Mata-a, mata-a! Pisa-lhe a cabeça!
De Espanha continuam a não vir bons ventos. No Verão são aqueles sopros quentes, ateadores de incêndios. No Inverno os frios secos, cortantes. Dos bons casamentos, isso cada um sabe de si e Deus Nosso Senhor de todos.
Mas vêm outras coisas.
Algum dinheiro - é para lá que vai o melhor das nossas exportações - trabalho para os pedreiros desempregados, a Zara e o El Corte Inglês.
Mas também vêm desilusões.
Segundo o que o
El País anteontem e ontem relatou, há dias, em
Colmenarejo, uma
cidadezinha de quase dez mil habitantes cerca de Madrid, uma rapariga deu uma tareia a outra.
Eram ambas adolescentes e, não fora a violência da agressão, com murros e pontapés na cabeça da adversária já caída, não fossem as companheiras da agressora aos gritos "mata-a, mata-a!" ou "pisa-lhe a cabeça" nada disto mereceria reparo. Era caso para os pais as pôrem de castigo e pronto. Assisti a muitas cenas destas quando era miúdo e andava no liceu.
A diferença está apenas em que éramos rapazes e elas são meninas.
Eu explico:
Durante anos seguidos, décadas até, fui um feminista.
Não sei se é muito frequente nos homens, mas o marialvismo da direita portuguesa, senhora do poder durante demasiado tempo, ajudou. Era arrogante na sua afirmação masculina, exibicionista na sua suposta superioridade testicular.
Talvez por reacção e, também, por falta de espaço para nos afirmarmos, muitos de nós aderiram outros grupos, a outros modos de pensar.
Saudámos a coragem da Fernanda Botelho, da Fiama e das «três Marias»; recomendávamos a Simone de Beauvoir às nossas namoradinhas e encorajávamos as suas pequeninas lutas pela emancipação da autoridade fálica dos papás.
O 25 de Abril mudou algumas coisas: trouxe o fim da segregação dos sexos nas escolas, por exemplo, trouxe a queima dos sutiãs e trouxe alguma liberdade sexual: as meninas com quem casávamos já não acreditavam tanto nas nossas juras de amor para toda a vida e, obviamente, seguiram-se muitas lágrimas, algumas dores profundas, muitas separações.
Mas os valores femininos pareciam ir-se afirmando pouco a pouco, apesar de algumas perplexidades.
É certo que houve o governo de Maria de Lurdes Pintasilgo, talvez o melhor de todos os governos desde que em Portugal se promulgou uma Carta Constitucional. E, talvez por isso mesmo, um dos mais curtos.
Mas as mulheres reclamavam, por exemplo, o direito de irem à tropa, seguirem uma carreira militar.
Pessoalmente nunca concordei. Julgava, na minha ingenuidade de anti-militarista, que a luta das mulheres devia ser a de acabar com a violência, a guerra, todas essas tretas que servem para subjugar, antes de mais, os próprios recrutados, os seus pais e irmãos, as aldeias onde nasceram e por aí fora. Nunca para serem elas próprias parte dessa máquina.
Claro, tínhamos herdado da cultura do pós-guerra o conceito de alienação e isso ia explicando as contradições quase todas.
Continuávamos a apreciar a peças de teatro onde se diziam coisas como estas:
(...)
Gaia - Não é uma questão de estado, Alboazar. Aquele que tem presa a víbora e a deixa à solta na escola, é responsável pela morte de uma criança. E não há razão de estado que leve alguém a deixar morrer uma criança.
Ramiro - Nesse sentimento se reconhece a mulher que é talhada para mãe e não para se ocupar com a sorte de um povo. Bem te conheço por essas palavras, Gaia.
Gaia - Estas são as palavras de uma mulher que não quer ocupar-se com a sorte de um povo porque sabe que a sorte de um povo é que ninguém se ocupe dele e o deixem ocupar-se de si mesmo. São as palavras de uma mulher que, se fosse obrigada a governar um povo, só governava para fazer como se faz a uma criança. Protegê-la de longe das víboras e dos lobos selvagens para que ela cresça livre e forte e se saiba defender sozinha quando eu estiver exausta de amor e quiser descansar. Mas é por isso que ninguém deixa as mulheres governar. A não ser quando elas são tão imbecis como os homens.
(...)
Era bonito.
Não sei como dizer de outra maneira: para um céptico como eu, era bom haver referências éticas independentes das opções políticas e filosóficas.
Havia um terreno sólido que a sociologia não refutava e que, aparentemente, pelo menos, era coerente com dados da antropologia e da primatologia.
Mas seria verdade?
Ou era apenas, ainda, escassamente adaptada, a imagem da mulher-mãe, doce conciliadora, que nos impingia a lenda da Rainha Santa? Que nos inculcaram com culto Mariano?
A pancadaria de Colmenarejo mostra que há uma agressividade feminina tão violenta e cruel como a masculina?