sexta-feira, janeiro 18, 2008

Joseph Ratzinger II

E outros legítimos Superiores

A Primira Comunhão era por volta dos sete, oito anos. Aprendiam-se uns rudimentos, as orações: Pai Nosso e Avé Maria já todos a trazíamos sabida de casa. Mas aprendíamos o Salvé Raínha, o Credo e o Acto de Contrição, os Dez Mandamentos e as três Virtudes Teologais. A Fé, a Esperança - que ninguém nos explicou o que era - e a Caridade. Esta sim: era dar esmola aos pobres, mas cuidado, não fossem gastar mal o dinheiro, em vinho, por exemplo. E ajudar o ceguinho a atravessar a rua, claro. Sim, e ajudar a velhinha a levar a alcofa das compras. Pois, e salvar o Quim de morrer afogado no pêgo do rio...
- Pronto, meninos! Já chega! - gritava a catequista.
A Fé também não ficou muito claro o que fosse. São Tomé duvidou, ora o palerma, toda a gente sabe que Nosso Senhor ressuscitou. E o que toda a gente sabe não precisa da Fé para nada, pois não? Mas nós, alí sentados em bancos de antigo vinhático, encostados à parede de azulejos do claustro, não nos preocupávamos muito com isso. Havia uma coisa a que chamávamos Espremer Azeite e que podia ser jogada subrepticiamente enquanto a Menina Lília nos ia explicando a diferença entre pecados veniais e pecados mortais.
O banco era corrido e os que se sentavam nas pontas começavam a empurrar para o meio. Claro, todos nós colaborávamos - salvo um ou outro menino bonito - e os dois ou três do centro, mais vigiados pelo olhar do catequista, tentavam resistir sem dar parte de fraco. Chegava o momento em que um mais magrinho ou menos paciente cedia.
- Onde está Deus? - perguntava a Menina Lília.
- No Céu, na Terra e em toda a parte! - respondíamos em côro.
E zás! Um de nós, mais esborrachado, levantava-se de repente fazendo vacilar o banco todo.
- Meninos... - dizia a catequista corada e com olhos desolados.
- Foi ele!
- Ele é que começou...
- Foste tu!
No dia da Comunhão, domingo, mais cedo do que o habitual, lá íamos, um nadinha esmagados pela solenidade, compenetrados da nossa importância: íamos receber Nosso Senhor. Estávamos em jejum natural, desde a meia-noite até à hora de comungar, mas por nada deste mundo confessaríamos que estávamos cheios de fome. Espremer azeite, nesse dia, estava fora de tudo o que era concebível. O que significava exactamente "receber Nosso Senhor" não nos preocupava.
O problema do significado só se viria a tornar agudo muito mais tarde. Por esses tempos, os significados eram um caderninho de linhas, pequenino, dividido ao meio por uma outra linha, vermelha esta.
Do lado esquerdo escrevíamos "prisma". E do lado direito punha-se o que isso queria dizer: "poliedro que tem por base dois polígonos iguais e paralelos." Do lado esquerdo anotávamos "diletante". E lá vinha, na direita: "o que se ocupa de qualquer assunto por gosto e não por obrigação ou ofício". Os Cadernos de Significados, rudimentares e desordenados, foram a nossa primeira abordagem à Semântica.
Já no Liceu, porém, nada era tão garantido. As palavras tornavam-se confusas.
Deus ter sido o Criador ex nihilo do Universo, pouca diferença me fazia. A sério, não é heresia. É que, no Mundo, estamos todos. É óbvio para qualquer infante de onze, doze anos, que, de um modo ou de outro, a Criação existe.
O que me confundia e me fez levantar na aula de Religião & Moral para pôr a questão, era a criação artística. Picasso, de quem eu tinha ouvido falar ao mesmo tempo que via um par de reproduções, era indiscutivelmente um criador, mesmo se eu não o percebesse nada bem.
Ainda hoje vejo nitidamente a expressão do Choninhas a quem tinham cometido o encargo de nos ensinar Moral e de nos abrir os caminhos da Fé.
Com os dois dedinhos da mão direita a desenhar um círculo e os outros abertos em leque, o rosto menineiro apesar da calvície, os olhinhos furiosos por trás das lentes, declarou peremptório que «essas porcarias indecentes não lhe interessavam».
Reduzido à sua insignificância, o aluno sentou-se.
Aprendera que um dos mandamentos que o Senhor dera a Moisés se enunciava assim:
"Honrar Pai e Mãe (abrir parentesis: e outros legítimos Superiores, fecha parentesis)".
Viria, pouco a pouco, a entender que algo ou alguém tinha achado incompletas as ordens do próprio Deus e acrescentara esses "Superiores" ao Pai e à Mãe. E aprenderia que Superiores legítimos eram todos os que tivessem a mais pequenina oportunidade de usar bastões e cassetêtes: Chefes, Directores, Presidentes, Generais e Tios mais velhos.
Mas conhecê-los a todos levaria ainda a vida inteira.




3 comentários:

Anónimo disse...

Magnífico e sorri à referência ao cadero de significados ;)

Anónimo disse...

cadero=caderno

tacci disse...

Abracinhos, Anita.