domingo, outubro 15, 2006
Os Anjos de Alcácer-Quibir
Já te tinha visto, provavelmente lembras-te melhor do que eu. Há anos. No Paço da Ribeira, das raras vezes que por lá passei. Não gosto de Lisboa, sabes, desde que fizeram dela a capital... das pestes, da intriga, do dinheiro, dos negócios...
Sabes que ganhei ódio às moedas? Todo aquele oiro que tilinta aos nossos pés, toda aquela prata que cobre as nossas armaduras...
Mas era o dia da audiência, os candelabros estavam acesos e as filas e filas dos suplicantes brilhavam como uma Via Láctea de jóias. Que vinham eles pedir, como se fossem mendigos? Os usos tinham feito deste reino, percebes?, um reino de pedintes, de gente que suplica a esmola de um cargo, de uma tença, que ajoelhava diante de mim... Como... como se eu fosse Nosso Senhor e trouxesse no alforge uma carrada de milagres e pudesse distribuí-los assim, a meu bel prazer...
Eu caminhava com aqueles passos que me dizem representar a dignidade do Reino, o braço da minha Avó Catarina sustentava-me a inexperiência, como eu lhe sustentava os anos. E a cada instante nos detínhamos, o embaixador de meu primo Filipe, o Núncio, o meu primo Bragança, meu Tio Henrique... Em todos resplendecia o oiro, as pedras preciosas. Sabes o que é o explendor para os olhos de um menino? É o brilho que ofusca. Que cega. Quem deles era o mais luxuoso?
Só tu vestias pobremente. De negro, um velhudo baço, eras como se alguém tivesse feito um buraco no céu. Para onde dava esse buraco?
Só me atrvi a perguntar quando nos sentamos. A Avó Catarina não sabia. Foi D. Aleixo, o meu aio, quem sussurrou:
- Dizem que é poeta e que não tem onde cair de morto. Um boémio. Mas é bom guerreiro.
Foi assim que soube que tu existias.
Não é estranho que um soberano nem sequer saiba de um dos seus súbditos? E que importa se é um notável? Não achas que, Rei deste Reino, também as formigas me prestam vassalagem e que, a elas também, eu devo a protecção e guarida?
Que posso eu fazer pelos gafanhotos, pelos ratitos e pelos pardais do meu reino?
Que queres que eu faça por ti, Luís Vaz?
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