar uma longa fila de avós sempre presentes, nem sempre de forma discreta, mas acolhedoras, como o ninho a que é bom regressar quando se tem a asa ferida.
Desde a céptica Avó Cold d' A Cidade dos Deuses Selvagens até esta absurda avó Nini que criou Maya na confiança de que os milagres estão lá para nos salvar quando tudo o mais nos abandona, os avôs são os espíritos benfazejos que pairam à nossa volta.
Gunther Grass, em O tambor, também fala de uma avó acolhedora, debaixo de cujas saias o anãozinho Óscar se refugia. Mas trata-se de avós como as de antigamente: velhotas ainda enérgicas, mas tão só isso.
As avós de Isabel Allende são (quase todas) sexuadas e é por pouco que não as vemos de mini-saia. Os avôs desejam-nas, mimam-nas, protegem-nas, como amam e protegem as netas.
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A segunda coisa que logo se me apresenta, quando penso Isabel Allende, é a amizade. A amizade fiel, eterna e desinteressada.
Maya, mesmo na mais negra miséria, encharcada em drogas, Maya tem um amigo, o subnutrido Freddy que lhe salva a vida por duas vezes - e o seu avatar, Juanito, outra. Eva Luna tem um fiel amigo transexual, a heroína de De amor e de sombra, faz amizade com um padre que a acompanha na desesperada busca pelos desaparecidos do regime de Pinochet.
Não há uma grande variedade nas personagens de Isabel Allende: vão-se parecendo umas com as outras, mas nós gostamos de as reencontrar, como gostávamos de reencontrar o Júlio, a Ana, a Zé e o David quando líamos os Famous Five. São humanas, são falíveis, pecadoras e aventureiras, mas há nelas, salvo quando lhes está destinado o papel de maus da fita, uma generosidade que escasseia, cada vez mais, nos nossos horizontes.
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Uma nota final: este livro é, de algum modo o reencontro de Isabel Allende com o Chile - mesmo se quase como se fosse uma mera turista na ilha Chiloé - e com as memórias do golpe vibrado por Kissinger nas esperanças dos anos sessenta: um mundo onde a felicidade era possível.
Cito apenas uma pequena passagem para não roubar a surpreza a quem quiser ler o livro:
"Aquela violência era tão inimaginável no Chile, orgulhoso da sua democracia e das suas instituições, que Manuel foi incapaz de avaliar a gravidade do que sucedera [...]. Levaram-no de olhos vendados até ao Estádio Nacional, que estava transformado em centro de detenção. Ali se encontravam pessoas que haviam sido presas durante aqueles dois dias, maltratadas e famintas, que dormiam deitadas no chão de cimento e passavam o dia sentadas nas bancadas, rezando em silêncio para não incluídas entre os desafortunados que conduzidos à enfermaria para interrogatório. Ouviam-se os gritos das vítimas e, à noite, os tiros das execuções."
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