terça-feira, setembro 25, 2018

A FÁBRICA DAS ALMAS
(Dedicado à Beatriz Lamas de Oliveira)

-
Antigamente, muito muito antigamente, para aí quando Deus ainda andava pelo Mundo, as almas eram assim como os cereais, que só foram domesticados, num sítio longínquo, chamado Neolítico.
Antes, portanto, só não cresciam nas bermas dos caminhos porque não havia caminhos nenhuns, só umas veredazinhas de pé posto. As almas, por isso, iam crescendo ao Deus dará. Passava uma futura mãe doninha, ou raposa, ou o que fosse, e as almas entravam pela barriga onde os cachorrinhos já se iam acotovelando para nascer. Às vezes, muito raras felizmente, não havia almas que chegassem e um bebé nascia morto ou quase, quase. Era tão triste que, não raro, acontecia o milagre: uma alma vinha a correr mais de longe, chegava esbaforida, mas ainda a tempo. O bebé demorava mais um bocado a recuperar, mas aí estava ele, passado umas horas ou, vá lá, uns diazitos, a empurrar os outros, a brincar, às cambalhotas e a mamar pela vida.
Com as devidas diferenças, era assim com todos os outros bichos, desde as lagartixas às abelhas, aos pardais e às sardinhas.
Com os homens foi o mesmo durante muitas e muitas voltas do Sol à roda deste pontinho do universo. Mas, claro, os tempos passam, os homens foram-se juntando em aldeias, e como aprenderam a semear o trigo, também aprenderam a fazer umas almas por outras, assim artesanalmente, o xamã juntava uns ingredientes, fazia umas rezas e encantamentos e pronto, Ia havendo almas para todos.
Não quer dizer, claro, que uma rapariguita que fosse dar uma volta com o namorado ali ao bosque mais próximo não apanhasse uma alma, digamos, selvagem, para o filho que havia de nascer.
Infelizmente apareceu um povo que exigia o monopólio do fabrico de almas: só as almas «Jeová» eram consideradas genuínas. E, ainda por cima, só se encontravam disponíveis nuns sítios chamados Sinagogas onde os estranhos ao povo eleito não podiam entrar. Os outros povos, coitados, mal ou bem, expulsos ou massacrados, lá iam tendo os seus xamãs.
Dizem os entendidos que a polémica que custou a vida a homens bons,como Jesus ou João Baptista, estalou como uma guerra feroz. Dum lado estavam os que achavam que as «Almas Jeová» deviam ser também concedidas aos gregos, aos romanos e egípcios, e pronto, a toda a gente, Do lado oposto, entrincheirados na Sinagoga, os que continuavam a defender que as almas são só para o povo escolhido e basta. Esta guerra tem tido episódios tristes, tantos que não vale a pena citar nenhum.
O certo é que esta primeira batalha pela globalização foi sendo ganha pelo grupo conhecido como «Cristão», sobretudo a partir do momento em que o poder político e militar do Império Romano lhe emprestou o braço forte: o imperador Teodósio I tornou-o «religião oficial do estado». As «Almas Jeová» expandiram-se e passaram a estar disponíveis até mesmo para os escravos, desta vez nas Igrejas também.
É claro, outras fábricas de almas, como as Mesquitas foram surgindo, e continuaram a expansão por esse mundo fora, dando origem a cenas muito, muito tristes, guerras e, nos nossos dias já, bombardeamentos num quase, todos contra todos, só dinheiro é que parece importar nesta questão de Almas.
E a produção artesanal, perguntarão. Pois, na verdade, nunca parou. Perseguida pelas Inquisições, umas vezes sob a acusação de «judaísmo», outras de «feitiçaria», e sempre de «heresia» foi resistindo como poude, Tem até recrudescido um pouco nestes últimos tempos graças à tendência para um certo sincretismo religioso que privilegia, estamos em crer; o misticismo em detrimento dos rigores formalistas.
E pronto. Espero não vos ter maçado muito.

Sem comentários: