terça-feira, janeiro 15, 2008

Joseph Ratzinger

O Papa nunca foi, para mim, uma realidade presente.
Não faço ideia nenhuma de quando me apercebi, pela primeira vez de que a religião na qual me estavam educando, tinha um chefe. Quem mandava nessas coisas era, em primeiro lugar a Menina Lília, a catequista chefe das catequistas e, em segundo lugar, o Padre Paixão que coadjuvava na imensa paróquia onde fui medrando. Havia também o Senhor Prior, mas esse era apenas uma figura simpática que dizia a missa lá à frente e que não ralhava connosco.
A religião Católica, Apostólica, Romana e todas essas coisas era para mim, puto contemplativo que lia os Sandokans e os Júlio Vernes, uma coisa porreira, que dava uns convívios e uns passeios no fim do ano, uns filmes ao sábado à tarde que custavam cinco tostões e onde nos encontrávamos todos.
No domingo, depois do almoço, de quinze em quinze dias, íamos ver jogar o clube da nossa terra: éramos "sócios auxiliares infantis", entrávamos de graça. Encontrávamo-nos com outros sócios como nós, brincávamos bancadas acima, bancadas abaixo, e nem sempre nos interessávamos pelo que acontecia dentro das quatro linhas traçadas no saibro.
Juro não saber ainda hoje porque terei perdido, não digo a minha fé, mas esta capacidade de aceitar tranquilamente os dictames da tradição, a naturalidade do convívio, o gosto por ser um entre os participantes na procissão, com a opa roxa da Irmandade do Senhor dos Passos.
Julgo que o principal factor terá sido o ter deixado de "pertencer".
Aos dez anos mudaram-me para Lisboa e entrei no Liceu. Não conhecia praticamente ninguém, o estatuto de origem não me acompanhou. O pária em Lisboa luta ou morre.
Lutei, muito à minha maneira, claro.
Tive por alcunha o "Filósofo". escrevia histórinhas, fazia bonecos. Chumbava ou passava os anos com uma indiferença sonhadora.
Onde se desvaneceu a religiosidade não sei.
Já muito anteriormente, mesmo antes da mudança para Lisboa, duas coisas me preocupavam. Ou três, mas uma é tão tola que quase me faz rir: quando recebia a hóstia consagrada, o corpo de Deus sabia a farinha. Não sei se me percebem. O Corpo do Senhor «devia» saber a qualquer coisa de Celestial. Ou não?
As outras duas eram mais graves. Antes de ir comungar, coisa que se fazia uma vez por mês, era necessário confessar os nossos pecados. E, antes desse Sacramento, devíamos fazer o exame de consciência. Pois, mas isso é que não era fácil. A consciência dizia-me que tinha bulhado umas vezes, mas que era eu quem tinha tido razão, que tinha disfarçado a verdade um bocadinho, mas era porque não queriam que eu fosse brincar depois da escola... O que é que eu ia dizer ao Senhor Padre? Sem Confissão não havia Absolvição. Sem a Absolvição, não havia Comunhão e sem Comunhão eu não estava «lá». E pronto: não havendo pecados, mas sendo absolutamente necessários à Absolvição, só havia um remédio: inventá-los. Mas mentir na Confissão não era um pecado mortal?
A outra coisa que me perturbava era não ser capaz de prestar atenção na Missa.
Quer dizer: eu estava quietinho e bem comportado, salvo algumas excepções que, de certeza, houve. Mas surpreendia-me a mim mesmo numa completa ausência. Já a Missa ia no Ofertório e eu não dera por nada. Muito mais tarde, quando ia de carro para a faculdade às oito da manhã, acontecia-me perguntar a mim próprio já a meio do trajecto, «mas como é que eu chaguei aqui?»
E esta insegurança que ninguém tranquilizou, deve ter proporcionado a curiosidade insatisfeita e perguntadora com que assediei o Professor de Religião & Moral dos primeiros anos do Liceu. Não seria ali o lugar das perguntas?
Todos os outros Professores respondiam - excepto a filha de uma vaca... pronto, esqueçam (a gaja provocou-me um trauma com a Matemática que só visto: e eu que era excelente em Geometria e que adorava tudo o que fosse Lógico e Abstracto, penei durante anos porque não era suficientemente rápido no cálculo. Oh Deuses, se no meu tempo já se pudesse utilizar máquinas de calcular!) Onde é que eu ia?
Ah! na resposta às dúvidas.
Porque é que ninguém liga às angústias metafísicas da miudagem?
" Ah, isso passa-lhes", é o que nos respondem.
Pode ser que tenham razão, não sei. O que vos garanto é que há pelo menos um a quem nunca passou.
Mas o resto terá de ficar para um próximo post.
Se Deus quiser.

6 comentários:

Anónimo disse...

ansiosamente à espera do próximo post.

tacci disse...

Para não ficar muito em ânsias, já lá está a continuação.
A ver se a próxima também não demora demasiado...
Abraços.

Graza disse...

(...)"Já a Missa ia no Ofertório e eu não dera por nada." (...) :):)
Como nós entendemos isso!

tacci disse...

Meu caro Grazza!
Não era culpa nossa, como bem sabe. Éramos demasiado novinhos para entender e para participar.
Mas o dilema é: em que idade deve começar um aspecto tão importante da socialização como é a religião do grupo? Cedo demais torna-nos, quando muito, ritualistas. Mais tarde, porém, já na idade da razão, como inculcar os dogmas?
Um abraço.

Graza disse...

Provavelmente será na idade certa mas de uma forma errada certamente. A mim, bastou-me um pequenino livro sobre a formação do sistema solar, que sobre a formação do universo ainda havias reticências, para começar a só dar pela missa... no Ofertório!

Gostei das dúvidas trazidas nestas Memórias, porque me revi em parte nelas.

tacci disse...

O grande mérito, da educação religiosa, como de qualquer outra, aliás, pode muito bem ser esse suscitar da dúvida.
O problema que fica, claro, é o de um método para a afastar.
E receio que as aulas de R&M não tenham ajudado nada.
Um abraço, Grazza.