domingo, fevereiro 03, 2008

Joseph Ratzinger IV

Imagens de Deus

Durante muitos anos não pensei em Deus.

Não era uma questão arrumada, por muito que tenha parecido.Os rituais do culto em que eu tinha sido educado, porém, tornavam-se vazios, como se fossem, tão-só, prolongamentos daquele autoritarismo que eu detectava nos alunos mais velhos, sempre prontos a usar a força condescendente para submeter o caloiro, o irmão mais novo, o aluno menos cordato. Se alguma vez senti o completo sigificado da palavra «absurdo», tão sublinhada pelos autores existencialistas que eu começava a ler, foi essa.

E anunciei à família a minha decisão de não voltar à Missa.
«Vais, sim senhor!», decretava a minha Avó.

Era uma mulher de convicções, salazarista até à medula, viúva desde muito nova, habituada a comandar e a ser obedecida, a manobrar a barca sem a deixar encalhar. Mal acomparada, reconheço-lhe traços em certas novelas da Agostina. Mas não foi ela quem venceu a minha decisão.
A minha Mãe, com a consternação e o desgosto estampados no rosto, foi muito mais eficaz:

«Vá! Anda lá...», pediu ela.
Fui. Mas, no caminho, comprava o Camarada, o jornalzinho da Mocidade Portuguesa que publicava, suponho que pela primeira vez em Portugal, as histórias de Spirou e Fantásio. Na Igreja, ficava o mais longe que podia, escondido por um pilar e deitando olhadelas disfarçadas às histórias em quadradinhos. O tempo custava a passar. Os padres desse tempo ainda liam a Missa em latim, a prédica alongava-se sobre as virtudes de Nossa Senhora, sobre o peixe que os Apóstolos tinham pescado no Lago Tiberíades, sobre Paulo de Tarso, derrubado do cavalo:
«Paulo, Paulo, porque me persegues?»
Não me lembro de alguma vez ter ouvido um Padre a falar do Sermão da Montanha, no púlpito ou fora dele. Nem me lembro de ter alguma vez ouvido um Padre falar do «Povorello» e menos ainda de Santa Clara.
Alguém se admira da perversidade adolescente?
No Liceu correu o boato de que eu ia para a Missa de propósito, para estar a ler «de costas para o altar-mor». Não era verdade, a minha intenção nada tinha de provocatório, antes pelo contrário.
Mas, claro, não fiz nada para desfazer o equívoco.
Também me vestia de campónio, com velhas camisas de quadrados da Nazaré e grandes botins. Também não era nem provocação, nem sequer uma atitude: era simplesmente porque era pobre e raramente tinha dinheiro para voos mais altos. Como o pintor de Somerseth Maugham, eu passava melhor sem comer do que sem cigarros e sem cigarros do que sem os meus cadernos lisos e uma esferográfica preta.
Os meus colegas acharam que eu tinha pinta de beatnick muito antes de essa moda cá chegar. E os camaradas, esses que eram tão convencionais no seu colarinho branco e gravata encarnada, achavam «pouco consciente» o meu pendor boémio, os meus amoricos adolescentes, o meu gosto pela literatura. Declaram-me um «outsider».
Também não desfiz o equívoco. Nunca nos devemos explicar seja a quem fôr. Perdi namoradas, perdi amigos por isso. O que fosse, teria de estar à vista de todos, dizia eu a mim próprio, esquecendo-me dos ensinamentos da Menina Lília: o Orgulho é um dos Sete Pecados Mortais.

Havia os não-religiosos, de um dos lados. Eram marxistas ateus com o culto do jazz, maoistas-albaneses para quem mais de três palavras seguidas era metafísica.
Do outro, havia os membros das Juventudes Católicas, em escasso número, aliás, e uma multidão de indiferentes, analfabetos da alma que se preocupavam apenas com os copos e as miúdas. Entre estes dois grupos, eu sentia-me sufocado.
Todo o companheirismo que então vim a encontrar, situou-se nessa terra de ninguém habitada pelos que decidiram cegamente escrever, pintar, compôr. Pelos que sentem que a centelha do génio, mesmo se mau, é uma maldição que se arrasta connosco até à demência senil.
O tempo passou, a Faculdade também, Abril chegou e também passou. Mudei de empregos, andei de terra em terra com livros às costas.
Se me perguntassem, diria que era agnóstico.
Mas, pouco a pouco, surpreendi em mim próprio, uma estranha compulsão que me levava a falar com os objectos, com as formigas, com as árvores, cães, gatos, aranhas...
E com o meu carro, uma Dyanne 6 que não passava de um estuporzinho temperamental. Ofendia-se com os meus maus humores, alegrava-se com os dias de sol, quando eu lhe abria a capota e tinha uma paciência infinita para crianças. A vinte à hora, chegou a levar nove miúdos a caminho da praia. Uns sentados, outros em pé agarrados ao varão central e todos a gritar muito «vrrrrrroooooaaaaaaahhh» porque «agora éramos um carro de corridas e íamos muita depressa!»
- Mais depressa! Mais depressa!
E o barulheira aumentava.
Mesmo quando estava sozinho, dava comigo a falar com um meu amigo imaginário: o São Pedro.
Se a chuva me apanhasse longe de casa, eu pedia-lhe que me mandasse um taxi. E refilava:
- Então? Não há taxis hoje?
Mais tarde ou mais cedo, o taxi aparecia. Eu entrava, dava os bons dias ou as boas tardes, dizia a morada. E passado um bocado, acontecia-me reparar que nem sequer tinha agradecido; «desculpa lá, São Pedro! esqueci-me de dizer obrigado...»
- Como? - perguntava o motorista.
- Não, não é nada.
Mas era.
É um dado da sociologia que muita gente joga este tipo de jogos. «Se passarem três carros encarnados antes de eu atravessar a rua, a Fernanda vai logo à noita ao bar! ... Bolas! Esta não valeu, o sinal abriu antes de tempo. Agora á que é: se passar um Renault antes de...»
Podemos chamar-lhe como quisermos, superstição, por exemplo. É a convicção de que tudo se relaciona com tudo, portanto, de um conjunto de sinais aparentemente neutros pode deduzir-se consequências desejáveis ou funestas. Certos outros, quando manipulados como deve ser, conjuram a sorte ou esconjuram o azar. Perguntem a damas e cavalheiros à volta da mesa num casino.
E onde passa a fronteira entre estas preces envergonhadas pela luz do dia e a autêntica oração? Em parte alguma. São territórios contíguos, sai-se de um, entra-se no outro, volta-se atrás... Muita da religião popular situa-se simultanemaente dos dois lados.
Sabiam que a Santíssima Trindade é Nossa Senhora, o Menino Jesús e Deus Pai?Só muito tarde assumi esta liberdade.
Uma religião, com os seus mitos e a sua teologia própria, não era terreno proibido. Em que valia a minha menos do que qualquer outra?
Portanto, decidi: Deus é um Cavalheiro muito bem educado, anfitrião cortez.
De idade, claro, que a eternidade já dura há muito tempo. Mas vigoroso, bom garfo, apreciador das melhores colheitas das vinhas celestes, estagiadas em talhas de bom barro.
Pelas manhãs frias, gosta de dar grandes passeios a pé, mãos nos bolsos, com o seu rafeirito e um corvo preto, esvoaçante e gralhento, que falaria pelos cotovelos se os tivesse. Pela tarde, rodeado pelos seus cães e pássaros favoritos, senta-se a fumar o cachimbo favorito e a conversar na sala Gaudi.
Deixem-me dizer-vos, aqui num parêntesis que não quero ir para um Céu onde não caibam os canitos maltratados, baleias e golfinhos assassinadas por pescadores. Nem, já agora, mea culpa, as vaquinhas e os porquinhos cujos bifes eu comi... E não me venham com argumentos, a dizer que os animais não podem ir para o Céu porque não têm alma. Têm, pois têm, mesmo que não saibam vendê-la ao Diabo como os humanos.

Parêntesis fechado, o Céu é onde Deus, a par com a bicharada, recebe as «personalidades que valem a pena», com quem é bom sentar-se a conversar. Lá estão o Einstein e a Maria Curie, o Conde Bertrand, a Audray Hepburn e o sapateiro Berenval. O Jaques Brel, o José Afonso e a Edith Piaff compõem uma música nova. O Albert Camus e as Simones, Signoret e de Beauvoir, conversam, o Chagall faz rabiscos num pedaço de papel. O Taï-Yo-Lunn e o João César discutem, o Tio Adriano tenta acalmá-los com boas palavras. A Maria Callas faz vocalizos e o João Sebastião acompanha-a ao piano. E tantas, tantos, tão diferentes, que só a eternidade chegaria para nomear a todos.
E sabem? Como Deus é bom - e se fôr mau, nada disto tem sentido - então o Inferno não pode existir. Como permitiria Ele que um qualquer antecessor do Pinochet mantivesse um lugar de tortura por toda a eternidade?
Mas, e o mal? Não tem castigo?
Não, para quê? O mau, o pérfido, o cruel, já morreram, não morreram?
O que imagino é que Deus, quando chegamos, mortinhos da Silva, olha para nós, encolhe os celestiais ombros e pensa lá para consigo:
- Bah! Este não saiu lá grande coisa... nem para aparar a relva serve.
E pode mandar-nos para reciclagem.
Lá viremos outra vez cá para baixo até fazer alguma coisa de jeito que mereça ser guardado.
Ou então, como o Hitler, o Nixon e o Béria, a Carlota Joaquina e o Salazar, tantos outros que eu não nomeio para não ser desagradável e mais aqueles todos de que nem ouvi falar, podemos ir
simplesmente para o lixo e acabou-se.
Não tínhamos nada que valesse a pena aproveitar.
A moral, digam os neo-liberais o que disserem, é simples e transparente: é fazer todos os
possíveis para que Deus nos ache «aproveitáveis».
E o bom Ratzinger nisto tudo?
Não sei.
Mas se for ele quem tem razão, então dá-me a ideia de que, Deus me perdoe, o seu Deus não é o meu Deus. É o Deus retratado pelo Mezieres no album Les foudres d'Hypsis (Dargaud, pag. 44). O Deus de George Bush.

9 comentários:

Unknown disse...

Lindo texto

Gi disse...

Eu já cá venho mais tarde para o ler com a atenção que merece, entretantto venho só pedir parafazer o favor de procurar os números coloridos no meu blogue, tem lá um mimo para si.

Beijinhos e resto de um bom feriado

Anónimo disse...

"Declaram-me um «outsider».Também não desfiz o equívoco. Nunca nos devemos explicar seja a quem fôr. Perdi namoradas, perdi amigos por isso."
Nãoeram teus amigos, os amigos que te reconhecem isso pernanecem, Talvez sejas tu que os afastas por eles reconhecerem isso

tacci disse...

Obrigado, Luís.
Apareça sempre.
Um abraço.

tacci disse...

Gi, estou desvanecido. Como pode ver, graças à colaboração da Ana, já tenho o ditintivo alí do lado esquerdo.
Um beijinho.

tacci disse...

Peúga, quando digo que "perdi namoradas, perdi amigos" não é como diz o Shiller: "só se perde o que já se possuiu". Eu só perco o que nunca virei a ter. Perdi as minhas oportunidades de ouvir o Jaques Brel e o Brassens, de viajar para a América para ser aluno do Bertrand Russel, até perdi a oportunidade de morrer na Guerra de Espanha.
O resto não se perde. Nunca.
Um abraço.

Anónimo disse...

ainda bem tacci; calcemo-nos então

Gi disse...

Para não ficar tão grande (desconfigura o blogue) tente em 1º
lugar reduzir as medidas da imagem. Se não conseguir experimente tirar a imagem da minha cooluna do lado direito, pode ser que seja mais pequenina. Como alternativa sugiro que faça um post com o selo (em ponto pequeno) e copiar daí para o exibir . Fica mais bonito .

Um beijinho. também pode tirar o do "Dá cá um abraço" é para todos (ainda não me deram nenhum com beijinhos senão também lho dsva :) )


Bom domingo

Graza disse...

Tacci, este texto simples e brilhante, entra seguramente num dos melhores que li nos meus contactos. Queria sublinhar as passagens que me fizeram rir e pensar mas são tantas que repetia o texto. A melhor homenagem que posso fazer é deixar um link para virem ler. Parabéns.