terça-feira, abril 07, 2009

Ai futebol, futebol... [1]



Pronto: confesso.

O futebol é um dos meus ódios de estimação.

E quando digo «de estimação», não pensem que esta expressão contém alguma cordialidade para o dito futebol. No fundo é só uma auto-estima: como eu gosto de mim mesmo por odiar aquela coisa.
Pelo futebol em si mesmo, creiam, nutro e acalento um profundíssimo desprezo.
Para terem uma ideia: As carraças e as pulgas dos cães combatem-se com umas coleiras próprias. Palavra: se houvesse uma coleira anti-futebol, eu usava-a com o mesmo orgulho belicoso com que os adeptos do futebol clube do Porto ou do sporting clube de Portugal enrolam ao pescoço um cachecol azul ou verde, conforme, e vão em grande grita para os estádios.

Não é que eu próprio não tenha jogado à bola quando era miúdo, apanhado caneladas, esfolado joelhos. E até, para que vejam, ousei uma vez meter o peito à bola, mas como era nabo, foi a boca do estômago quem levou com ela.
Dá para ver: respiração cortada, o lesionado arrasta-se até ao muro e encosta-se, os companheiros olham, «isso não é nada» e o jogo continua com um inútil a menos, mais novo e magrinho, só estorvava. Mas, pronto. Aguentei-me à bronca, nunca se dá parte de fraco. Passado um par de minutos, lá regressei, o mais galhardamente possível, a atrapalhar toda a gente.
O facto de ser um provinciano assumido, de preferir as botas caneleiras e os coletes com muitos bolsos, de nunca ter vestido um fato de treino, provavelmente ajudou.
Nasci numa vila, nesse tempo ainda relativamente pequena.
Tínhamos a impressão tola, é óbvio, de conhecer toda a gente: não era verdade. Conhecíamos apenas gentes do nosso grupo, umas poucas dezenas e sabíamos, por vezes muito vagamente, quem eram umas centenas.

Estudos de sociologia mostraram já que o círculo onde nos movemos oscila bastante, mas, em média consta de uma trinta pessoas. As mais sociáveis têm grupos um pouco maiores, os tímidos e os conflituosos grupos menores, mas não é por acaso que uma turma que ultrapasse este número de alunos funciona mal. E uma escola com mais de novecentas pessoas entre alunos, funcionários e professores será um quartel, um campo de concentração, o que quiserem, mas uma escola não.

O povoamento guiava-se por normas não escritas, mas da mesma obediência.
As aldeias, por norma, não chegavam ao milhar de habitantes. Se chegavam, dividiam-se sem dar por isso. Havia os Freixões de Cima e os Freixões de Baixo e desenvolviam rivalidades porque os rapazes de um lado vinham namorar as raparigas do outro, exogamia manda e a erva é sempre muito mais verde do lado de lá das fronteiras. E claro, não faltavam as duas tabernas, duas sociedades, dum lado a Recreativa, do outro a musical, dois grupos fosse do que fosse.

A nossa vila não era diferente, era só maior.
Tinha bairros, famílias e tinha castas.
Havia Grémios, Assembleias, Tunas e Clubes variados, os de uns, normalmente, claro, não frequentavam os outros.
Quando havia cinema, lá se misturavam todos, no mesmo edifício, mas em zonas distintas. Uns iam para o primeiro balcão, ou, se iam em família, para um camarote ou, vá lá, para uma frisa. Havia ainda, como alternativa, o segundo balcão.
A plateia era a zona da plebe.

Nem a Igreja escapava a estas distinções: ao domingo havia uma missa que era a da gente fina. Os senhores tinham cadeira e genuflexório próprios numa nave lateral e à saída dominavam o adro com os seus grupos, a beleza das senhoras, a riqueza dos trajares. Os outros formavam grupinhos mais pequenos, mais encostados às paredes, circulavam pela periferia.

O fuebol, aparentemente, era a excepção não porque não houvesse também separações. Havia. No nosso campo da bola, chão de saibro vermelho e riscas brancas, só havia uma bancada que corria todo o lado poente do campo. Nela tinham direito a sentar-se, em cadeiras, os sócios com lugar reservado. No cimento sentavam-se os outros. E claro, nas cabeceiras ou no lado oriental, de caras para o sol e a mão direita em pala para não perder pitada, era o peão.
Alternando com o vendedor de «bolachámaricana, idicanela!», o cauteleiro percorria as nossas ruas, a gritar «é prá'mañhã!, olhó cinquenta e oito!» ou «anda hoje, anda hoje!». Semana sim, semana não, quando chegava o sábado mudava de estribilho:
«Peão prá bola, peão prá bola. Olh'é o peão prá bola!» O clube da nossa terra, nessa semana, jogava em casa.

No domingo, pois, com o comércio fechado, era o ritual do levantar mais tarde, do banho semanal, depois a missa e, a seguir, era o cozido à portuguesa ou o bacalhau com todos. Regaladamente repletos, os senhores levantavam-se da mesa um tanto pesadotes e abalavam para o café a juntar-se em pequenos grupos, a dar palpites sobre o jogo. E em grupo lá se iam encaminhando para o campo. Parar em cada esquina para mais uma sentença, mais um argumento, era parte do prazer.Parecia a mais pacífica das gentes.
Uma hora depois era vê-los.
Perdida a compostura, os casacos caídos algures, a camisa desprendia-se dos cintos e as gravatas pendiam amaxucadas. O honesto e generoso pai de família, de rosto púrpura atirava perdigotos para todo o lado enquanto berrava a sua exaltação:
- Partam-me um braço a esse filho da puta, cabrão!
No outro lado, no peão, empoleirado sabe Deus onde, um homem de fato de macaco puído e manchas de óleo que as lavagens não conseguiam apagar, berrava exactamente o mesmo.
Era desta massa que se faziam depois os patriotas e nela as uniões nacionais recrutaram desde sempre os seus apoiantes mais fiéis.

Não acreditam?
Mal o vosso.

4 comentários:

Anónimo disse...

Pois desta vez escreveste muita coisa que já te ouvi dizer, mas eu que nem sou fã do futebol, continuei sem entender porque o odeias, nem sei se o próprio jogo, se a «futebolização» (diabolização) que também ocorre com práticas similares.
O pior mal não estará na profissionalização, atentando contra a integridade dos jogadores e negando o desporto,ao mesmo tempo reclamando uma jurisdição excessiva para um jogo, que não para as incivilidades nele cometidas?
Badesse

tacci disse...

Pois!
Que tal esperar pelas cenas dos próximos capítulos?

Graza disse...

Ó Tacci, está genial! Há muito que não ria tanto com um texto de blogues. Começou naquela das coleiras e nunca mais parei. PARABÉNS. Fazem-nos falta mais leituras destas.

tacci disse...

Obrigado, Graza.
Espero que continue a gostar dos próximos posts.