Paulo Castilho,
Letra e Música,
Oceanos, 2008
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Se calhar já o disse algures: os meus escritores favoritos (entre os portugueses nossos comtemporâneos, acrescente-se, dado que o Nuno Bragança e o Cootzee não preenchem um destes requisitos pelo menos) são o Mário de Carvalho, o João Aguiar e o Paulo Castilho. E, durante o passado 2008, todos eles me deram a alegria de publicar um livro.
Não é uma figura de retórica: foi mesmo com alegria que me precipitei para as livrarias à procura de qualquer coisa que fosse legível e que nos dissese respeito, a nós que, até ver e na falta de alternativa, vamos fazendo parte da lusa gente.
O Lobo Antunes será um autor muito estimável. Voto sinceramente a favor de que lhe dêem o Nobel, mas, ele que me perdoe: não me obriguem a lê-lo.
A Agostina, idem.
Dos Miguéis Sousa Tavares e das Margaridas Rebelo Pinto, nem falar: assumo que o defeito seja meu. Mas, por isso mesmo: é uma das manchas no meu carácter que mais prezo, que, como o Huck Finn, posso apertar ao peito e chamar irmã.
A Maria Velho da Costa, essa desarma-me. Lembro-me particularmente de Lucialima, um romance tão irregular que dei comigo a adorar a história da Lucinha, a menina ceguinha, e a detestar quase tudo o resto, sobretudo a cena erótica entre o Lima-Limão e a menina-patroa com quem ele ia brincar fardado da Mocidade Portuguesa. Não tenho instintos pedófilos, mas oh!, se os tivesse...
Myra (Outubro, de 2008 também, da Assírio e Alvim) está aqui ao lado, há meses num pego-lhe, não pego, leio, não leio que me irrita e me incomoda. Não me perguntem ainda porquê. É uma questão que tenho comigo mesmo e que, provavelmente, acaberei por resolver.
E, entrementes que é uma palavra interessantíssima, outros livros que me caíram no prato, e esses devorei-os.
Do Mário de Carvalho e da Sala Magenta, do João Aguiar e do Priorado do Cifrão, já falei, estamos conversados.
E quanto ao Letra e Música, do Paulo Castilho, tenho andado a adiá-lo.
Não porque não se leia de jacto. Não porque não seja um romance bem construido. Não porque a sua trama não seja interessante: uma jovem nascida em Sintra, numa casa com nome próprio, emigra nos idos de sessenta e seis, primeiro para a pérfida Albion e depois para os States, em busca de um som, uma forma de fazer música, de a tocar e a cantar, impossível ou, pelo menos, improvável em Portugal.
Creio ter sido Dinis Machado (ó Glória da nossa Terra, que tens salvado mil vezes...) o primeiro escritor a usar de um método narrativo de segundo, terceiro e, por vezes, quarto grau. É um conta-se que Fulano disse que Sicrano viu Beltrano fazer...
«Contam-se hitórias do Ângelo», disse Austin, acendendo um cigarro, «que ele era, segundo a expressão que Molero diz ter recolhido em fonte idónea, danado para a porrada. Que uma vez, isto contava o Zeferino Torrão de Alicante, e o Chinês que vendia gravatas confirmava com a cabeça...»
(O que diz Molero, 1977. 21ª ed., Bertrand, 2007, pag. 48)
Só me lembro de ter voltado a ver alguma coisa parecida numa obra que teve algum êxito: Austerlitz, de Sebald, creio que 2001: «Austerlitz conta que...» (não tenho o livro que me foi emprestado por um amigo e não encontro o caderno onde anotei a citação completa, sorry).
É provavelmente falta de atenção da minha parte.
O próprio Paulo Castilho usara já este artifício literário em Por outras palavras (2000) onde a narrativa mais ou menos autobiográfica de um escritor em mal de inspiração é, por sua vez, narrada pelo Filipe, um jovem escritor também, que o secretaria, enquanto nos vai narrando as peripécias da sua relação com a Rita, a outra secretária.
O mesmo recurso é retomado em Letra e Música.
Mónica Mendes, a jovem cantora emigrante, deixa os diários da sua aventura anglo-americana. Cabe ao Filipe, agora um pouco mais velho, a sentir por sua vez dificuldades criativas como o seu antigo patrão, fazer o apanhado desses testemunhos, reconstituindo a vida da cantora. Infelizmente, já se separou da Rita que, como o autor explica em nota de rodapé, «pertence a outra história» (e isto podia, talvez, explicar a sua crise criativa).
Em Por outras palavras, era da relação entre a Rita e o Filipe que surgia a tonalidade céptica, sarcástica por vezes, que dava espessura às personagens e vida às diferenças geracionais. Em Letra e Música, se calhar é essa tonalidade o que falta. Será defeito meu, mas não consegui ler na Mónica Mendes uma personagem credível - ou terá sido o Filipe vagamente deprimido que não a soube transmitir?
A Isabel e a Cláudia, as duas irmãs sobrinhas da cantora, pelo contrário, seguem a tradição de Paulo Castilho: como a Rita que é de outra história, são personagens muito vivas e, como dizer? Simpáticas, é pouco. Amáveis? Gostáveis? Talvez.
E ainda bem.
Estou farto de autores que detestam as personagens femininas dos seus próprios romances.
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