quinta-feira, outubro 26, 2006


O Sonho do Zé Fernandes
Aquele que tem mais de mil nomes, o Ser dos Seres, claro que não tem representação. Tudo o que sobre Ele se diga é demasiado pobre e, por outro lado, é excessivo. Só os Mitos tentam dizer um ou outro desses nomes. Mas requere-se um Miguel Ângelo para os mostrar no tecto de uma capela. Ou um Eça de Queiroz num romance.
Toda a gente que já leu A Cidade e as Serras (1) se lembra da invasão do 202 pela fúria bibliófila do Jacinto.
"Não se abria um armário", diz o Zé Fernandes, "sem que de dentro se despenhasse, desamparada, uma pilha de livros! Não se franzia uma cortina, sem que detrás surgisse hirta, uma ruma de livros! E imensa foi a minha indignação quando uma manhã, correndo urgentemente, de mãos nas alças, encontrei, vedada por uma tremenda colecção de estudos sociais, a porta do «water-closet!»
E num dia em que a saturação do livro é particularmente dolorosa, o Zé Fernandes sonha. Sonha que vai pelos Campos Elísios atapetados de livros, rodeados de prédios feitos de livros, cruzando pessoas cujo rosto são também livros abertos que a brisa folheia. Sobe uma escadaria monumental, também ela feita de livros e, narra o Zé Fernandes, "assim ascendi ao Paraíso".
E continua: sentado num trono de livros "o Criador lia e sorria."
"Ousei, arrepiado de sagrado horror, espreitar por cima do seu ombro corruscante. O livro era brochado e de três francos... O Eterno lia Voltaire, numa edição barata, e sorria."
De entre os mais de mil nomes do «Ansião da Eternidade», há um que eu particularmente venero: «Leitor de Voltaire».
(1) E a que não leu que comece já.

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