Mostrar mensagens com a etiqueta Aos Domingos é uma chiça. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Aos Domingos é uma chiça. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, abril 10, 2009

Ai futebol, futebol... [2]




Se alguma coisa democratiza o futebol - e aqui o verbo leva toda a carga possível de vulgaridade - é o facto de a gente poder falar dela sem qualquer preparação.
Todos nós, os que somos já suficientemente antepassados, jogámos à bola na rua, à revelia das leis de então: ia-se comprar a «chincha», havia sempre uma vizinha ajudante de costura que as vendia por cinco tostões - o preço aproximado de um papo-seco na padaria. Era uma bolinha feita de restos de pano compactados no interior de uma meia velha e cosido à volta, uns oito centímetros de diâmetro irregular. Frequentemente não rolava muito bem, sobretudo quando começava a romper -se.
Ao grito «olhó'chuidesalvorávamos todos a correr. No liceu era a mesma coisa. Vinha o contínuo - «olhó Guerra!» e lá saltávamos o muro, fingíamos estar a jogar ao bilas, fazíamos o ar de «quem, eu? eu estava só a ver...»
Às vezes lá ia um pela orelha, a chincha apreendida; eram os azares da vida, a miudagem da rua aprendia depressa a viver com isso.
Quem não sabe identificar o inimigo, morre depressa. Ou então, torna-se inimigo por sua vez, quando crescer, o que é mil vezes pior.

Com o andar dos tempos, as coisas mudaram um tanto.
As ruas foram definitivamente ocupadas pelos automóveis, os putos já lá não cabem. As pessoas, como se fossem macacos em perigo de extinção, são remetidas para zonas protecção especial: um ou outro parque, umas coisas chamadas circuitos pedonais.
A miudagem já não dá cabo das botas a chutar na chincha. Usam ténis e têm belas bolas de plásticos vários que noutros tempos nos teriam feito arregalar os olhos de admiração.
E, pasme-se!
Até lhes arranjam campos de jogos lá na escola - embora, regra geral, os cubram de betão, que é para as quedas doerem à séria.
E é assim que todo o machinho, por esse mundo afora, tem pelo menos um mínimo de experiência do que é correr atrás da bola.
Acrescente-se a isso umas gordas de jornais ditos desportivos, um par de debates na televisão e aí está um entendido: treinador de bancada, árbitro competentíssimo, dirigente de café. Pode botar faladura, a sua opinião vale tanto como qualquer outra e o que disser, não importa realmente.

É uma banalidade quase escusável lembrar que, se ele fosse banqueiro ou grande industrial, ou advogado topo de gama, falaria de investimentos com gente da sua igualha, igualmente aptos a usar o código em que se exprime o mundo dos grandes negócios.
Se fosse físico, astrónomo ou médico, a conversar com outros físicos, astrónomos e médicos, usaria igualmente, é evidente, uma linguagem apropriada que supõe o conhecimento prévio dos conceitos. São linguagens prestigiantes, muitas vezes, guardadas ciosamente das intrusões dos leigos. Mas claro, se não querem ficar isolados toda a vida do resto do mundo, também eles terão de ter como que um jargão comunicacional.

O tempo que faz, a meteorologia, é um tema óptimo. Serve o tempo de um elevador.
Do quarto andar para o terceiro alguém comenta o calor que faz ("está de ananases!"), do terceiro para o segundo tossem ambos um momento de embaraço.
O pobre pé rapado, que só pode falar de juntas nas canalizações ou da diferença entre uma goiva e um formão, depois de concordar amavelmente ("sim, sim! de derreter os untos...") teria de remeter-se ao silêncio, admitir que faz parte do coro mudo, da claque enlevada de todos os que sabem falar.
A solução milagre é o futebol:
- Então, doutor, viu o Porto ontem?
- Uma vergonha, Lopes! Uma vergonha! Aquele Fonseca...
- Mas a arbitragem...
É quanto basta.
As mais escandalosas diferenças podem crescer, engordar, exibir-se. A democracia está salva.

terça-feira, abril 07, 2009

Ai futebol, futebol... [1]



Pronto: confesso.

O futebol é um dos meus ódios de estimação.

E quando digo «de estimação», não pensem que esta expressão contém alguma cordialidade para o dito futebol. No fundo é só uma auto-estima: como eu gosto de mim mesmo por odiar aquela coisa.
Pelo futebol em si mesmo, creiam, nutro e acalento um profundíssimo desprezo.
Para terem uma ideia: As carraças e as pulgas dos cães combatem-se com umas coleiras próprias. Palavra: se houvesse uma coleira anti-futebol, eu usava-a com o mesmo orgulho belicoso com que os adeptos do futebol clube do Porto ou do sporting clube de Portugal enrolam ao pescoço um cachecol azul ou verde, conforme, e vão em grande grita para os estádios.

Não é que eu próprio não tenha jogado à bola quando era miúdo, apanhado caneladas, esfolado joelhos. E até, para que vejam, ousei uma vez meter o peito à bola, mas como era nabo, foi a boca do estômago quem levou com ela.
Dá para ver: respiração cortada, o lesionado arrasta-se até ao muro e encosta-se, os companheiros olham, «isso não é nada» e o jogo continua com um inútil a menos, mais novo e magrinho, só estorvava. Mas, pronto. Aguentei-me à bronca, nunca se dá parte de fraco. Passado um par de minutos, lá regressei, o mais galhardamente possível, a atrapalhar toda a gente.
O facto de ser um provinciano assumido, de preferir as botas caneleiras e os coletes com muitos bolsos, de nunca ter vestido um fato de treino, provavelmente ajudou.
Nasci numa vila, nesse tempo ainda relativamente pequena.
Tínhamos a impressão tola, é óbvio, de conhecer toda a gente: não era verdade. Conhecíamos apenas gentes do nosso grupo, umas poucas dezenas e sabíamos, por vezes muito vagamente, quem eram umas centenas.

Estudos de sociologia mostraram já que o círculo onde nos movemos oscila bastante, mas, em média consta de uma trinta pessoas. As mais sociáveis têm grupos um pouco maiores, os tímidos e os conflituosos grupos menores, mas não é por acaso que uma turma que ultrapasse este número de alunos funciona mal. E uma escola com mais de novecentas pessoas entre alunos, funcionários e professores será um quartel, um campo de concentração, o que quiserem, mas uma escola não.

O povoamento guiava-se por normas não escritas, mas da mesma obediência.
As aldeias, por norma, não chegavam ao milhar de habitantes. Se chegavam, dividiam-se sem dar por isso. Havia os Freixões de Cima e os Freixões de Baixo e desenvolviam rivalidades porque os rapazes de um lado vinham namorar as raparigas do outro, exogamia manda e a erva é sempre muito mais verde do lado de lá das fronteiras. E claro, não faltavam as duas tabernas, duas sociedades, dum lado a Recreativa, do outro a musical, dois grupos fosse do que fosse.

A nossa vila não era diferente, era só maior.
Tinha bairros, famílias e tinha castas.
Havia Grémios, Assembleias, Tunas e Clubes variados, os de uns, normalmente, claro, não frequentavam os outros.
Quando havia cinema, lá se misturavam todos, no mesmo edifício, mas em zonas distintas. Uns iam para o primeiro balcão, ou, se iam em família, para um camarote ou, vá lá, para uma frisa. Havia ainda, como alternativa, o segundo balcão.
A plateia era a zona da plebe.

Nem a Igreja escapava a estas distinções: ao domingo havia uma missa que era a da gente fina. Os senhores tinham cadeira e genuflexório próprios numa nave lateral e à saída dominavam o adro com os seus grupos, a beleza das senhoras, a riqueza dos trajares. Os outros formavam grupinhos mais pequenos, mais encostados às paredes, circulavam pela periferia.

O fuebol, aparentemente, era a excepção não porque não houvesse também separações. Havia. No nosso campo da bola, chão de saibro vermelho e riscas brancas, só havia uma bancada que corria todo o lado poente do campo. Nela tinham direito a sentar-se, em cadeiras, os sócios com lugar reservado. No cimento sentavam-se os outros. E claro, nas cabeceiras ou no lado oriental, de caras para o sol e a mão direita em pala para não perder pitada, era o peão.
Alternando com o vendedor de «bolachámaricana, idicanela!», o cauteleiro percorria as nossas ruas, a gritar «é prá'mañhã!, olhó cinquenta e oito!» ou «anda hoje, anda hoje!». Semana sim, semana não, quando chegava o sábado mudava de estribilho:
«Peão prá bola, peão prá bola. Olh'é o peão prá bola!» O clube da nossa terra, nessa semana, jogava em casa.

No domingo, pois, com o comércio fechado, era o ritual do levantar mais tarde, do banho semanal, depois a missa e, a seguir, era o cozido à portuguesa ou o bacalhau com todos. Regaladamente repletos, os senhores levantavam-se da mesa um tanto pesadotes e abalavam para o café a juntar-se em pequenos grupos, a dar palpites sobre o jogo. E em grupo lá se iam encaminhando para o campo. Parar em cada esquina para mais uma sentença, mais um argumento, era parte do prazer.Parecia a mais pacífica das gentes.
Uma hora depois era vê-los.
Perdida a compostura, os casacos caídos algures, a camisa desprendia-se dos cintos e as gravatas pendiam amaxucadas. O honesto e generoso pai de família, de rosto púrpura atirava perdigotos para todo o lado enquanto berrava a sua exaltação:
- Partam-me um braço a esse filho da puta, cabrão!
No outro lado, no peão, empoleirado sabe Deus onde, um homem de fato de macaco puído e manchas de óleo que as lavagens não conseguiam apagar, berrava exactamente o mesmo.
Era desta massa que se faziam depois os patriotas e nela as uniões nacionais recrutaram desde sempre os seus apoiantes mais fiéis.

Não acreditam?
Mal o vosso.

terça-feira, outubro 14, 2008

Um raio de luz na cornija da lareira

Pois!
Há dias em que é melhor nem falar.
Corre tudo mal.
A bem dizer, correr, o que se chama correr, nem corre. Empastela-se. Espalha-se ao comprido e, depois, arrasta-se cheia de mazelas, a coxear.
E há outros em que só as visitas nos salvam.
Como esta que sabe Deus onde mora, mas veio até cá, passou a tarde na cornija da lareira e depois foi-se embora.
Pode ser que um dia volte.


[Tenho uma secreta esperança de que tenha achado o ambiente sossegado e acolhedor e que já esteja instalada no armário da cozinha - ali junto aos pacotes de açúcar e ao óleo de fritar batatas, que é onde ninguém a vai incomodar.]