terça-feira, março 11, 2008

A Sala Magenta


O José Rodrigues Miguéis tinha pouca sorte com os barbeiros.
Eu, salvas as devidas distâncias, é com os escritores portugueses que tenho azar. Aos maiores, não os leio. Confesso o meu mau gosto: nem a Agostina, nem o Mário Cláudio, nem o Lobo Antunes. O José Saramago vou lendo, mas nem sempre com o mesmo gosto.
Saudei, como toda a gente o Memorial do Convento, mas não o reli. Da Jangada de Pedra, sim. Gostei e releio-o uma vez por outra. Detestei aquele do Cerco de Lisboa, voltei a gostar do Todos os nomes e nem por isso do Evangelho. E por aí fora.
Depois, começa o meu azar.
A Fernanda Botelho faleceu. Ponto final.
A Ana Teresa Pereira, com uma escrita linda, para minha perplexidade, parece-me andar a reescrever sempre o mesmo livro. O defeito, certamente, é meu. Mas que fazer?
A Beatriz Lamas de Oliveira, essa, que eu saiba, escreveu um só livro. Se alguém souber de outros, por favor, avise-me. Correrei Seca e Meca para os achar, mesmo correndo o risco, como a Raínha Victória quando mandou comprar a obra completa de Lewis Carroll, de me achar com um tratado de topologia nas mãos. Até lá, passo melancólico pela estante, pego n'O Insecto Imperfeito que já conheço quase de cor e penso que há desperdícios imperdoáveis. O desta escritora, por exemplo.

O Paulo Castilho foi também, durante alguns anos, aquele autor cujo aparecimento nos escaparates eu vigiava ansioso. Não que tivesse gostado particularmente de Fora de Horas. Mas, se me permitem o pretenciosismo, percebia-se que estava ali um escritor. E Sinais exteriores, depois Parte incerta, confirmaram-me no meu interesse. Finalmente veio o Por outras palavras. Já lá vão vários anos. Desde então para cá, continuo a procurar em vão a letra «C» nas prateleiras das livrarias e a reler, de vez em quando as ...Outras palavras, os Sinais. Algum amigo (certamente mais do alheio do que meu) ficou-me com a Parte incerta. Procuro-a, até hoje, pelos alfarrabistas porque não há reedições.
É a isto que eu chamo pouca sorte.

Há também o João Aguiar.
Explêndido o Navegador Solitário.
Divertido e imaginativo com O Homem sem nome e com a Encomendação das almas. E com o juvenil O Sétimo Herói.
Que importam os dois primeiros livros da sua trilogia inspirada em Macau se o último, A Catedral verde, se lê de penalti, como fazem os miúdos com os shots nas discotecas e os pedreiros nas tabernas com copos de três?
No meu pouco modesto critério, a marca de um bom livro (ou como dizia o Professor Manuel Antunes, de um óptimo livro) é que vale a pena relê-lo. E o Diálogo das Compensadas, a par com Orgulho e Preconceito, por exemplo, a Gabriela Cravo e Canela, A cidade e as serras e poucos mais, lê-se sempre com o mesmo prazer, como se fosse um livro novo. Se só pudesse levar dez livros para uma ilha deserta, as Flores ou o Corvo, vá lá, eu recusava-me a ir, claro.
Mas, se fossem cem ou cento e cinquenta... levava as Compensadas e ia. Tinham era de me jurar que nem o Cavaco nem o Sócrates passavam por lá em visita de Estado. (Aqui para nós que ninguém nos ouve, que história é essa das presidências abertas? Porque é que não as fecham e não as enterram bem fundo? Não há já poluição que chegue? Desculpem. Onde é que íamos? Ah, sim:)
No entanto, será impressão minha ou o João Aguiar está em crise? Se ele me perdoa, O jardim das delícias é repetitivo. Como nos livros da Ana Teresa Pereira, eu tive a impressão de que já o tinha lido e relido não há muito tempo. Dos livros infantis, prefiro não dizer nada. E o Neandertalzinho do Lapedo parece-me bom jornalismo, muito interessante, primorosamente escrito, mas só isso. Bem sei, já são qualidades que cheguem. Mas eu continuo à espera de outro Navegador solitário que não há meio de vir.
Pouca sorte? Espero bem que não. Já estou a bater com os nós dos dedos na madeira e a dizer «lagarto, lagarto, lagarto!»
Mas não o tenho procurado pelas livrarias da Baixa com o empenho que dantes soía.

O terceiro dos autores portugueses cuja escrita tento acompanhar é o Mário de Carvalho. O primeiro livro que dele li, há já vários e tormentosos anos, foi A paixão do Conde de Fróis. Mesmo sendo radicalmente desconfiado de narrativas illo temporais, gostei da novela. O Mário de Carvalho conseguia não lhe dar um tom bafiento, erudito-gradioso. E havia, lá por trás, sempre presente, um sólido cepticismo, uma concepção sarcástica do heroísmo pátrio, do nacional politiquismo. Mas devo dizer que só prestei realmente atenção ao escritor a partir do Era bom que trocássemos ums ideias sobre o assunto. Erro meu. Em vez de ter lido logo Os Alferes, ainda ando à procura deles. Encontrei o Fabulário, os Casos do Beco das Sardinheiras, mas não os Quatrocentos mil sestércios.

Foi, no entanto, a Fantasia para dois coronéis e uma piscina, talvez o menos «sério» de todos os seus livros, a lembrar a magia de Casos, o que eu mais gostei. Nos Casos havia quem engolisse a Lua, uma torneira que se abria no Céu, confundia-se "o Manel Germano com o género humano".

Na Fantasia aparecem deuses pendurados nas árvores, seguimos atentamente as impressões trocadas entre um melro e um mocho, assistimos à destruição dos vestígios de uma vila romana e à odisseia marítima de uma Renault 4.

Tudo podia acontecer e acontece mesmo. Uma claque de desportivos quadrúpedes destrói uma estação de serviço na auto-estrada e o «mocinho» desta fantasiosa cavalgada, heróico escaquista (onde raio foi o Mário de Carvalho desencantar este sinónimo de jogador de xadrêz?) aproveita para se deixar seduzir pela bar-tender da cafetaria. O realismo fantástico, que não raro apanha o escritor numa núvem espessa de misticismo (como aconteceu com a Isabel Allende, com o Didier van Couwelaert e o próprio João Aguiar), é no Mário de Carvalho assumido como paródia e como paródia deve ser lido. Tudo é fogo de artifício: da política ao heróico patriotismo, das velhas gerações inúteis dos anos sessenta aos jovens Cláudios a cumprir pena por delitos vários, drogas diversas, orfandades múltiplas.

E, de súbito, um'A sala magenta.

«Magenta» é uma cor. Entre o vermelho e o azul, uma cor quente e uma fria, aí está o «fúcsia», a cor feminina por excelência. As deusas já não precisam de se pendurar nas árvores, na torre das igrejas: estão por todo o lado nas paredes magenta.

"Não sei se é uma história de amor, se é uma história de paixão", diz o autor a Rodrigues da Silva numa entrevista. "E de raiva e de ressentimento, também."

O romance também não nos esclarece. Pode ser que tenha uma continuação, como Os três mosqueteiros em Vinte anos depois.

Pouca sorte. Vamos ter de aguardar.

4 comentários:

Anónimo disse...

Muito bom, como sempre

Eduardo Salavisa disse...

Textos e desenhos deliciosos. Gostava que a faceta do desenho fosse mais explorada. Defeito profissional meu.

tacci disse...

Obrigado, Anita.
Um abraço.

tacci disse...

E.s., ainda bem que gostaste dos bonequinhos. Sabes que eu sou um contador de histórias e que o meu maior desgosto (se descontarmos algum exagero) é não poder fazer como os segréis de antigamente: andar de um lado para o outro, a tocar alaúde e a cantar rimances. Os desenhos e estes textos são os substitutos que podem ser.
Um abraço e obrigado pela visita.