Tome-se um ponto de vista ao acaso, uma cadeira de plástico hospitalar, por exemplo, de frente para a fila de espera e é quase fácil imaginar
que aquele ali bate na mulher, e a mulher a quem ele bate é como aquela além, de ar amargurado, a quem ninguém respeita,
nem já os filhos, quando tiver netos pior será, tornada transparente como um móvel que só estorva, em que se tropeça,
por enquanto diz-se «mãe, mãe, não há leite» ou «não compraste cerveja, nesta casa nunca há nada...»
e ela vinga-se num marido tetraplégico
como aquele outro encostado além, impotente na sua cadeira de rodas por causa da escavadora ébria e do seguro que apodrece nas prateleiras do tribunal cível
e vai-se por aí fora, a cada um o seu vício, a sua mesquinhez, a sua crueldade,
distância, mesmo sem razão para os detestar, distância,
de muito muito longe já nem parecem gentes,
vistos lá em baixo no passeio, são o carreiro de formigas, pontinhos pretos sem ego, como dizia o Harry Lime (e o Graham Green)
"Look down there. Tell me. Would you really feel any pity if one of this dots stopped moving forever?"
E os pontinhos apertam-se além, no cais à espera do metro e depois, na carruagem, todos de olhos baixos, corpo contra corpo, são gentalha,
ao pé, mesmo ao pé, tudo se complica,
quando os víamos como multidão, comungávamos porque éramos nós e é o povo em marcha «os ricos que paguem a crise» e somos campeões,
ou enraivece, são eles, os comunas, os lagartos, os lampiões, a turba desordeira
«vai trabalhar, cabrão!»
ah, mas depois vem um senhor, diz «com licença» e chama a senhora, ainda bonita, modestamente vestida como ele, «senta-te aqui», «não, senta-te tu», «não, vá, que eu já me sento ali adiante»
e dás contigo de pé, feito parvo, e ouvires-te dizer, «não, não, sente-se, sente-se, eu estava mesmo a ir lá fora ao bar beber um café...»
"Would you feel any pity", se eles ainda fossem pontinhos, lá longe?
Sim, gaita. Sim, mesmo se personagens de ficções.
Cá fora, entre ti e o bar, atravessa-se uma réstia de Sol.
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