
Se alguma coisa democratiza o futebol - e aqui o verbo leva toda a carga possível de vulgaridade - é o facto de a gente poder falar dela sem qualquer preparação.
Todos nós, os que somos já suficientemente antepassados, jogámos à bola na rua, à revelia das leis de então: ia-se comprar a «chincha», havia sempre uma vizinha ajudante de costura que as vendia por cinco tostões - o preço aproximado de um papo-seco na padaria. Era uma bolinha feita de restos de pano compactados no interior de uma meia velha e cosido à volta, uns oito centímetros de diâmetro irregular. Frequentemente não rolava muito bem, sobretudo quando começava a romper -se.
Ao grito «olhó'chui!» desalvorávamos todos a correr. No liceu era a mesma coisa. Vinha o contínuo - «olhó Guerra!» e lá saltávamos o muro, fingíamos estar a jogar ao bilas, fazíamos o ar de «quem, eu? eu estava só a ver...»
Às vezes lá ia um pela orelha, a chincha apreendida; eram os azares da vida, a miudagem da rua aprendia depressa a viver com isso.
Quem não sabe identificar o inimigo, morre depressa. Ou então, torna-se inimigo por sua vez, quando crescer, o que é mil vezes pior.
Com o andar dos tempos, as coisas mudaram um tanto.
As ruas foram definitivamente ocupadas pelos automóveis, os putos já lá não cabem. As pessoas, como se fossem macacos em perigo de extinção, são remetidas para zonas protecção especial: um ou outro parque, umas coisas chamadas circuitos pedonais.
A miudagem já não dá cabo das botas a chutar na chincha. Usam ténis e têm belas bolas de plásticos vários que noutros tempos nos teriam feito arregalar os olhos de admiração.
E, pasme-se!
Até lhes arranjam campos de jogos lá na escola - embora, regra geral, os cubram de betão, que é para as quedas doerem à séria.
E é assim que todo o machinho, por esse mundo afora, tem pelo menos um mínimo de experiência do que é correr atrás da bola.
Acrescente-se a isso umas gordas de jornais ditos desportivos, um par de debates na televisão e aí está um entendido: treinador de bancada, árbitro competentíssimo, dirigente de café. Pode botar faladura, a sua opinião vale tanto como qualquer outra e o que disser, não importa realmente.
Todos nós, os que somos já suficientemente antepassados, jogámos à bola na rua, à revelia das leis de então: ia-se comprar a «chincha», havia sempre uma vizinha ajudante de costura que as vendia por cinco tostões - o preço aproximado de um papo-seco na padaria. Era uma bolinha feita de restos de pano compactados no interior de uma meia velha e cosido à volta, uns oito centímetros de diâmetro irregular. Frequentemente não rolava muito bem, sobretudo quando começava a romper -se.
Ao grito «olhó'chui!» desalvorávamos todos a correr. No liceu era a mesma coisa. Vinha o contínuo - «olhó Guerra!» e lá saltávamos o muro, fingíamos estar a jogar ao bilas, fazíamos o ar de «quem, eu? eu estava só a ver...»
Às vezes lá ia um pela orelha, a chincha apreendida; eram os azares da vida, a miudagem da rua aprendia depressa a viver com isso.
Quem não sabe identificar o inimigo, morre depressa. Ou então, torna-se inimigo por sua vez, quando crescer, o que é mil vezes pior.
Com o andar dos tempos, as coisas mudaram um tanto.
As ruas foram definitivamente ocupadas pelos automóveis, os putos já lá não cabem. As pessoas, como se fossem macacos em perigo de extinção, são remetidas para zonas protecção especial: um ou outro parque, umas coisas chamadas circuitos pedonais.
A miudagem já não dá cabo das botas a chutar na chincha. Usam ténis e têm belas bolas de plásticos vários que noutros tempos nos teriam feito arregalar os olhos de admiração.
E, pasme-se!
Até lhes arranjam campos de jogos lá na escola - embora, regra geral, os cubram de betão, que é para as quedas doerem à séria.
E é assim que todo o machinho, por esse mundo afora, tem pelo menos um mínimo de experiência do que é correr atrás da bola.
Acrescente-se a isso umas gordas de jornais ditos desportivos, um par de debates na televisão e aí está um entendido: treinador de bancada, árbitro competentíssimo, dirigente de café. Pode botar faladura, a sua opinião vale tanto como qualquer outra e o que disser, não importa realmente.
É uma banalidade quase escusável lembrar que, se ele fosse banqueiro ou grande industrial, ou advogado topo de gama, falaria de investimentos com gente da sua igualha, igualmente aptos a usar o código em que se exprime o mundo dos grandes negócios.
Se fosse físico, astrónomo ou médico, a conversar com outros físicos, astrónomos e médicos, usaria igualmente, é evidente, uma linguagem apropriada que supõe o conhecimento prévio dos conceitos. São linguagens prestigiantes, muitas vezes, guardadas ciosamente das intrusões dos leigos. Mas claro, se não querem ficar isolados toda a vida do resto do mundo, também eles terão de ter como que um jargão comunicacional.
Se fosse físico, astrónomo ou médico, a conversar com outros físicos, astrónomos e médicos, usaria igualmente, é evidente, uma linguagem apropriada que supõe o conhecimento prévio dos conceitos. São linguagens prestigiantes, muitas vezes, guardadas ciosamente das intrusões dos leigos. Mas claro, se não querem ficar isolados toda a vida do resto do mundo, também eles terão de ter como que um jargão comunicacional.
O tempo que faz, a meteorologia, é um tema óptimo. Serve o tempo de um elevador.
Do quarto andar para o terceiro alguém comenta o calor que faz ("está de ananases!"), do terceiro para o segundo tossem ambos um momento de embaraço.
O pobre pé rapado, que só pode falar de juntas nas canalizações ou da diferença entre uma goiva e um formão, depois de concordar amavelmente ("sim, sim! de derreter os untos...") teria de remeter-se ao silêncio, admitir que faz parte do coro mudo, da claque enlevada de todos os que sabem falar.
A solução milagre é o futebol:
- Então, doutor, viu o Porto ontem?
- Uma vergonha, Lopes! Uma vergonha! Aquele Fonseca...
- Mas a arbitragem...
É quanto basta.
É quanto basta.
As mais escandalosas diferenças podem crescer, engordar, exibir-se. A democracia está salva.