Médico - Sente-se, homem! (o paciente executa) Análises? Pra quê?
Paciente - Para quê?
Médico - Sim, análises, radiografias, toda essa treta para quê? (pausa) Basta olhar para si. (apontando um dedo:) Clinicamente morto.
Paciente - Desculpe, Soutor, mas...
Médico - Deixe ver as unhas (o doente mostra). Unhas raiadas, vê estes riscos? E arroxeadas. Não sente uma dor aí, por de baixo do mamilo esquerdo?
Paciente (com alívio) - Não, isso não...
Médico - Pode ser um bocado mais abaixo. Está cheio de gordura no fígado.
Paciente - Mas não sinto, não.
Médico - Vai sentir. É um sintoma que nunca falha. Pode ser da próstata. Quantas vezes é que se levanta durante a noite para ir mijar?
Paciente - Não. Pronto, quer dizeer, é muito raro, Soutor. Claro, às vezes, assim com os rapazes, um petisco, bebe-se um pouco mais de cerveja...
Médico - Cerveja? O meu amigo bebe cerveja? Nesse estado e bebe cerveja?
Paciente - Não, é só umas canecas de vez em quando. Mas, ó Soutor, qual estado? O Soutor não...
Médico (interrompe) - Pá! O amigo é que sabe, pá. Apanhe as bebedeiras que lhe apetecer. Mas não me venha para cá dizer que lhe dói o fígado. (abre o envelope e tira uma folha de papel) Olha-me só para esta ósteo: zero, setecentos e setenta e cinco gramas por centímetro quadrado.
Paciente - Gramas por centímetro quadrado?
Médico - Sim. Quadrado. Queria que fosse redondo, ia à Caixa. Isto é um consultório a sério.
Paciente - Não. É só porque gramas por centímetro quadrado não faz sentido. Um centímetro quadrado tem espessura zero, como é que pode ter peso?
Médico (enche-se de paciência) - Pá! Olhe, meu amigo! Os gajos andaram mais de vinte anos a calibrar esta merda e o meu amigo vem-me para aqui com gaitas? E eu a aturá-lo? Ou quer ou não quer, porra! Eu digo as coisas: olhe-me esse fígado, essa dor vai-se agravar, pá, não toma cuidado, e depois, bumba! Missa de sétimo dia e tal... começam à conversa, pois, o médico é que não viu nada. E vêm os seus cunhados, os seus primos, essa gente, ai coitadinho, era tão bom chefe de família, e bumba: processa-se o médico, que, por acaso até sou eu. Acha bem?
Paciente - Não, oiça Doutor...
Médico - Não faz mal. Não diga nada! Eu já estou habituado, quero lá saber! Até já sei porque é que o meu amigo cá veio! Quer viagra! Todos querem!
Paciente - Ó Soutor, desculpe! Aguente aí os cavalos!
Médico - Mas não quer viagra? Olha, é estranho.
Paciente - Não. Sim, quero, mas não é bem isso.
Médico - É o quê, então?
Paciente - Pronto, Doutor, é assim: eu ando a deixar de beber e de fumar, essas coisas que fazem mal, é o que se diz...
Médico - Meu filho! Meu irmão! Tu fumas?
Paciente - Pois, Senhor Doutor, infelizmente...
Médico - Pá! Tu fumas e não dizias nada? (abre a gaveta e extrai um tabuleiro com tabacos vários:) Fumas o quê? Eu vou tirar um destes. Recomendo-tos: puros!
Paciente - Ena pai! Tem aí Stagonov, um dos melhores tabacos do mundo. Dá-me licença de que encha um cachimbo? (executa) E podemos fumar aqui no consultório?
Médico (acendendo o charuto) - Se prometes que não dizes nada à Asae... Ah...
Paciente (acende o cachimbo) - Hum...
Médico - É... também estava a precisar... hum... Afinal, veio cá porquê?
Paciente - É que não consigo deixar de fumar, está a ver? E sabe, com um copo ou outro...
Médico - Sei, ó se sei! (tira de baixo da secretária dois cálices e uma garrafa e começa a servir) Vai uma gota? É uma aguardentezinha bagaceira, destilada à saída do lagar. É tão boa, pá, que já deve ser proíbida.
Paciente - Agradeço... (prova e estala a língua ) Preciosa! Tintos da Estremadura, talvez ali mais perto do Ribatejo... Alenquer! Não, Carregado ou Azambuja! Acertei?
Médico - Quase! Vila Nova da Raínha. Uma quinta de uns amigos meus. Lá é que ainda se vive bem. Cavalos, dinheiros da Cê-é-é... Ainda bem, que lhes preste! Ao menos sempre sobra alguma coisa.
Paciente - Pois. Ele há coisas... Esta bagaceira, os enchidos... Às vezes sinto-me assim esquisito. Não é que eu seja religioso, mas penso que Deus nos está a castigar, só assim, por sermos felizes e estarmos bem. E pronto, tenho medo. Tenho medo das cirroses, tenho medo dum a-vê-cê, tenho medo do cancro... é mesmo verdade que o tabaco é cancerígeno?
Médico (mirando o charuto) - É. Receio bem que seja mesmo. Mas sabes uma coisa? Há uma vacina porreirinha contra tudo isso. Amandas-te do nono andar, com a cabeça para baixo de preferência. 100% de eficácia. É um bocado radical, mas garanto-te que não apanhas mais doença nenhuma!
Paciente - Porra! Prefiro este cachimbo.
Médico - Viver é cancerígeno, pá. Não sabias? Mas olha, podes fazer como o palerma do chinês: sentas-te à beira do rio e esperas o tempo suficiente. Verás o cadáver dos teus cancros passar na corrente. Olha, e se não vires, também não perdeste nada. Ganhaste o teu cachimbo, não foi? E, meu caro amigo, vou-lhe passar a receita do viagra enquanto acaba o seu copo. Trate-me, mas é desse seu dente: com o bagaço e o tabaco de cachimbo, vai ficar com um mau hálito do caraças.
(cai o pano)
9 comentários:
não sei que te diga, estou maravilhada... bom começo de domingo, espero que este dia continua assim ;)
sabe, Tacci, viver é de facto cancerígeneo e em Portugal a eutanásia é crime. Resta o suicídio. Adeus Tacci, é a vida! ou a morte
A vida é uma doença sexualmente transmissível disse alguém e com toda a razão, acrescente-se o cancerígeno no viver e fica perfeito!
... e afinal Tacci, quem é que quer morrer saudável?
Um beijinho
(Delicioso este acto , pena ser único))
Anita, rezo aos Céus que me conservem este mágico poder de te maravilhar.
Um abraçinho e que os teus dias sejam tão sorridentes como os que têm sido para mim.
Ó Anónimo, francamente!
A eutanásia pode ser proibida, mas a dignidade na própria morte, ninguém, nem o Pinochet, nem o Videla, nem os torturadores de Guantânamo no-la podem tirar. Podemos sempre, como dizia o Brel, pedir que nos levem "en haut de ma coline, avec mes chiens et mes chats, (...) et avec quelques chinois en guise de cousins..."
E será assim tão doloroso deixarmo-nos partir, com o sol a baixar no horizonte, o corpo embrulhado num cobertor quente e as recordações do amor, da ternura, da conquista?
Man, deixa-me dizer-te, ó palerma:
Havia um poema do Antoine Pol, cantado pelo Brassens, chamado "Les Passantes". Fala-nos das meninas que, ao longo da vida, não soubemos ou não quisemos seduzir. Porquê? Boa pergunta. Talvez porque o momento era demasiado belo, tão intenso que a dor se tornava insuportável.
E, porra, man, se à hora da tua morte não tiveres nenhuma imagem viva destes amores imperfeitos, pá, não sei que te dizer. Só que morrerás solitário, muito pobre, muito triste e que, para ti não há-de haver Céu.
PS, Anónimo:
Desculpa lá a má-criação da resposta anterior.
Não sei nada a teu respeito, mas o mais provável é que mereças melhor.
Um abraço e volta sempre.
Gi, que havemos de fazer se não dar graças ao Deus que inventou este modo de contágio? E que no meio das coisas más, horríveis e péssimas, espalhou uma mão cheia de «pequenos nadas» que fazem com que a vida, afinal, valha a pena?
Um beijinho.
Acho que a rábula teatral é mesmo o teu melhor registo.
Meu velho Sérgio,
para mal dos meus pecados, o teatro foi sempre a minha mais forte vocação tirando a de ser insolente para os que mandam neste mundo.
Que fazer quando se nasce assim torto?
Um abraço.
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